Por Nelson Rodrigues
Amigos, o velho Barbosa está fora do Brasil. Mas não importa
e explico: — a ausência do verdadeiro craque é tão ativa, militante e
absorvente como a presença viva. Só o perna de pau consegue ser esquecido. Um
Barbosa, não. Está na longínqua e quase inexistente Escandinávia e continua
sendo fato, continua sendo notícia. Ausente dá uma sensação de presença física.
O velho Barbosa! Digo “velho” e já retifico: — não é velho
coisa nenhuma. Amigos, não existe a menor relação entre Barbosa e a sua idade.
Ou melhor: — idade e pessoa não coincidem no arqueiro vascaíno. Ele tem o quê?
Uns 37, 38 anos. Para as outras atividades, o sujeito pode ter isso ou mais,
impunemente. Mas o tempo, no futebol, é rapidíssimo. Um minuto vale um mês ou
mais. E, aos 37 anos, o indivíduo é gagá para a bola, e insisto: — o indivíduo
baba de uma velhice irremediável. A própria bola, o refuga e trai. E Barbosa
continua notícia, continua fato pelo seguinte: — porque é eterno.
E quando Barbosa joga acontece apenas isto: — ele esfrega a
sua eternidade na cara da gente. Há dias, escrevi, aqui mesmo, que se trata da
eternidade mais viçosa já ocorrida no futebol brasileiro. No comum dos mortais,
a vida é uma luta corpo a corpo contra o tempo. O sujeito olha a folhinha e
toma um susto ao verificar que estamos em 59. 1959! É o caso de perguntar: —
“Já?” Sim, amigos: — Já! Para Barbosa o problema de folhinha e de relógio não
existe. É o homem sem tempo, que esqueceu o tempo, que vive sem o tempo,
muitíssimo bem. Há os que rosnam: — “Barbosa pinta os cabelos!” De fato, tem já
cabelos brancos. Aí o único detalhe de velhice na sua figura ágil, elástica,
acrobática.
O problema do arqueiro, porém, não se resume ao desgaste
físico. Não. Ele sofre um constante, um ininterrupto desgaste emocional.
Debaixo dos três paus, parado, dá ideia de um chupa-sangue que não faz nada,
enquanto os outros se matam em campo. Ilusão! Na verdade, mesmo sem jogar,
mesmo lendo gibi, o goleiro faz mais do que o puro e simples esforço corporal.
Ele traz consigo uma sensação de responsabilidade que, por si só, exaure
qualquer um. Amigos, eis a verdade eterna do futebol: — o único responsável é o
goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos
e hereditários. Um atacante, um médio e mesmo um zagueiro podem falhar. Podem
falhar e falham vinte, trinta vezes num único jogo. Só o arqueiro tem que ser
infalível. Um lapso do arqueiro pode signifi car um frango, um gol, e, numa
palavra, a derrota. Vejam 50. Quando se fala em 50, ninguém pensa num colapso
geral, numa pane coletiva. Não. O sujeito pensa em Barbosa, o sujeito
descarrega em Barbosa a responsabilidade maciça, compacta da derrota. O gol de
Ghiggia fi cou gravado, na memória nacional, como um frango eterno. O
brasileiro já se esqueceu da febre amarela, da vacina obrigatória, da
espanhola, do assassinato de Pinheiro Machado. Mas o que ele não esquece, nem a
tiro, é o chamado “frango” de Barbosa.
Qualquer um outro estaria morto, enterrado, com o seguinte
epitáfio: — “Aqui jaz Fulano, assassinado por um frango.” Ora, eu comecei a
desconfiar da eternidade de Barbosa quando ele sobreviveu a 50. Então, concluí
de mim para mim: “Esse camarada não morre mais!” Não morreu e pelo contrário: —
está cada vez mais vivo. Nove anos depois de 50, ele joga contra o Santos, no
Pacaembu. Funcionou num time de reservas contra um dos maiores, senão o maior
time do Brasil. E foi trágico, amigos, foi trágico! Começa o jogo e,
imediatamente, Pelé invade, perfura e,
de três metros, fuzila. Fosse outro, e não Barbosa, estaria perguntando, e até
hoje: — “Por onde entrou a bola?” Barbosa defendeu e com que soberbo descaro!
Daí para frente, a partida se limitou a um furioso duelo entre o solitário
Barbosa e o desvairado ataque santista. Foi patético, ou por outra — foi
sublime. E porque, na sua eternidade salubérrima, ainda fecha o gol, eu faço de
Barbosa o meu personagem da semana.
Manchete Esportiva, 30/5/1959
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