Por Carlos Sena (*)
Bom dia, Recife. Hoje eu acordei
com saudades de você. Corrijo-me: com mais saudades. Então pensei: se Recife
fosse uma pessoa eu iria fazer uma carta pra ela. Uma carta saudosa, pedindo
colo, pedindo cafuné, pedindo... A Recife eu pediria tudo, mesmo que ela não me
mandasse nada, mas vindo dela eu saberia administrar. Tudo bem que dizem que
Recife é uma cidade cruel. Sei lá. Dizem que essa alcunha se deu quando alguns
líderes políticos achando que mandavam nela sempre levavam na cara. Pensavam
que Recife fosse molenga, meio “Maria vai com as outras”. Isso porque eles (os
politiqueiros) apresentavam um candidato e, quais coronéis em seus currais,
achavam que o povo do Recife ira votar fechado naquele candidato. Rasgavam a
boca! Sempre Recife dava o troco: “eu sou libertária” dizia através das urnas.
Mas, hoje, o meu assunto é outro. É que eu queria mesmo escrever uma carta como
se Recife fosse um ser – assim mesmo: sem ser homem nem ser mulher, pois isso é
coisa dos humanos dicotômicos para quem tudo tem que ser branco no preto.
Recife ser, sentimento, mulher, homem, gays, pretos, pobres. Reficepina,
Recifeboaviagem, Recifelinhadotiro, Recifecoque, Recifeespinheiro, Recifetudo.
Assim mesmo: tudo junto e misturado.
Bom dia, Recife. Assim mesmo,
como se personificada fosse, como se mulher fosse:
Brasília, 7 de abril de 2013
Querida Recife
Faz tempo que não te escrevo, mas
não é por nada especial. São apenas saudades de ti. Hoje eu me acordei assim
meio com banzo. Ah, como eu gosto dessa palavra! Ela me remete a um sentimento
de saudade que não é apenas isso, mas aquilo tudo que a gente sente quando está
perto de ti, ou junto de ti. Soube que por aí tá uma seca da peste e nosso povo
está tomando banho uma vez ao dia porque a água está racionada. De novo? Sabe,
Recife, a gente que tá distante, imagina que você – assim tão cortada por
pontes e rios nunca sentiria falta d’água nas torneiras. Quando eu estava ai
fiquei impressionado com a indústria dos carros pipa! Como eu tenho mesmo a
língua de trapo, acho que tudo seja também um conluio com esses empresários da
água. Será, Recife, que a mesma indústria da seca não é quem patrocina o
racionamento de ti? Deixa pra lá. Deixo não! Como podes sofrer tanto depois de
tantos séculos de civilização e cosmopolitismo? Ah, por falar em sofrimento,
como vão os nossos morros e as nossas palafitas? Vamos ver se seu atual marido
faz mais coisas nesse sentido. Vamos ver também se ele resolve o problema do
teu transito e da tua mobilidade. Pelo menos antes de se casar contigo ele te
prometeu tanta coisa que a gente até pensava que tu estavas te casando com um
santo. Deus queira que ele não seja santo mas obre milagre. Muitos obraram, mas
bosta mesma. Recife, tua ainda fedes? Por aqui o povo ainda diz assim:
ReciFEDE. Eu me arreto e caio de pau quando vejo alguém falar de ti, mesmo com
razão. Pois é, amiga, só quem pode falar de ti são teus amigos de verdade e
teus filhos. Nem teus maridos e ex-maridos principalmente, poderão falar de ti.
Por falar em ex-marido, como você pôde aguentar aquele baixinho abusado? Olha,
amiga, ainda bem que você soube pedir o divórcio! Agora, com um novo marido,
esperamos que ele te deixe mais bonitinha. Sabe, Recife, tu estás muito
abandonada, largada. Você precisa mudar esses vestidos fora de moda, dar um
corte no cabelo que o Capibaribe banha. Pede ao Bloco das Flores para se
instalar em tuas margens; pede ao Vassourinhas para varrer a Avenida
Guararapes; pede aos pintores para pintar os prédios do centro, desentupir as
galerias podres e cheias de entulhos. Sabe, Recife, o teu rio – esse mesmo que
João Cabral utilizou em seus poemas, merece ser bem tratado. Já pensou se ele fosse
utilizado como meio de transporte fluvial? Neste sentido, soube que teu atual
marido já está investindo na execução do processo. Como vassoura nova varre
bem, espero que ele continue sendo novo e que, diferente de alguns outros, seja
bom do começo ao fim da vida de vocês... Sabe, amiga, aqui pra nós: tu és muito
rapariga, mulher! A cada quatro anos tu mudas de marido, vai gostar de casar
assim na casa do diabo. Mas, acho melhor assim. Prefiro você se casando a cada
quatro anos a te ver sendo escrava daqueles teus maridos de nomes esquisitos:
interventores! Deus nos livre deles e de tudo de ruim que te puderam
proporcionar. O melhor é que você, amiga, sabe ser rapariga. Porque é uma
rapariga estilizada com papel passado e tudo, diferente de outros tempos,
lembra? Pois bem. As saudades são tantas, mas eu acho que vou ficar por aqui.
Enquanto te escrevia essa missiva, um CD de frevos de bloco me nutria os quatro
cantos da minha vírgula. Não sabe o que é virgula? – É o meu apartamento aqui
em Brasília. Ele é tão pequeno que eu só acho legitimo chama-lo assim de
vírgula. Até porque a vírgula é muito enxerida, já percebeu? Se você escrever
um texto e quiser abusar dela ela vai e, no geral, dá tudo certo. No fundo ela
é meio puta como tu e como tantas outras maravilhosas. Vixe, mas eu não disse
que ia terminar? Sei não. É que fui falar da puta da vírgula e aí deu nisso.
Mas tenho a desculpa de que hoje é domingo. Por aí deve estar a praia lotada e
as igrejas vazias e as vadias cheias e as cheias sem guia... Tá vendo, é um
trocadalho dum carilho, pois afinal, todos de conhecem pela irreverência e pelo
sentimento libertário tão posto pelos nossos cantores, pintores, escultores e
pinguços. Ah, os teus pinguços! Principalmente os de “esquerda”! Pinguço de esquerda são aqueles para quem
Gonzaginha escreveu Mesa de Bar (eu acho), mas eles são ótimos, embora mais
prosódicos do que episódicos.
Falando sério, Recife. Agora vou
parar de verdade. Por coincidência a musica (frevo de bloco) que agora toca é
“Recife cidade do frevo, dos blocos afamados e do maracatu” (...). Não me leve
a mau os palavrões. Chamar-te de puta, de rapariga é reconhecer-te
revolucionária. É reconhecer que só sendo o Diabo se chega a Deus e, sendo Deus
a gente se perde pelas possibilidades de não saber viver distante da putaria.
Bom Domingo.
Carlos Sena.
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(*) Publicado no Recanto de
Letras em 07/04/2013
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