“Fábula do FGTS
Por Pedro Fernando Nery
Manoel não se lembra da última noite que dormiu bem. Sofre
com as dívidas que só aumentam e que não sabe como vai pagar. Paga juros altos
nos empréstimos que a família tomou no cheque especial e no cartão de crédito.
Ironicamente, Manoel tem patrimônio. Poderia usá-lo para quitar as dívidas, mas
o governo o proíbe.
Manoel empresta seu dinheiro a juros bem baixos: seu
investimento já rendeu abaixo até da inflação, e está muito abaixo dos juros
que paga nas suas dívidas. Mas o dinheiro está preso ali.
Já Miguel é um rico empreiteiro com boas conexões políticas.
Seus empreendimentos foram lucrativos ao longo dos anos porque consegue crédito
barato, abaixo dos juros de mercado. Miguel pega dinheiro emprestado com
Manoel. Miguel e seus pares pressionam o governo para manter essa linha de
financiamento.
Carlos é um sindicalista em uma grande estatal. Ele também
pressiona para que o empréstimo de Manoel para Miguel se mantenha. A estatal
cobra de Manoel altíssima taxa de administração, embolsando 1% do dinheiro que
guarda e que é mal remunerado.
Manoel só vê uma saída para seu problema. Angustiado com a
má remuneração do seu dinheiro, buscará a única forma que tem disponível para
conseguir sacá-lo: ser demitido. Poderá assim receber de volta seu patrimônio
enquanto busca uma nova vaga de emprego e faz bicos no mercado informal.
Luiz é um pequeno empresário e chefe de Manoel. Ele percebe
a mudança no seu comportamento, mas não a estranha. Os atrasos reiterados e as
respostas grosseiras vão levar à sua demissão: Luiz já procedeu assim com
outros empregados.
Ricardo será contratado por Luiz para a vaga de Manoel. É
jovem animado com a chance. Espera ser bem treinado no novo trabalho e
conseguir oportunidades ainda melhores no futuro com a qualificação que
receberá.
Luiz não vai treinar Ricardo. Entende que o custo de o
qualificar não compensa. Esse investimento já foi perdido diversas vezes,
porque – como Manoel – muitos funcionários ficam pouco tempo nas vagas.
Jaques é cliente no estabelecimento de Luiz. Frequentemente
está insatisfeito. O serviço poderia ser melhor.
*
O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) é uma
poupança obrigatória de trabalhadores formais, como Manoel. Ela historicamente
rende bem abaixo de outros investimentos, como a caderneta de poupança. A
depreciação desse patrimônio é intencional.
Os recursos são usados para financiar obras públicas, que se
beneficiam do dinheiro barato. E viram lucro para empreiteiros como Miguel e a
estatal de Carlos: a Caixa Econômica Federal.
Os recursos de Manoeis emprestados para Migueis e administrados
por Carlos perdem valor. Para evitar a dilapidação de seu patrimônio, Manoeis
buscam resgatá-lo. Continuando em seu emprego, não têm essa chance. Se saírem,
sim.
A alta rotatividade no mercado de trabalho brasileiro é
problema bem diagnosticado há tempos (como nos estudos do professor José Márcio
Camargo). Ela leva empresários como Luiz a pouco investirem nos funcionários,
como Ricardo. Qualificação e treinamento demoram para dar retorno às empresas.
Essa é uma das explicações para a crônica produtividade
baixa da economia brasileira, detectada pelo insatisfeito Jaques.
Vendido como um direito, o FGTS posa outras dificuldades
adicionais na vida de trabalhadores como Manoel e Ricardo. Os 8% exigidos de
empreendedores como Luiz significam salários menores (especialmente para
trabalhadores de maior qualificação e poder de barganha, que tenderiam mais a
incorporar o FGTS no salário se ele não existisse). Significam também maior
chance de desemprego ou informalidade (especialmente para os de menor qualificação,
gerando custo de contratação análogo a um salário mínimo maior em 8 pontos
porcentuais).
*
Existem muitas propostas de reforma para o FGTS, no sentido
de encerrar o subsídio de Manoeis a Migueis e Carlos; melhorar a produtividade
e salários de Manoeis e Ricardos; e elevar a chance de contratação destes
reduzindo os encargos recolhidos por Luizes.
A proposta do Ministério da Economia na MP 889 não é uma
grande reforma estrutural, mas talvez um importante avanço mais incremental.
Aumenta a remuneração do patrimônio de Manoel, tornando-a próxima da caderneta
de poupança e o enriquecendo.
Permite também que ele saque agora e anualmente seus
recursos, mantendo a possibilidade de receber a multa de 40% em caso de
demissão.
A perspectiva desses saques também permitirá acesso a
crédito mais barato, via consignado.
Luiz poderá investir mais em qualificação, com os vínculos
mais duradouros: sem perda de valor real dos recursos e saques anuais, a
rotatividade cai. Mais produtividade é mais salário.
Os defensores dos trabalhadores defenderão manter tudo como
está.”
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