“Sabotagem
Por Pedro Fernando Nery
A juíza de Porto Alegre decidiu que a lei não vale, não
porque fosse inconstitucional, mas porque a Lei é “ilegítima”. Assim, não deve
valer a Lei aprovada pelos representantes da população na Câmara dos Deputados
e no Senado Federal, e sancionada pela Presidência da República. O poder do
Congresso foi substituído por o de um seminário organizado por um sindicato de
classe, com a presença de advogados e estudantes, que aprovou tese de que a lei
é formalmente e materialmente “ilegítima”. A lei é a reforma trabalhista de
2017.
O seminário foi a Jornada de Direito Material e Processual
do Trabalho, encontro organizado por uma associação de juízes trabalhistas,
realizado durante dois dias em uma faculdade particular de Brasília. O leitor
se lembra quem elegeu para representá-lo na Jornada? É porque não elegeu
ninguém. Mas a juíza explica quem eram os poderosos votantes: juízes,
advogados, sindicalistas, professores e estudantes.
Sim, a reforma que reduziu o número de ações trabalhistas e
acabou com o imposto sindical obrigatório foi considerada ilegítima justamente
por advogados trabalhistas e sindicalistas. E a juíza do processo
0020441-27.2018.5.04.0004 logo no primeiro parágrafo da sua decisão explica que
a lei não se aplica, porque os presentes na tal jornada decidiram que as mais
de cem mudanças na CLT são ilegítimas.
Caso o leitor seja antipático à reforma trabalhista, vale
extrapolar. A Jornada de Juízes de Direita pode decidir que o código penal é
“ilegítimo”? A Jornada de Juízes Céticos da Mudança Climática pode ignorar
totalmente o código florestal?
Aliás, o que era tão formal e materialmente legítimo na CLT
anterior, originária de um decreto de um ditador, líder de um regime que
torturava e de notórias inclinações xenófobas, racistas e antissemitas?
Piora
Além da ilegitimidade, a magistrada expõe outros argumentos
para desconsiderar a nova lei. Alguns são Ctrl C + Ctrl V de um texto de sua
autoria, publicado no site da Carta Capital antes da reforma entrar em vigor. O
artigo elenca razões para não aplicar a reforma trabalhista. A razão mais
interessante, porém, não foi transplantada do artigo para a decisão.
Em um impressionante exercício de sinceridade, a juíza diz
que a Justiça do Trabalho não deve aplicar a reforma trabalhista porque precisa
compreender que isso seria autofagia. Da reforma decorreria a redução do número
de processos na Justiça Trabalhista, que seria “o caminho mais rápido para a
sua própria extinção”. Arremata, ainda comentando que a aplicação da lei pelos
juízes trabalhistas provoca racionalização das ações: “Não há como justificar a
existência de uma estrutura própria de poder”.
O caso da juíza de Porto Alegre é isolado? Ou a Justiça é
contra a lei? Passados dois anos da sanção da reforma trabalhista, é urgente
discutir a sua sabotagem. Uma miríade de ações pede que o Supremo Tribunal
Federal (STF) se posicione sobre a constitucionalidade de seus muitos trechos.
Seja qual for o resultado, decisões heterodoxas – e perigosamente
corporativistas – tenderiam a perder espaço.
A urgência se explica pelo quadro grave do mercado de
trabalho, que alimenta a pobreza. Por exemplo, inovações da reforma voltadas à
contratação formal de trabalhadores mais vulneráveis, nos moldes da exitosa
experiência alemã da década passada, demorarão a florescer diante do medo
fundado de judicialização. Vai que um juiz com preocupações corporativistas
resolve anular o contrato com base em uma reunião obscura de sindicalistas e
advogados com estudantes?
Se o saldo de empregos formais gerados no 1.º semestre foi o
melhor em cinco anos, desemprego e desalento permanecem elevados.
Se o 2.º trimestre terminou com recorde de pessoas ocupadas
– 3,5 milhões a mais do que o mesmo período de 2017, quando o Senado concluía a
reforma –, é puxado pelos autônomos.
Soluções para a emergência no mercado de trabalho precisam
ocupar espaço mais central no STF. Se é ao Poder Executivo e ao Legislativo a
quem cabe tocar as reformas, é o Judiciário que as referenda, podendo corrigir
seus equívocos e disciplinar os inconformados que tentam derrotá-las no
tapetão.
A Constituição não é indiferente a esse drama humano:
inscreveu como princípio da ordem econômica a busca pelo pleno emprego, e
estabelece como objetivo da República a erradicação da pobreza.
Como lembra o ministro Ives Gandra Filho, nos países
europeus que fizeram reformas trabalhistas a taxa de desemprego só caiu de
forma mais palpável quando as Cortes constitucionais apitaram o fim do terceiro
tempo.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário