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terça-feira, 1 de julho de 2014

O tempo e a eternidade




Por Nelson Rodrigues

Amigos, o velho Barbosa está fora do Brasil. Mas não importa e explico: — a ausência do verdadeiro craque é tão ativa, militante e absorvente como a presença viva. Só o perna de pau consegue ser esquecido. Um Barbosa, não. Está na longínqua e quase inexistente Escandinávia e continua sendo fato, continua sendo notícia. Ausente dá uma sensação de presença física.

O velho Barbosa! Digo “velho” e já retifico: — não é velho coisa nenhuma. Amigos, não existe a menor relação entre Barbosa e a sua idade. Ou melhor: — idade e pessoa não coincidem no arqueiro vascaíno. Ele tem o quê? Uns 37, 38 anos. Para as outras atividades, o sujeito pode ter isso ou mais, impunemente. Mas o tempo, no futebol, é rapidíssimo. Um minuto vale um mês ou mais. E, aos 37 anos, o indivíduo é gagá para a bola, e insisto: — o indivíduo baba de uma velhice irremediável. A própria bola, o refuga e trai. E Barbosa continua notícia, continua fato pelo seguinte: — porque é eterno.

E quando Barbosa joga acontece apenas isto: — ele esfrega a sua eternidade na cara da gente. Há dias, escrevi, aqui mesmo, que se trata da eternidade mais viçosa já ocorrida no futebol brasileiro. No comum dos mortais, a vida é uma luta corpo a corpo contra o tempo. O sujeito olha a folhinha e toma um susto ao verificar que estamos em 59. 1959! É o caso de perguntar: — “Já?” Sim, amigos: — Já! Para Barbosa o problema de folhinha e de relógio não existe. É o homem sem tempo, que esqueceu o tempo, que vive sem o tempo, muitíssimo bem. Há os que rosnam: — “Barbosa pinta os cabelos!” De fato, tem já cabelos brancos. Aí o único detalhe de velhice na sua figura ágil, elástica, acrobática.

O problema do arqueiro, porém, não se resume ao desgaste físico. Não. Ele sofre um constante, um ininterrupto desgaste emocional. Debaixo dos três paus, parado, dá ideia de um chupa-sangue que não faz nada, enquanto os outros se matam em campo. Ilusão! Na verdade, mesmo sem jogar, mesmo lendo gibi, o goleiro faz mais do que o puro e simples esforço corporal. Ele traz consigo uma sensação de responsabilidade que, por si só, exaure qualquer um. Amigos, eis a verdade eterna do futebol: — o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários. Um atacante, um médio e mesmo um zagueiro podem falhar. Podem falhar e falham vinte, trinta vezes num único jogo. Só o arqueiro tem que ser infalível. Um lapso do arqueiro pode signifi car um frango, um gol, e, numa palavra, a derrota. Vejam 50. Quando se fala em 50, ninguém pensa num colapso geral, numa pane coletiva. Não. O sujeito pensa em Barbosa, o sujeito descarrega em Barbosa a responsabilidade maciça, compacta da derrota. O gol de Ghiggia fi cou gravado, na memória nacional, como um frango eterno. O brasileiro já se esqueceu da febre amarela, da vacina obrigatória, da espanhola, do assassinato de Pinheiro Machado. Mas o que ele não esquece, nem a tiro, é o chamado “frango” de Barbosa.

Qualquer um outro estaria morto, enterrado, com o seguinte epitáfio: — “Aqui jaz Fulano, assassinado por um frango.” Ora, eu comecei a desconfiar da eternidade de Barbosa quando ele sobreviveu a 50. Então, concluí de mim para mim: “Esse camarada não morre mais!” Não morreu e pelo contrário: — está cada vez mais vivo. Nove anos depois de 50, ele joga contra o Santos, no Pacaembu. Funcionou num time de reservas contra um dos maiores, senão o maior time do Brasil. E foi trágico, amigos, foi trágico! Começa o jogo e, imediatamente, Pelé invade,  perfura e, de três metros, fuzila. Fosse outro, e não Barbosa, estaria perguntando, e até hoje: — “Por onde entrou a bola?” Barbosa defendeu e com que soberbo descaro! Daí para frente, a partida se limitou a um furioso duelo entre o solitário Barbosa e o desvairado ataque santista. Foi patético, ou por outra — foi sublime. E porque, na sua eternidade salubérrima, ainda fecha o gol, eu faço de Barbosa o meu personagem da semana.


Manchete Esportiva, 30/5/1959

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