Por Carlos Sena (*)
Joel passou a noite de natal
dormindo num banco de praça. Ele era um rapaz tímido que Residia na bela cidade
de Gramado, no Rio Grande do Sul. De vida pacata, limitava-se a estudar a noite
e trabalhar durante o dia como coletor de maçãs numa imensa plantação nos
arredores. Certa manhã, quando estava em plena colheita, um grupo de turistas
adentra na fazenda – prática bastante conhecida no sul para que os turistas
conheçam as plantações e todos os cuidados que se devem ter no cultivo das
maçãs. Foi aí que Joel foi surpreendido com os olhares insinuantes de Jéssica.
Linda moça. Olhos azuis, loira, alta e elegante, a moça se aproximou de Joel e
lhe deu “bom dia”. O rapaz até pensou que nem fosse pra ele. Chegou a olhar pra
trás, tamanha foi a surpresa de ver aquela moça linda lhe cumprimentando. Não bastando o cumprimento, Jéssica chegou
perto de Joel e apertou sua mão olhando fundo dentro dos seus também lindos olhos
verdes. Joel era daquele tipo meio grego muito comum naquelas regiões. As
“maçãs” do rosto eram proeminentes e seus lábios vermelhos que até se poderia
pensar que era algum tipo de maquiagem.
No final da visita, Jéssica não
se fez de rogada. Chegou perto de Joel e lhes deu um papel com o nome do hotel
em que se encontrava, bem como um numero de telefone celular e o dia em que ia
embora da cidade. Joel ficou sem entender, pois, certamente, como moço simples,
não tinha consciência de que era possuidor de tanta beleza. Beleza que foi
capaz de deixar a moça completamente apaixonada. No dia seguinte, surpresa:
Jéssica nem esperou pela possível “visita” de Joel, simplesmente apareceu de
novo lá na plantação de maçãs em que o rapaz trabalhava. Ele corou.
Desconcertou-se diante da moça, principalmente porque não tinha a consciência
de que se tratava de uma paixão, mesmo um simples namoro. Algo como a princesa
que se apaixona pelo plebeu. De tanto insistir, Jéssica consegue a duras penas
que Joel fosse ao seu encontro na pracinha da cidade que ficava perto da igreja
matriz. Joel era simples, mas não era burro. Logo se entregou àquela aventura
que entrara na sua vida como um “presente de natal”. Desse encontro, Jéssica se
desvencilhou da excursão e ficou com Joel em plena lua de mel. Faltava menos que
uma semana para o natal e os dois se prometeram passar juntos. Ele prometeu a
Jéssica que iria lhe mostrar o natal luz de Gramado que o Brasil inteiro admira
e quer ver. Viveram dias tão intensos que Joel muitas vezes perdia o sono e se
tocava para saber se aquilo que estava vivendo não era um sonho. Aproximando-se
o natal, Joel se sentiu na obrigação de levar a sua “princesa” para a ceia de
natal em sua humilde residência. Conversou com seus pais e irmãos e todos
ficaram sem saber o que fazer, pois moravam no sítio em casa humilde e sem
conforto. Mas, Joel, quis cumprir o prometido. Pediu um adiantamento de
dinheiro ao seu patrão na fazenda e fez uma boa feira. Mandou dar uma pintura
na casa, comprou uma TV de Led e até uma mesa nova ele adquiriu à prestação.
Por outro lado, Jéssica, diante do convite do seu “amor dos olhos verdes” –
assim era como ela o chamava, ficou entusiasmada para conhecer a família do seu
amor. Foi com ele e comprou diversos presentes de natal para a família de Joel
que, por sua vez, estava preocupado com a recepção que seus familiares dariam a
sua “princesa”. Naquele ano, o natal coincidiu com uma sexta-feira, ou seja, um
feriadão estava para acontecer e de forma esplendorosa na vida do jovem e
pobretão rapaz.
Na quinta-feira, antevéspera de
natal, os dois jantaram num chique restaurante gaúcho, regado a um bom vinho e
com direito a luz de velas e tudo mais. Foi no restaurante, jantando, que
combinaram a hora de ir apanhar Jéssica no hotel rumo ao sítio de Joel: 18
horas! Joel alugou um táxi para conduzir sua namorada até a casa de seus pais,
onde residia num sitio a 20 km de Gramado. Antes de tudo, ligou para os seus
pais e procurou saber se tava tudo em ordem para a ceia de natal. A primeira
ceia de sua vida tão cheia de simbolismos e romantismos para o jovem,
apaixonado e belo rapaz. Joel não sabia o que o destino ainda lhe reservara: no
horário combinado com a namorada, chegou de táxi e foi ligar para o quarto de
Jéssica. No balcão, o atendente do hotel lhe entregou um bilhete com os
seguintes dizeres: feliz natal! Não me queira mal, mas tive que partir. Você é
um rapaz muito belo, mas eu não pude seguir além de tudo que vivemos tão
intensamente. Não sou do seu plano espiritual e, embora sabendo que você não
acredita, eu vim em missão especial e tenho que voltar... Quem sabe no outro
lado da eternidade a gente não volta a se encontrar. Após a leitura do bilhete,
Joel dispensou o taxi e se sentou no banco da pracinha que os dois se
encontraram no primeiro dia. Atordoado, Joel não sabia o que fazer. Também não
atendia às chamadas do celular feitas por seus familiares preocupados com a
demora. Joel ficou ali, naquele banco solitário. Consigo apenas os pensamentos
e as tentativas de compreender aquele bilhete tão carregado de mensagens complexas
de cunho espiritual. Já perto da meia noite, um mendigo chegou perto do banco
em que, sozinho, Joel conversava consigo mesmo. “Boa noite, meu jovem”! Joel
olhou de soslaio para o mendigo, mas, nada respondeu. Fique calmo, disse o
mendigo. Você parece preocupado, mas não se esqueça de que tudo tem um sentido
na vida, como também, tudo tem seu tempo. Lembra-se da passagem bíblica que diz
“há tempo de plantar e de colher”? Pois é, meu jovem. Hoje, véspera de natal,
você está sendo convidado a plantar. Depois, se o plantio for bem feito, você
colherá fartamente para saciar sua fome e sede de sabedoria. Eu já vou. Como
você ios vê, esse é meu destino: chegar sempre na hora certa perto das pessoas
desesperadas, decepcionadas com a vida. Joel, que estava cabisbaixo, decidiu
olhar em volta e... O mendigo havia sumido e um rastro de luz ficou em seu
caminho feito fumaça... Ali mesmo, no banco da praça, Joel adormeceu e
amanheceu. Acordou com o gari varrendo a praça. Saiu por ali sem saber direito
para onde ia. No seu celular inúmeras chamadas dos seus familiares que estavam
também, sem dormir, por não saberem o que acontecera com Joel. Seguiu o jovem
rapaz cabisbaixo, “chutando lata” rumo ao sítio onde morava. Seus familiares
ficaram boquiabertos sem saber o que dizer diante do acontecido. Como se
tratava de pessoas católicas, logo se esboçou raciocínios tipo: coisa de
satanás, do demo. Vamos mandar rezar uma missa. Pode ser uma alma penada!
