“Da ilegitimidade das nossas leis
Por Fernão Lara Mesquita
Não é abuso de poder os representantes sabe-se lá de quem
aprovarem anonimamente na madrugada, quase como gatunos usando máscaras, uma
lei contra o abuso de poder?
O problema do Brasil vocal é ignorar olimpicamente a
realidade e discutir as mazelas institucionais do País como se ele fosse uma
democracia representativa. Não é. Nunca foi. Tem a chance de vir a ser se
passar a encarar-se como o que é e tirar seus políticos e juristas do conforto
de serem tomados pelo que não são.
Não se trata de defender que fique impune o abuso de
autoridade. Mas é, no mínimo, farisaísmo fazê-lo sem mencionar que cumprir as
leis que nos ditam implica, em primeiro lugar, a impunidade absoluta de quem as
dita e da guarda pretoriana dos servidores que eles subornam com a dispensa de
serem responsabilizados pelo que fazem e sofrer os efeitos da crise crônica que
isso nos custa e, em segundo lugar, a impunidade de todo bandido não estatizado
que puder pagar advogados para guiá-lo pelo infinito labirinto recursal
desenhado para que nenhum julgado transite até o fim.
Encaremos a realidade, portanto. 1) Esta lei não foi feita
para proteger o cidadão. Nunca ninguém se preocupou com o abuso dos três “pês”.
As “excelências” só se moveram quando, pela primeira vez em nossa história, os
ricos e os poderosos começaram a ser presos. 2) Também não é uma lei para disciplinar
os três Poderes, é uma lei do Poder que tem sido preso contra o Poder que
prende, sua polícia e o Ministério Público. 3) Tudo o mais nela está
absolutamente desfocado, pois, sendo o seu principal detonador o “prejuízo” do
“abusado”, fica sem resposta a pergunta: quando é que prender alguém, do chefe
do PCC para baixo, deixa de prejudicá-lo?
Atribui-se a Rui Barbosa a frase: “A pior ditadura é a do
Judiciário. Contra ela não há a quem recorrer”.
Há, sim! O que a revolução democrática fez, essencialmente,
foi definir um novo “controlador mais alto do sistema”, sua majestade o povo,
do qual passa a emanar todo poder. No Brasil, que de democracia nunca teve mais
que a casca, o povo acostumou-se ao papel de “Geni” da privilegiatura, que pode
“montá-lo” como bem entender. Mas a questão que, desde o primeiro dia,
configurou-se como o maior desafio enfrentado pelos inventores da nova ordem
não era “se” o Poder Judiciário deveria ser submetido ao povo, essa
coletividade cujos elementos constitutivos ele tem por função julgar individualmente,
mas “como” fazê-lo sem que ficasse prejudicada a isenção possível às
instituições humanas que ele deveria manter ao fazê-lo.
Quando os governos das 13 colônias que aderiam à União foram
formados nos Estados Unidos, seguiu-se, para a constituição do Judiciário, o
padrão do absolutismo europeu, em que permanece encalhado o Brasil até hoje, no
qual os chefes do Executivo nomeavam os juízes que teriam por função vigiá-los
e julgá-los. Mas a contradição com o fundamento básico da democracia era evidente.
Em 1830 já as 13 colônias, depois de muitas idas e vindas, tinham aderido ao
novo modelo de eleição direta dos juízes pelo povo. Para se elegerem, no
entanto, os juízes tinham de fazer campanha e, portanto, de conseguir dinheiro
para isso, o que os tornava vulneráveis ao poder econômico, diziam os “contra”.
Vulneráveis ao poder econômico todos nós, mortais, sempre somos, respondiam os
“a favor”, e, sendo assim, preferimos que o nosso juiz vulnerável ao poder
econômico possa ser destituído por quem o elegeu se não honrar seu mandato com
um bom comportamento.
A norma mais sagrada do novo regime, que, não por acaso,
chama-se “democracia representativa”, é a da fidelidade da representação do
verdadeiro dono do poder – o povo –, que deve estar institucionalmente armado
para fazer valer esse seu poder hegemônico. Por isso mesmo todos os cargos do
funcionalismo público que têm por função fiscalizar o governo (Ministério
Público e outros) ou prestar serviços diretos ao público (a polícia, entre
outros) são, desde o início, diretamente eleitos pelo povo.
Como a maior preocupação inicial dos fundadores era, porém,
evitar a volta da monarquia, os mandatos desses representantes, no desenho
original, foram excessivamente blindados pelo tempo que durassem. Essa incolumidade
logo mostrou seus dentes. Intocáveis por quatro anos, os políticos e
funcionários corrompidos tinham tempo para se locupletar antes que os seus
representados pudessem alcançá-los na eleição seguinte. Resultado: pelo final
do século 19, o sistema estava apodrecido dos pés à cabeça, fazendo lembrar em
tudo o Brasil de hoje.
A resposta, dada nas reformas iniciadas na virada para o
século 20 que tomaram por base o remédio que a Suíça encontrara 40 anos antes
para o mesmo problema, foi rearmar os cidadãos para atuarem diretamente contra
os maus representantes. Eleições distritais puras para tornar transparente a
relação entre cada representante e os seus representados, direito à retomada
dos mandatos (recall) e referendo das leis vindas dos Legislativos, direito à
iniciativa de propor leis que os Legislativos ficam obrigados a processar,
eleições periódicas “de retenção” de juízes nos seus poderes a cada quatro
anos. Eles podem ser indicados pelo Executivo, dentro de regras estritas, mas o
povo os julga a cada quatro anos, o que tira o controle popular da porta de
entrada, que tinha os inconvenientes acima descritos, e o reposiciona na porta
de saída.
No Brasil, onde o sistema eleitoral não permite saber quem
representa quem e o povo deixa de ter qualquer poder sobre o seu representante
no momento em que deposita o voto na urna, as leis são feitas para os
legisladores e contra os legislados, que têm de engoli-las do jeitinho que
vierem. No mundo que funciona, toda lei pode ser desafiada e tem de ser chancelada
por quem vai ter de cumpri-la antes de entrar em vigor. Por isso todo mundo,
lá, respeita a lei e o povo todo zela pelo seu cumprimento e, aqui, todo mundo
acoberta o desrespeito às leis porque elas são fundamentalmente ilegítimas.”
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