“Diplomacia ideológica
Por Merval Pereira
Na sua ilógica atuação internacional, o governo brasileiro
vem colhendo situações inusitadas, como a que fez com que o presidente
Bolsonaro afirmasse que o Brasil continua interessado nos acordos comerciais
com o Irã, momentos depois de ter emitido uma nota oficial em que apoiou o
ataque dos Estados Unidos.
Ontem, no entanto, o Itamaraty adiou uma reunião, agendada
antes dos ataques, que a embaixada do Brasil em Teerã teria para discutir
questões culturais, alegadamente porque não teria sentido discutir acordos com
o Irã tendo apoiado a ação dos americanos.
O que parecia ter sido um recuo do Brasil movido pelo
bom-senso, em relação ao conflito EUA x Irã, quando Bolsonaro mandou todos
ficarem em silêncio depois que o Irã chamou nosso embaixador para uma conversa,
vê-se agora que foi um surto que já passou.
Embevecido com a imagem de Trump na televisão, dirigindo-se
à nação respaldado por militares de alta patente, Bolsonaro passou a defender a
posição brasileira inicial e a atacar o governo do ex-presidente Lula com
afirmações equivocadas. Não precisava inventar críticas, elas são muitas nesse
relacionamento com o Irã e com outras autocracias e ditaduras pelo mundo.
O acordo que Lula assinou com a Turquia e o Irã em 2010 não
permitia que o urânio fosse enriquecido a 20%, como acusou Bolsonaro.
Simplesmente não foi levado em conta na Europa e nem nos Estados Unidos porque
não tinha credibilidade. Foi uma tentativa do governo Lula de dar-se uma
importância que não tinha nas negociações geopolíticas internacionais.
Três anos depois, os membros do Conselho de Segurança da ONU
que têm direito a veto (Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, Franca e China) e
mais a Alemanha, após quatro dias de negociações em Genebra, chegaram a um
acordo que foi considerado histórico.
O compromisso, que estava em vigor mesmo Trump tendo
retirado os Estados Unidos dele, previa que o Irã parasse a produção de urânio
enriquecido a mais de 5% e impedia a instalação de novas centrífugas. A lição é
que não se pode tratar a política externa da maneira como vem sendo tratada
pelo presidente Bolsonaro e pelo chanceler Ernesto Araújo, que reagem com o
fígado, antes de ter estratégia e visão geopolítica e econômica.
Não se pode dizer o mesmo do governo de Lula, que tinha
estratégia clara e megalômana, que levou o país a assumir posições contrárias
às nossas tradições diplomáticas e acima de nossa capacidade de atuação.
No caso de Honduras, chegou a ser escandalosa a intromissão
do governo brasileiro nos assuntos internos daquele país, a ponto de ter
tentado, com a cumplicidade de Hugo Chávez, criar um fato consumado com o
retorno do presidente deposto Manuel Zelaya, abrigando-o na embaixada
brasileira.
Da mesma forma, o Brasil foi dos países mais ativos, ao lado
da Venezuela de Chávez, na condenação das bases militares dos Estados Unidos na
Colômbia, mas nunca fez um comentário sobre os acordos militares que o mesmo
Chávez andou assinando com a Rússia e o Irã.
O Brasil tem definições de política externa na Constituição
que o colocam contra qualquer tipo de terrorismo, e foi nisso que o chanceler
se baseou para a nota apoiando o ataque americano no Irã. Bolsonaro usou o
mesmo argumento ontem, para defender a primeira reação brasileira.
Mas também na Constituição há outros aspectos, como o da não
intervenção em assuntos de outros países, o da tentativa de buscar sempre a
paz, e este é o caminho que temos que tomar. O Brasil não tem que ser parte de
uma crise no Oriente Médio, e não tem condições geopolíticas para ser
intermediário de nenhum acordo internacional fora de sua região.
As ideologias não podem impedir que se tenha uma política
externa que atenda aos interesses do país. Na ditadura militar, o Brasil reatou
laços de amizade com a China no governo Geisel, assim como, no mesmo governo,
cujo chanceler era o embaixador Azeredo da Silveira, reconheceu a independência
das colônias portuguesas na África.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário