“Os ratos e o povo
Geraldo Miniuci
Certa vez, lá pelos idos de 1522,
na comuna francesa de Autun, região da Borgonha, ratos invadiram um silo e
comeram parte da colheita de cevada que ali se guardava. Os prejudicados pela
ação daqueles animais dirigiram-se ao tribunal eclesiástico e formalizaram
reclamação contra “alguns ratos da diocese”, acusando-os de haverem cometido
delito de alta gravidade. A ação foi recebida, a intimação, expedida, e um
defensor, nomeado. No dia da audiência, diante do não comparecimento dos ratos
em juízo, o advogado, lançando mão de argumentos processuais e invocando a
noção de justo processo, alegou que aqueles animais não foram corretamente
intimados: afinal, considerando que ratos viviam dispersos pelos campos afora
ou, senão, em vilas e vilarejos, uma única convocação não seria suficiente para
alcançá-los. Além disso, a intimação fora dirigida apenas a alguns ratos e não
a todos, sendo necessário especificar, então, quais deles estavam sendo
acusados.
O tribunal aceitou os argumentos
da defesa e determinou nova convocação, desta vez a ser lida nos púlpitos de
todas as igrejas da região e dirigida a todos os ratos. Novamente, eles
deixaram de comparecer; o defensor requisitou, então, prorrogação do prazo,
alegando que, dada a sua dispersão pelos campos, os ratos não poderiam
preparar-se para uma grande migração sem que lhes fosse concedido algum tempo
adicional. O pedido foi aceito, mas, apesar de prorrogado o prazo, os animais,
como da outra vez, não compareceram na data prevista.
O defensor procura, então,
justificar a ausência dos acusados alegando que deveria ser reconhecido aos
ratos o mesmo direito que então se reconhecia às pessoas naturais de não
cumprir convocação feita para comparecer a local ao qual não poderiam chegar em
segurança. Nesse sentido, argumentou que, sendo notoriamente detestados por
toda a gente, os ratos estariam sujeitos a diversos tipos de perigos por onde
passassem em seu trajeto rumo ao tribunal. Não bastassem as pessoas que os
temiam e odiavam, havia também os gatos que, além de inimigos naturais, eram
aliados dos reclamantes, razão pela qual o defensor exigiu medidas de proteção
para os acusados, requerendo que os autores da ação fossem obrigados, sob penas
severas, a conter seus gatos. Embora tenha indeferido o pedido, o tribunal, não
sendo capaz de estabelecer o período dentro do qual os ratos deveriam
comparecer em juízo, extinguiu o processo.
Relatada por William Ewald, no
artigo “Comparative Jurisprudence: What Was It Like to Try a Rat?” (University
of Pennsylvania Law Review, Vol. 143:1995, pp. 1889-2087), e resumida por mim
no jornal Estado de Direito, sob o título “Quando os animais ocupavam o banco
dos réus” (Estado de Direito. nº. 35, ano VI, 2012, ISSN 2236-2584, p. 16),
essa história pode parecer absurda para uma pessoa que vive nos dias atuais,
mas, por isso mesmo, ela nos obriga a olhar para os nossos tempos, como se
fossemos observadores externos, e a perguntar se, hoje, não temos condutas e
valores que poderão parecer bizarros no futuro.
Se achamos estranha a ideia de
processar judicialmente ratos, o que dirão os observadores do futuro sobre o
ordenamento político-social dos dias de hoje, em que a humanidade se encontra
dividida em Estados, separada por fronteiras, e em que as noções de “povo” e de
“nação” têm um papel fundamental na constituição do ordenamento? Que lhes
parecerá uma sociedade cujos fundamentos se encontram numa invenção humana
denominada “nação” e num conceito de “povo” que com ela por vezes chega a se
confundir?
Os dois termos, povo e nação,
comportam dois sujeitos: de um lado, há um sujeito coletivo, abstrato; de
outro, existem os sujeitos individuais que compõem o sujeito coletivo.
Referências a coletividades fazem tábula rasa dos sujeitos individuais,
tornando-os pessoas sem face, sem gênero, sem classe social, sem raça, mas
apenas com uma identidade: aquela da sua nação. O termo “povo brasileiro”, por
exemplo, refere-se a um sujeito coletivo formado por sujeitos individuais de
nacionalidade brasileira. Pouco importam as especificidades de cada pessoa ou o
grupo social que faça parte dessa coletividade: todos são brasileiros.
