“Fracassos retumbantes
Por Leandro Karnal
A frase “o fracasso lhe subiu à cabeça” é extraordinária.
Virou até letra de música. É um ataque venenoso lançado a muitos políticos e
administradores. Contém certa injustiça. Fracassos podem ser extraordinários na
memória. Dédalo era arquiteto genial e prudente.
Seu filho, Ícaro, era impulsivo e nada acrescentou à técnica
do pai. Pelo contrário, o jovem ignorou os conselhos do sábio engenhoso e
aproximou as frágeis asas de cera do carro do sol. Resultado da escolha? Até
hoje, seu túmulo aquático se inscreve nos atlas como o Mar Icário. Trata-se de
um fracasso que nunca subiu à cabeça do infeliz. O referido local da tragédia é
uma parte do Mar Egeu. Esse é um outro nome a registrar o erro estratégico. O
velho Egeu se matou por engano, supondo que seu filho Teseu estava morto,
quando era simples falha de comunicação.
Os mapas parecem um itinerário de equívocos gloriosos. O
Estreito de Magalhães ostenta o nome glorioso do português que fez a primeira
viagem ao redor do nosso globo. Há 500 anos, pasmem senhoras e espantem-se
senhores, alguns ignorantes supunham a Terra plana! Inacreditável a
imbecilidade daquela época. Tergiverso. Fernão de Magalhães batizou o belo e
complexo trecho austral no nosso continente. Todavia, a primeira viagem ao
redor do mundo não plano não foi completada pelo lusitano. No futuro
arquipélago das Filipinas, habitantes locais foram indiferentes ao solene tom
épico da empreitada e flecharam o capitão ousado. A viagem completou-se sem
Fernão.
Volto ao solo. As vitórias napoleônicas estão listadas no
Arco do Triunfo, em Paris. No monumento, lemos a batalha de Moscou, evento que
resultou em desastre quase absoluto para o corso. O custo dos campos gelados da
Rússia nunca foi superado pelo exército francês. A águia imperial morreu por
hipotermia. A “vitória” de Moscou é uma derrota monumental do projeto
napoleônico. O genial estrategista terminaria a vida prisioneiro em uma ilha
longe de tudo, tendo seu império retalhado e todos os princípios
revolucionários engolfados pela onda reacionária do Congresso de Viena.
Em 1840, quando os franceses recuperaram seu corpo em Santa
Helena, Bonaparte passou um tempo sendo velado sob o Arco do Triunfo de onde,
hipoteticamente, seu espírito poderia ler a “vitória gloriosa” que apresentou,
como efeito maior, a queda do império e o desfile do czar russo vitorioso em
plena Paris.
Ferdinand de Lesseps passou à história como o construtor do
estratégico Canal de Suez. Embalado pelo sucesso daquela via, atreveu-se a
empreender o Canal do Panamá. Foi um desastre retumbante que, curiosamente,
pouco tisna a reputação do francês. Seria um Napoleão da engenharia: seu
Waterloo não nubla sua Austerlitz. O mesmo se pode dizer de Steve Jobs,
afastado da própria empresa em meio a crises enormes?
O exército soviético acompanha a mesma sina: semi-humilhado
diante da fraca Finlândia e apanhando muito até 1943, será sempre lembrado pela
vitória na Segunda Guerra. Para o emblemático Churchill, o fracasso de Galípoli
seria compensado na vitória da guerra seguinte. Por quais motivos ocultamos
fracassos e destacamos vitórias? Quantas ideias geniais você precisa ter na
vida para que seus pensamentos idiotas sejam defenestrados? A Guernica da
década de 1930 equilibra os anos menos brilhantes de Picasso no final da vida?
Capitalistas que perderam tudo, como o emblemático Barão de Mauá, deixam de ser
competentes? São questões importantes na carreira e na vida pessoal de cada um.
Quase todos os Estados brasileiros têm feriados para
celebrar revoltas fracassadas, mas, claro, com “vitória moral”. Celebramos
Cabanagem, Farroupilha, Sabinada, Balaiada e, curiosamente, o esmagamento da
Inconfidência Mineira com multas, degredos e uma execução. A vitória total do
governo de D. Maria I é, hoje, feriado nacional... em homenagem aos que não
atingiram seus objetivos naquele século.
A única solução para que o sucesso seja extraordinário é o
modelo Nelson: morrer em meio a uma imponente vitória. Tinha 47 anos no apogeu
da glória, em Trafalgar. O triunfo do almirante do alto de sua coluna na praça
em Londres é permanente. Não teve tempo de falhar ou de desgastar a biografia.
Exemplo ainda maior de triunfo inatacável? É o caso do nosso bom presidente
Tancredo Neves, de longe, o melhor governante que já foi eleito para o cargo do
Executivo Federal. Abandonou o mundo em 21 de abril, dia de outro imortal,
Tiradentes.
Morrer na glória de uma batalha ou na véspera de ela ser
travada parece ser a segurança permanente para que seu nome esteja no Panteão
dos Heróis para sempre. Infelizmente, para nós, os vivos, os dias se repetem. O
desempenho épico de ontem pode não servir de argumento para amanhã. A falência
parece apagar os anos de prosperidade econômica. Eis a discreta beleza de estar
vivo. Temos nova chance de acertar todo dia e, claro, de colocar tudo a perder
sempre. É preciso manter a esperança, até porque continuamos vivos!”
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