Por Nelson Rodrigues
Amigos, eu ando falando muito do Brasil. E muita gente já
rosna, com tédio e irritação: — “Você está descobrindo o Brasil?” É exato.
Estou, sim, estou descobrindo o Brasil. Eis que, de repente, cada um de nós,
cada um dos setenta milhões de brasileiros passa a ser um Pedro Álvares Cabral.
Já descobrimos o Brasil e não todo o Brasil. Ainda há muito
Brasil para descobrir. Não há de ser num relance, num vago e distraído olhar,
que vamos sentir todo o Brasil. Este país é uma descoberta contínua e
deslumbrante. E justiça se faça ao escrete: — é ele que está promovendo, quem
está anunciando o Brasil.
A princípio, o sujeito pode pensar que o escrete revelou o
Brasil para o mundo. Isso também. Todavia, o mais importante e o mais patético
é a descoberta do Brasil para os próprios brasileiros. Pergunto: — o que
sabemos nós do Brasil? Pouco ou, mesmo, nada. A partir de 58, o Brasil começou
a aparecer aos nossos olhos.
Digo mais: — foi o escrete que ensinou o brasileiro a
conhecer-se a si mesmo. Tínhamos uma informação falsa a nosso respeito. Sempre
me lembro de um amigo meu que era um bem, um símbolo nacional. Exuberante como um italiano de Hollywood, um
italiano de anedota, o sujeito tinha o gosto do berro e do gesto largo. Se via
um vago conhecido, ele abria os braços até o teto e se arremessava com a efusão
de um amigo de infância. Tipo gozadíssimo. E o Fulano costumava dizer, aos
uivos: — “Eu sou um quadrúpede!” E para evitar dúvidas, ampliava: — “Eu sou um
quadrúpede de 28 patas!”
Esta autocrítica jocunda e feroz era o que todos nós
fazíamos. O sujeito, aqui, não acreditava nem nos outros, nem em si mesmo. E
aquele que se nega está, ao mesmo tempo, negando a própria terra. Quando
dissemos: — “Eu sou uma besta!” — estamos vendo bestas por toda parte. Não
havia nenhum ufanismo no Brasil. Em absoluto. Como o meu amigo citado, cada um
de nós era um Narciso às avessas, que cuspisse na própria imagem.
Em 58, o escrete ainda embarcou desconfiado. Mas já uma
dúvida instalava-se em nosso espírito. O sujeito já não sabia se era ou não uma
besta chapada ou, na melhor das hipóteses, uma semibesta. A campanha de 58
viria clarificar o problema. Chegamos na Suécia, ainda perplexos. Vencemos a
Áustria e empatamos com a Inglaterra. Vem, finalmente, o jogo com a Rússia.
Eu vou dizer o momento exato em que se inaugurou o
verdadeiro Brasil. Foi após o hino nacional brasileiro. Os jogadores ainda
estavam perfilados e trêmulos. A Rússia seria uma prova crucial. Mais do que
nunca dava em cada jogador o dilema: — “Ser uma besta ou não ser uma besta?” E,
então, soou, naquele escrete contraído, a voz de Garrincha. Com a sua candura
triunfal, dizia o Mané para o Nilton Santos: — “Aquele bandeirinha tem a cara
do ‘seu’ Carlito!” Houve, então, o riso incoercível, total. Foi o bastante. O
escrete tomou-se de uma nova e feroz potencialidade. E da piada de Garrincha
partiu para a vitória.
Ali, começava o verdadeiro Brasil. Ninguém sabe, mas foi uma
piada que derrotou a grande, a colossal, a imbatível Rússia. A mesma piada deu
ao brasileiro a sensação da própria grandeza. Com um quase pânico, o homem do
Brasil percebeu que era genial.
Jornal dos Sports, 27/5/1962
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