“A presença do fígado na vida pública
Por Bolívar Lamounier
Por mais que nos desagrade reconhecê-lo, a raiva é um fator
comum na vida pública de muitos países. Suas causas variam – crises econômicas,
racismo, imigração, corrupção, autoridades irresponsáveis –, mas o fato é
inegável. O fígado é o órgão que processa e transforma tais fatores em pura
estupidez.
Reconheçamos, porém, que não se trata de uma constante. A
política biliosa diminui em certos períodos e aumenta em outros, e varia muito
de um país a outro. Veja-se o caso do antissemitismo. Na Europa central e
oriental, ele tem uma longa história. Mas hoje o vemos em preocupante ascensão
na França – o farol da humanidade –, a ponto de forçar numerosas famílias
judias de longa tradição a deixarem o país. A reação à imigração é a causa mais
visível, mas não a única. E não nos esqueçamos de que algum antissemitismo
sempre existiu na França, basta lembrar o affair Dreifuss, no final do século
19.
Na presente década, a política raivosa espraiou-se por
numerosos países, turbinada por dois componentes novos. Primeiro, a internet,
cujo caráter “impessoal” parece estimular milhões de pessoas a vocalizar uma
agressividade que não teriam coragem de exprimir cara a cara com seus
interlocutores, ou mesmo numa assembleia. Segundo, numerosos líderes políticos,
vários deles ocupando posições públicas de relevo, têm patrocinado atitudes
biliosas, seja por acreditarem sinceramente nelas, seja para capitalizá-las
eleitoralmente, numa tentativa nada sutil de transformar a democracia em
fascismo. Um exemplo egrégio é o sr. Viktor Orbán, primeiro-ministro da
Hungria, cujo mote é o estapafúrdio conceito de “democracia iliberal”, como se
o substantivo e o adjetivo não se repelissem mutuamente.
Nos Estados Unidos, somente neste ano já se registraram
dezenas de ataques a imigrantes de origem hispano-americana. A loucura
subjacente a tais atentados é o que denominam “nacionalismo branco”, ou
“supremacia branca”, vale dizer, a crença irracional de que imigrantes “não
brancos” tomarão conta do país e subjugarão a parcela “legitimamente ariana” da
sociedade. Essa forma de racismo, mais frequente entre as camadas de renda
média e baixa, vem de longe, mas é atualmente fomentada por atitudes e
interesses que vêm de cima. Do próprio presidente da República, para ser exato.
Em sua edição de junho, a respeitada revista The Atlantic estampou uma matéria
de 12 páginas intitulada O racismo de Donald Trump – uma história oral. É uma
compilação de declarações e ações perpetradas pelo presidente americano ao
longo de 40 anos, com meticulosa atenção a fontes e datas.
Gravações liberadas poucos anos atrás evidenciaram o
linguajar rombudamente racista do presidente Richard Nixon e de Ronald Reagan,
este à época governador da Califórnia. Mas Donald Trump deixa os dois no
chinelo. Dou um exemplo. No dia 19 de abril de 1989, um grupo de adolescentes
pretos e latinos foram acusados de estuprar uma mulher branca que praticava
jogging no Central Park. Rápido no gatilho, Trump só precisou de 12 dias para
publicar nos quatro principais jornais de Nova York um anúncio no qual afirmava
que era mister “fazê-los sofrer” e levá-los à cadeira elétrica. E persistiu em
sua campanha até que, em 1990, os rapazes foram condenados por diversas ofensas
violentas, inclusive tentativa de homicídio. Finalmente, em 2002, a Justiça inocentou-os
com base na prova de DNA e na confissão do verdadeiro estuprador.
Claro, o “fator fígado” não é só racismo. E racismo não é só
um sentimento de hostilidade motivado por características físicas das minorias
contra as quais se volta. Tem em seu bojo uma insegurança quase inexplicável,
uma necessidade profunda de pertencimento a um grupo, e por um anseio de
“mesmismo” (sameness, em inglês) e, reciprocamente, por uma rejeição de toda
diferença e toda diversidade.
As determinantes do mal-estar global desta década são, como
se vê, variadas. E a atmosfera raivosa que hoje se manifesta na sociedade
brasileira, como devemos tentar compreendê-la? A reflexão tem de começar pelo
bolsonarismo, no qual, porém, não vejo um componente racista. O ponto de
partida do bolsonarismo foi a reação suscitada pelas lambanças (recessão,
corrupção) perpetradas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) durante três
décadas, associada à inapetência política dos partidos de centro. Ele ganhou
corpo com o estilo ferrabrás do personagem Jair Bolsonaro, uma macheza em parte
genuína e em parte calculada para manter a fidelidade de seu rebanho. Mas
decorreu também de fatores objetivos, muito mais sérios e relevantes, entre os
quais é imperativo destacar a propensão da casta patrimonialista que habita
Brasília a tratar as esferas pública e privada como uma coisa só, privatizando
benefícios e socializando prejuízos. É a “velha política” do linguajar
bolsonarista, sem esquecer, porém, que o clã Bolsonaro vê o nepotismo como a
coisa mais normal do mundo e que o próprio Supremo Tribunal Federal, que não é
um órgão “político” no sentido banal do termo, tem se notabilizado por
comportamentos igualmente desprovidos de substância republicana.
Sabemos todos que o controle do Estado pela casta patrimonialista
é a causa principal de nossa estagnação econômica e de suas sequelas, entre as
quais o vertiginoso aumento da violência. Se Bolsonaro der por encerrada a
campanha eleitoral e compreender os requisitos do cargo que ocupa, contendo
suas inclinações figadais, é possível que o ministro Sergio Moro consiga
minorar os males decorrentes da criminalidade e Paulo Guedes possa robustecer a
recuperação econômica, cujos sinais são por enquanto tênues. Se não, oremos.”
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