Isso significa que a expressão
“povo” pode ser usada para promover generalizações em dois níveis: no nível do
sujeito coletivo, ao qual são atribuídas determinadas características, e no
nível do sujeito individual, de quem se espera a reprodução das características
do sujeito coletivo ao qual pertence. Noutras palavras, se a uma dada
coletividade nacional forem atribuídas qualidades como, por exemplo,
pontualidade e honestidade ou, o seu oposto, impontualidade e desonestidade,
espera-se vê-las reproduzidas pelos membros dessa coletividade, que serão
considerados, conforme o caso, pontuais ou impontuais, honestos ou corruptos.
Por ignorarem particularidades,
generalizações, necessárias para a constituição do sujeito coletivo e da
identidade do sujeito individual, azeitam o caminho para o preconceito, a
intolerância e as decorrentes tensões sociais. Não somente fronteiras
políticas, mas igualmente fronteiras psicológicas são estabelecidas entre as
pessoas; o mundo passa a ser visto exclusiva e naturalmente sob o prisma do
binarismo nacional/estrangeiro. Passaporte, visto de entrada, revalidação de
diplomas obtidos em universidades estrangeiras, proteção do mercado interno, copa
do mundo, hino nacional, extrema direita, orgulho individual de ser um filho da
pátria e a disposição de matar ou morrer em nome dela, nada disso nos parece
estranho, como tampouco eram estranhos os julgamentos de ratos para aqueles que
viveram na Idade Média ou no Renascimento. Eventuais galhofas que se façam
daquelas pessoas serão fruto da ignorância e da pretensão de achar que nossa
geração alcançou o ápice da evolução humana, e que o nosso tempo é a conclusão
de um processo histórico, e não apenas parte dele.
Em suma, levar animais a
julgamento, condená-los ou absolvê-los pode parecer tão bizarro quanto:
orgulhar-se da nação; orgulhar-se de si mesmo, por ser membro dessa nação;
enrolar-se na bandeira; tomar decisões políticas que protejam o que for
nacional, discriminando o estrangeiro; construir muros entre países; fazer a
apologia da soberania perante problemas transnacionais; ou senão, apenas para
ficar com mais um exemplo de bizarrice, prestigiar os próprios interesses em
detrimento dos demais, colocando-se, sempre, em primeiro lugar, tudo isso em
nome de uma ideologia historicamente determinada e fadada ao desaparecimento.”
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AGD Comenta:
Eu não entendo de juridiquês,
mas, sei o que é um rato. Foi isto que me chamou a atenção no texto anterior,
que vi no Estadão. Assisti nos últimos dias uma sessão do STF que procurava
decidir sobre o Estatuto da Delação (ou colaboração premiada). Terminou ontem.
Antigamente, em minha terra,
delatar não era uma coisa nobre. O delator era o chamada “caguêta”,
que é uma corruptela de alcaguete, que não tem um bom significado nos
dicionários. Mas, com a evolução de nossa sociedade, onde há crimes que só um bom
“caguêta” resolve, o estatuto da “caguetagem” passou a se chamar “Delação Premiada”, porque pode dar prêmios a quem dedura
seus comparsas.
Então, este instituto, pode ser
dito, é uma ação que se passa entre “ratos”, sem querer ofender os
famintos animais do texto acima, que roubaram a colheita da cidade de Autun. E
a grande discussão que ouvi no TSE foi como tratar esta transação entre “ratos”, dentro do ponto de vista do sistema
judiciário, que resolveu negociar com eles para pegar seus comparsas que talvez
não sejam ratos, mas, vamos dizer, hienas.
No fundo, no fundo, a pouca
profundidade destes meus comentários não faz jus ao significado do texto do Geraldo
Miniuci, que tenta mostrar, quão carente de conteúdo tem as diferenças humanas,
quando coletivizadas de alguma maneira.
Noções como nação, povo,
bandeira, estrangeiro, soberania e
outros soam tão difíceis de se entender quando não se associam indivíduos a
eles, que se tornam quase inúteis. O que é realmente o povo brasileiro, tão
cantado em prosa, verso e chavões por muitos? O nordestino ainda hoje fugindo
da seca ou paulista hoje fugindo do desemprego?
No final das contas, tudo que
conta é concreto viver de cada uma, sejamos ratos, humanos ou hienas.
No entanto, a sessão prolongada
do STF, terminou deixando os ratos em paz, e também as hienas. Chegou-se à
conclusão de que a nação, seja lá o que isto significa, não pode continuar sem
eles.
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