Por Carlos Sena (*)
Sempre ouvi dizer que Recife era
uma cidade cruel. A despeito de que também sempre li e ouvi dize o poema de
Ledo Ivo: “amar mulheres várias. Amar cidades só uma – Recife”... Diante do que
vimos e sentimos ontem com o Recife entregue, literalmente às águas, a gente fica
querendo encontrar o “meio” dessas composições emocionais acerca da nossa
cidade tão querida. Mas Recife, quieta, no seu canto, não me responde se é, de
fato, cruel, nem tampouco se tem os encantos todos que Ledo Ivo elaborou em sua
poesia. Fato é que Recife ignorou tudo a seu respeito e se deu ao respeito
próprio. Algo como ela dizendo pra nós: “não adianta dizer que me ama se não me
cuida”... Pelo sim e pelo não sim: sim às águas que já não eram de março, mas
de maio; sim às suas “artérias” que de tanto sofrerem com entupimentos
precisavam ser lavadas; sim a sua alma, pois no seu canto quietinha ela se
deixou levar pelas correntezas como que se permitindo “lavar a alma”... Alma
suja com as promessas dos políticos em seu santo nome em vão; alma suja ora
lavada por conta da inconsequência dos seus filhos legítimos e bastardos...
Alma suja e entupida de garrafas pet, de lixo e de promessas de cuidados mil
nunca cumpridas. Promessas paridas por políticos no afã de com ela (Recife) se
“casarem”, mas depois que a desvirginaram largaram a coitada nas noitadas sem
luz e cheias de água por todos os lados...
Quando a noite veio, Recife
atormentada queria dormir... As ruas todas se esgueiravam como se escondendo da
noite porque os gatos pardos que na noite se abrigam não apareceram. Foram para
Paris, para o Rio de Janeiro, foram Catende, quem entende? Foram para onde as
promessas não acendem velas nem candeeiros, para onde as ruas não alagam, para
onde os mistérios são dos céus onde fica o Cristo Redentor. Quando a noite veio
não veio consigo o barco da ilusão da cidade ofuscada meio sal meio cocada que
da boca do poeta se esmerou. Recife dormiu de alma lavada independente de ser
tida e havida como cruel ou amada como é por mim e por tantos e por Ledo Ivo.
Recife entregue ao lamaçal que no dia seguinte incomoda e fede. Recifede. Fede
pela degeneração prometida nos palanques
e que, estanques se removem rumo ao cais de Santa Rita ou de José
Estelita. Os cais do Recife estão solitários como os pecados pescados pelas águas
turvas e violentas que suas ruas lavaram, enquanto os homens de plantão ficam
com a cara lavada, mas sem a alma enxaguada. Porque enxaguada mesma está a alma
do Recife. Recife do túnel e do tonel: túnel que virou piscina para
leptospirose nadar, tonel de água mineral para os estrangeiros que vem pra
copa. Copa miséria. Copa do ás. Ás da copa da árvore que a água derrubou e que
as torrentes arrebentaram com o vigor da angústia e da solidão dos que sofrem
sem ter para quem acorrer...
Recife acordou, certamente, com a
cara cheia de remela, com os cabelos desgrenhados, digna de uma troça como a do
homem do cachorro do miúdo. Porque depois das chuvas como se elas fossem
tempestade, dizem vir a bonança. Onde mora a bonança, gente? Digam onde essa
tal de bonança mora! Ela demora a chegar, mas deveria ter vindo no rolo
compressor das águas que lavou o corpo do Recife e enxaguou sua alma.
Calma, gente. Foi mais ou menos
com esse sentimento que me acordei hoje, após um tremendo pesadelo em que nossa
querida Recife se deixava, literalmente, levar pelas águas e virava um só
mar... Que bom que só foi no sonho, porque da janela do décimo andar logo
cedinho consegui ver Recife única, onipotente, viva com seu povo de novo na rua
retomando a vida... Até o próximo “dilúvio”...
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(*) Publicado no Recanto de
Letras em 18/05/2013
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