“Balanço
POR DENIS LERRER ROSENFIELD
O primeiro ano do governo Bolsonaro caracterizou-se pelo
enfrentamento com adversários, tidos por inimigos, testando o limite das instituições
democráticas. A partir do momento em que o confronto político se tornou o eixo
das ações, a prática destas, própria da democracia, passou necessariamente a
segundo plano. Nesse sentido, há no atual governo um pendor autoritário que
contrasta fortemente com seu não autoritarismo na esfera das relações
econômicas, onde propugna uma redução do papel do Estado. Autoritarismo de um
lado, liberalismo de outro, o que faz seu próprio projeto reformista do ponto
de vista econômico terminar por se contaminar por essa sua contradição interna.
A concepção do político orientadora de suas ações pode ser
retraçada ao teórico alemão Carl Schmitt, apoiador do nazismo e admirador de
Lenin e Mao no pós-guerra, ao definir o campo do político como o da distinção
entre amigos e inimigos, não podendo haver entre eles negociação e composição,
o que seria próprio da via democrática, mais especificamente, parlamentar.
Note-se, a esse respeito, que o governo Bolsonaro não preza e não tem
articulação política, baseada na negociação, laboriosa e dura, com a Câmara dos
Deputados e o Senado. Muitas vezes esse problema se traduz pelo fato de os
políticos serem desconsiderados, supostamente, por serem “corruptos”, quando,
na verdade, o problema consiste na composição partidária, tendo como objetivo a
aprovação de medidas provisórias, projetos de lei e emendas constitucionais.
Apesar das aparências, não se pode dizer que tal
caracterização do político seja algo próprio da extrema direita, quanto mais
não seja pelo fato de Schmitt conferir-lhe validade universal. A questão reside
em que ela é utilizada tanto por setores de direita quanto de esquerda. Lula e
o PT empregaram a mesma distinção ao opor “conservadores e progressistas”, “nós
contra eles”, num decalque da luta até a morte, segundo a formulação marxista,
entre “burgueses e proletários”, entre “revolução e instituições democráticas”.
Na cena internacional, hoje há schmittianos de direita e esquerda!
Seria tentado a dizer que o voto do sim em Jair Bolsonaro
foi também um voto do não à concepção autoritária do PT. Quando os brasileiros
foram às urnas em 2018, eles expressaram claramente um não ao petismo, à
corrupção e ao desastre econômico que foi o governo Dilma. Disseram não ao
acirramento das relações políticas, que atingiram até amizades e núcleos
familiares. Os eleitores não disseram sim à substituição de um tipo de política
por outro da mesma espécie com sinal trocado.
Em certo sentido, pode-se dizer que Bolsonaro estava certo,
conforme a lógica eleitoral, em utilizar essa distinção, pois ao se apresentar
como o anti-PT, ele o considerou o inimigo a ser abatido numa contenda
democrática. Seu uso intensivo das redes sociais, que se prestam
particularmente a esse tipo de embate, foi-lhe da maior valia. Seu sucesso
mostra a correta estratégia adotada. Contudo não necessariamente um instrumento
empregado numa luta eleitoral tem a mesma validade na arte de governar. São
campos distintos.
Prova disso, a posição do governo Bolsonaro em relação ao
governo Temer. Sob a ótica das eleições, Bolsonaro fez como se Temer não
existisse, centrando todas as suas baterias nos governos petistas, como se eles
ainda governassem. Tinha-se a impressão de que Lula-Dilma-PT ainda habitavam os
Palácios do Planalto e da Alvorada. O candidato fez uma ponte de mais de dois
anos, omitindo-o. Entretanto, no que diz respeito à pauta reformista do atual
governo, ela é uma prolongação da anterior. Do ponto de vista do confronto
político, o bolsonarismo adota posição contra o PT e a esquerda em geral; do
ponto de vista das reformas, ele se considera seguidor da pauta liberal do
governo Temer.
Neste primeiro ano, o grande feito do atual governo foi a
aprovação da reforma da Previdência, preparada e amplamente discutida pelo
governo anterior. A assinatura do acordo União Europeia-Mercosul foi outro
feito digno de menção, embora a política de confronto adotada na esfera
ambiental já o esteja contaminando. A reforma trabalhista do governo anterior
está também tendo continuidade via medida provisória que amplia algumas das
mudanças feitas, apesar de estar também ainda em discussão parlamentar. O
programa de concessões e privatizações é, da mesma maneira, um prolongamento
dos projetos anteriores, com destaque para o Programa de Parcerias de
Investimentos (PPI). O problema aí consiste em que a política do embate, ao
adentrar o Congresso e a sociedade em geral, termina por prejudicar o
liberalismo apregoado na esfera das relações econômicas. Se o governo
abandonasse a política do confronto, as reformas marchariam com muito maior
rapidez e o Brasil ganharia com isso.
A pauta conservadora tem sido outro motivo de confronto. Os
eleitores de Bolsonaro não disseram, em sua totalidade, sim ao proposto pelo
então candidato, mas não ao PT, incluídos seus excessos ao forçar goela abaixo
dos brasileiros o politicamente correto. Uma parte dos eleitores disse sim ao
projeto conservador, mormente entre os evangélicos, outros disseram sim a Bolsonaro
e não à visão conservadora que está sendo implementada. Liberais, do ponto de
vista dos costumes, da religião e da moralidade em geral, votaram em Bolsonaro
para dizer não ao PT.
Talvez o presidente devesse atentar melhor para esse fato,
deixando de lado seu precoce projeto eleitoral de 2022, arregimentando desde já
conservadores para o seu lado, como se as eleições fossem amanhã. O atual
governo e o Brasil têm um longo percurso pela frente, e muito do seu sucesso ou
fracasso dependerá da aprovação do seu projeto reformista, que será tanto mais
viável quanto maior for o esforço do presidente para abandonar o confronto
incessante com os adversários e as instituições.”
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