O tempo passou e depois daquela
noite a vida de Joel não era a mesma. A saudade de Jéssica era dolorida. Seu
corpo mais parecia ter levado uma surra. Meses depois, ele ainda se assustava
com as ligações do celular, pois imaginava que a qualquer momento Jéssica iria
lhe ligar. Passados cinco anos, ele foi aprovado num concurso publico para a
cidade de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Lá conseguiu se desvencilhar
um pouco mais daquela grande decepção. Decepção? Ele já conseguia ter dúvidas
acerca do ocorrido e tinha condições de compreender as possibilidades de ter
sido mesmo uma “coisa do outro mundo” em plena noite de natal. Já cursando
faculdade de Gastronomia – ramo que gostava muito – conheceu várias outras
garotas. Nenhuma, contudo, lhe teria mexido tanto quanto Jéssica. Certa noite
teve um sonho sintomático: um anjo lhe chamado para conhecer um centro espírita
que ficava ali, pertinho do seu trabalho. Contudo, não deu muita importância ao
sonho. Imaginou que fosse ainda o seu inconsciente querendo se libertar do
trauma vivido em Gramado. Recorrente, o sonho voltou a lhe “perturbar” por
várias outras noites. Finalmente, passando pela calçada o centro espírita de
Bento, recebeu um folheto do centro espírita contendo todas as programações:
dia de estudo bíblico; dia de doutrinamento, reunião pública, consultas, água
fluidificada, etc. Conversando acerca disso com uma colega de trabalho a mesma
lhe disse que frequentava aquele centro e que se ele topasse ela iria com ele a
uma reunião. Duas semanas depois, Joel estava lá, com sua amiga assistindo a
sua primeira reunião doutrinária Cardecista. Saiu encantado e sentiu, durante a
reunião, um “peso” muito forte em suas pálpebras. Sonolento, Joel ficou meio “grogue” e, em segundos, viu em sua tela
mental a imagem de Jéssica. Suou frio. Seu semblante ficou extremamente
transfigurado – misto de medo com desconfiança daquilo tudo que lhe era tão
novo.
Em casa, ficou pensativo. Dormiu
pouco diante da imagem de Jéssica que, rapidamente, povoou sua tela mental. No
dia seguinte conversou muito acerca da doutrina e do que havia sentido no
centro espírita. Gradativamente a doutrina espírita foi se infiltrando na vida
de Joel. Ele foi se imiscuindo nas programações e, belo dia, foi convidado pelos mentores da casa para participar das
reuniões doutrinárias. A partir de então, descobriu que aquele era seu caminho,
pois só através da doutrina espírita havia encontrado explicação para uma série
de coisas da sua vida, inclusive acerca daquele malfadado natal.
Conhecido nas redondezas, pelas
comunidades espiritistas, Joel, aos poucos, se notabiliza como orador espírita
dos melhores.
Certa feita, numa seção
mediúnica, ele consegue através do mentor espiritual Emanuel, que era o patrono
do centro, uma “conexão” com espíritos amigos que lhe conduziram para uma
“viagem” a outro plano. Nessa “viagem” Joel, finalmente, consegue a explicação
para aquele triste natal que quase o fez perder o juízo. Conseguiu,
entrementes, compreender que Jéssica em outras vidas teria sido ele mesmo que,
numa véspera de natal, teria deixado sua namorada num quarto de hotel a espera
dele em pleno natal. Portando, não foi
difícil para Joel entender que estava “pagando” com a mesma moeda. Teve a
certeza de que ele, em outras vidas, abandonou uma jovem moça bonita que ficou
a sua espera numa véspera de natal. Pior: a moça que na outra encarnação
esperou por “Joel” suicidara-se! Isso se converteu num débito muito alto a ser
pago em outras encarnações...
Quando a cessão mediúnica
terminou Joel, cansado, extasiado, deitou em sua cama solitária e dormiu
profundamente. No dia seguinte, leve, sentiu que seu “ciclo” de vida tinha se
completado. A partir daquele dia, sua vida seguia mais definida. Completou seu
curso universitário e foi passar o natal, cinco anos depois, com sua família lá
no sítio em Gramado. Levou consigo sua nova namorada Aline. No jantar de natal,
noivou diante da família e deixou marcado o casamento para o natal do ano
seguinte...
Ps.: Qualquer semelhança com a
realidade não será mera coincidência.
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(*) Publicado no Recanto de Letras
em 12/12/2013
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