“A indulgência perpétua das
castas prostitutas
POR JOSÉ NÊUMANNE
Vira e mexe alguém vem do nada
falar em reforma política no Brasil. O ex-presidente Fernando Henrique
chamava-a de “a mãe de todas as reformas”. O ex-presidente da Câmara dos
Deputados Eduardo Cunha empenhou-se pessoalmente em sua aprovação. Eleição vem,
eleição vai, algum remendo é feito e a colcha de retalhos nunca fica pronta.
Agora, ela ganhou foros de urgência, tem de ser aprovada a toque de caixa. Para
quê? Para garantir direitos da cidadania é que não é.
O presidente do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes,
vai jantar dia sim, dia talvez, com o presidente da República, Michel Temer, e
eles usam o poder e a majestade de suas presidências para discutir os termos
dela. Nenhum deles tem autoridade para tanto. Um chefia o Poder Executivo. O
outro participa do mais elevado colegiado do Judiciário. Mas as leis são feitas
no Poder Legislativo. Por que diacho esses senhores discutem uma mudança de
cânones à qual não são chamados a participar? Um é professor de Direito
Constitucional e o outro julga causas que chegam à última instância da Justiça.
Ambos têm muito o que fazer em suas alçadas. Por que não se cingem a cátedra e
toga?
Na prática, no dia a dia, quem
lida com o assunto é o Legislativo. Aliás, na Câmara dos Deputados funciona uma
tal Comissão Especial só para cuidar disso. Demos, então, a palavra aos
encarregados de emendar dispositivos em cuja feitura Temer e Mendes nada têm
sequer de palpitar. E o que dizem os que têm a dizer? O presidente, deputado
Lúcio Vieira Lima (PMDB-BA), teve a chance de explicar que “a reforma política
está sendo feita por causa do financiamento. Foi por isso que começamos a
discutir sistema eleitoral, voto em lista, distritão. Agora tudo é para aprovar
o fundo, porque sem ele não tem dinheiro”. Ah, então, está tudo esclarecido: o
que está em jogo não é a absurda matemática da composição das bancadas nem a
crise de representatividade por ela causada, mas a caixinha de esmolas.
O responsável pelo texto aprovado
na comissão não é Temer, nem Mendes, nem Lima. É Vicente, cujo sobrenome,
Cândido, é desmentido pela porca tarefa. E, como militante do Partido dos
Trabalhadores (PT-SP) e da alta cartolagem do impolutíssimo (aiaiai) futebol
profissional da Pátria em chuteiras (e não de, como proclamavam Dilma Rousseff
e Aldo Rebelo), ele já deixou clara a inutilidade de correr tanto para tentar
aprovar algo que não deve prosperar. “Aprovar uma reforma política para o ano
seguinte é impossível, porque o povo aqui (ou seja, os colegas do Congresso)
faz de tudo, menos passar a faca no próprio pescoço”. De cândido (limpo, puro,
franco), ele não tem nada.
Na vida oficial, dos gabinetes
onde se recebem propinas, e na real de botecos, onde os pobres pagam a conta da
esbórnia nacional, o buraco é mais embaixo. Com seu linguajar de boleiro, o
relator não deixa por menos e pontifica: “O povo vota num Congresso Nacional do
Brasil e quer leis da Suíça”. Sua Bolorência anda meio desatualizada: a Suíça
nunca foi o território da santidade, mas, sim, o valhacouto do dinheiro sujo e
mal lavado. Agora, não é mais. O capitalismo internacional, sob o comando dos
ganhadores da Guerra de Secessão, não admite mais a corrupção, desde que
constatou que a farra dos esgotos monetários não financia apenas o tráfico de
drogas e de armas. Mas também a engenharia financeira dos terroristas, que não
suportam a liberdade de crença nem o direito sagrado de ir e vir neste mundão
sem Deus.
E, enquanto esse mundão prospera,
o Brasil vegeta, esmagado por um Estado estroina e desavergonhado, em que não
se respeitam códigos de ética do novo capitalismo nem do velho gangsterismo.
Com um déficit de contas públicas que se aproxima de meio trilhão de reais num
quadriênio em que se limita um mandato, Pindorama se entrega aos vigaristas.
Sob bênçãos de Temer e Mendes,
Lima e Cândido, estes desejam o paraíso do carcará sanguinolento: pega, mata e
come. E não levam em conta questões comezinhas. O distritão, por exemplo, uma
espécie de distrital do B – B de Brasil, bunda e besta –, foi adaptado do voto
de lista, aquele em que os chefões dos partidos se reservam um lugar à sombra
no foro, no qual se escondem de Moro. Não passou o listão, enfiam o distritão
goela abaixo, porque sabem que, de repente, dê frutos a pregação de Rinaldo da
Silva, taxista do Shopping Higienópolis, que defende o voto em mandatário
nenhum de Poder nenhum para mandato algum. E eles só oferecem o lema: “Votem em
mim, ainda que não queiram”.
Os deputados que pregam a reforma
do Cunha sob a égide do Maia esqueceram-se de contar que o fim da
proporcionalidade no voto também extingue a proporcionalidade que dá às
minorias derrotadas possibilidade de sobreviver aos vencedores de pleitos
majoritários, nos longos intervalos entre as eleições. Como garantir vaga em
comissões ou na Mesa das Casas de Leis com a abolição da proporção? Não é, de
fato, espertinho o Centrão?
E o que dizer do fundão,
fundilho, ou afundamento generalizado? Na primeira vez em que ouvi falar no
Fundo Especial de Financiamento da Democracia, deu-me vontade de me ajoelhar e
rezar o Salve Rainha. O fervor cívico passou quando fiquei sabendo que o preço
desse tipo de democracia é a eterna desfaçatez. O fundo não é de R$ 3,6
bilhões, como apregoou o nada Cândido, nem de R$ 2 bilhões, cuja pedra cantou assim
que percebeu que, na pindaíba generalizada, reduzido, o valor convenceria.
Afinal, não entram nesse falso total nem os R$ 2 bilhões do fundo partidário,
que vale no ano da eleição e no outro, de urnas fechadas e recolhidas, nem a
renúncia fiscal com que se paga o horário, que é gratuito para os espertalhões
e pago a bilhões pelos otários, que somos nós.
No bordel Brasil vale tudo, até a
venda de indulgências perpétuas por castas prostitutas.”
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