“Criminalidade e democracia
Por Fernão Lara Mesquita
Em todos os tempos e todos os
lugares essa gente do poder voa quando o povo lhe dá asas.
O que leva o ser humano ao crime
é uma questão controvertida, mas a da segurança pública é bem mais objetiva.
Nós com 29,5, eles com 4,2 assassinatos por 100 mil habitantes, apesar de todas
aquelas armas, as idas e vindas dos Estados Unidos no tratamento desse problema
podem ter algum valor didático.
Na esteira da luta pelos direitos
civis nos anos 50 e 60 a Suprema Corte, refletindo a “narrativa” política
dominante na época, aprovou medidas para reforçar os direitos dos condenados.
Sendo o crime “consequência da má distribuição de renda” e a política penal
“enviesada por preconceitos de classe e raça”, era hora de o sistema se voltar
precipuamente para a reabilitação das “vítimas da sociedade”.
A nova orientação resultou num
declínio acentuado da população carcerária, mas a partir do meio da década as
taxas de crimes violentos (incluem mais que assassinatos) começaram a subir.
Foram de 200,2 por 100 mil em 1965 para 363,5 no fim da década e 487,8 por 100
mil em 1975.
O movimento pelos direitos das
vítimas do crime decolou junto com o de libertação feminina, que denunciava as
Cortes por culparem as vítimas nos crimes de estupro. Mas muito mais gente se
sentiu embarcada nessa inversão. Surgiam associações por todos os lados
exigindo o fim do prende e solta do Judiciário. Os “Pais de Crianças
Assassinadas”, as “Mães Contra a Direção Alcoolizada”, a “Organização Nacional
de Assistência às Vítimas do Crime” (NOVA)...
No mesmo 1975, Robert Martinson,
do New York City College, publicou a primeira pesquisa nacional séria de
resultados de programas de reabilitação. Eram praticamente nulos. Os fatos
diziam que era impossível prever racionalmente a periculosidade futura de
alguém pelo seu comportamento na prisão e que a reincidência era praticamente a
norma para os criminosos que tinham tido penas encurtadas. Àquela altura, com
todos os mecanismos de redução e de “penas alternativas” os condenados estavam
cumprindo apenas 37% de suas sentenças na média nacional. O movimento focou,
então, no conceito de “Veracidade das Sentenças”. Tanto para dar satisfação às
vítimas quanto para desincentivar o crime, dizia-se, era necessário deter o
prende e solta e o faz de conta do Judiciário e fazer com que as sentenças
expressassem as penas que de fato seriam cumpridas.
Mas a execução foi mais difícil
que a formulação da ideia. A discussão arrastava-se ainda quando em 1981, com
Reagan presidente, os instrumentos de democracia semidireta, que andavam meio
esquecidos, voltaram triunfalmente à cena com a revolta nacional contra impostos
iniciada pela Proposition n.º 13 (dê um google que o caso é ótimo), uma lei de
iniciativa popular contra um aumento abusivo do imposto sobre propriedade
(IPTU) na Califórnia. Rapidamente o exemplo migrou para a área da segurança
pública. Em 1982 os eleitores da Califórnia aprovaram, com a Proposition n.º 8,
uma “Carta dos Direitos das Vítimas do Crime”. Ela começava por afirmar
oficialmente que “a prisão serve para punir os criminosos”. Além de baixar a
idade para tratar como adultos os criminosos juvenis violentos, ela estabelecia
o conceito “Três Crimes e Você está Fora” (“Three Strikes and You’re Out”),
dobrando a pena para o segundo e dando prisão perpétua a quem cometesse o
terceiro. Na sequência, 21 Estados passaram leis populares impondo sentenças mínimas
e critérios rígidos para a progressão de penas. “Comitês de sentença”
independentes e instâncias de recurso contra reduções determinadas por juízes
foram tentados. E a população carcerária começou a aumentar.
Com a “Epidemia do Crack”, que lá
ocorreu nos anos 80, a situação tornou-se explosiva. Antigos hospitais,
quartéis e depósitos foram transformados em presídios, às pressas. Estados como
Michigan e Iowa passaram problemas tão graves que acabaram por criar mecanismos
de “progressão de pena de emergência”, libertando prisioneiros escala de crimes
acima toda vez que os níveis máximos de lotação dos presídios eram
ultrapassados.
O movimento de refluxo teve
início com a diferenciação entre traficantes e usuários e o estabelecimento de
penas alternativas só para estes. Passo a passo, anos 80 afora, a nova
tendência – “a segurança da sociedade vem em primeiro lugar e a conveniência do
infrator deve estar subordinada a ela” – foi-se firmando com as penas de
reclusão aumentando para crimes violentos e as alternativas se generalizando
preferencialmente para crimes contra a propriedade.
Reconhecendo que o pêndulo tinha
ido longe demais na volta do excesso de leniência, os californianos, em
reformas sucessivas, também acabariam por revogar definitivamente a regra dos
três crimes, em 1996. Mas com as experiências acumuladas o país chegou, em
1994, ao Violent Crime Control and Law Enforcement Act, assinado por Joe Biden,
que recomendava 60 reformas incorporando o conceito de “Veracidade das
Sentenças”, criando restrições mais bem definidas para a progressão de penas,
institucionalizando os comitês de condicional para substituir a solitária
discrição do juiz nessa tarefa, criando um fundo nacional para a construção de
prisões e contratação de policiais, definindo crimes de ódio e dando outras
providências.
As reformas nos Estados e nos
municípios prosseguiram, então, a partir de um novo patamar mais claro e seguro
para todos, pois o sentido do sistema de democracia semidireta é imitar a
condição humana de mobilidade e ajuste permanente. O que ele tem de melhor é a
força para trazer de volta à Terra as autoridades que o poder sem limites põe
voando na estratosfera e obrigá-las a atacar os problemas que afligem a
população pela vertente que lhes for indicada por ela. O resto acontece por
ensaio e erro, como é adequado à nossa espécie, que, para além de estar sempre
mais propensa ao erro do que ao acerto, vive num ambiente tão dinâmico que cada
“solução” é sempre apenas o início do próximo problema.”
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