Por Nelson Rodrigues
Amigos, vocês podem acreditar: — quem não estiver sofrendo,
neste momento, é um mau caráter. E por que mau-caráter? Vou explicar, calma,
vou explicar. O Brasil vai jogar amanhã a partida mais dramática de toda a sua
história, e eu quase diria: — como é possível não sofrer diante da formidável
batalha?
O começo de qualquer partida é uma janela aberta para o
infinito. Ao soar o apito inicial, todas as possibilidades passam a ser
válidas. Eu falava em sofrimento. Tudo no jogo de amanhã justifica uma tensão intolerável.
Há a angústia da dúvida. E há a angústia inversa da certeza. Milhões de
brasileiros estão certos do bi. E, apesar disso, ou com isso mesmo, andam
crispados em casa, na rua, por toda parte.
Por isso, eu vos disse que o indiferente dá, de si mesmo, do
próprio caráter, uma tristíssima ideia. Indiferentes, por quê, se vai defi nir,
dentro de 24 horas, o destino do escrete? Os lorpas, os pascácios poderão
objetar que se trata de futebol, apenas o futebol. Não é só o futebol. É,
sobretudo, o homem brasileiro. Os nossos craques estão ganhando no Chile com as
qualidades de coragem, inteligência, imaginação, entusiasmo, gênio do homem
brasileiro.
Eis por que a batalha do escrete implica toda a nação. Até
os xavantes, que põem em cima da nudez aquele casto cinto de barbante, até o
xavante, dizia eu, está pessoalmente interessado no bi. Em 50, não foi apenas
um time que fracassou no Maracanã. Foi o homem brasileiro, como em Canudos. Em
58, quem venceu? O Brasil. Quando Bellini apanhou o caneco de ouro, era o novo
homem brasileiro que se proclamava.
Assim será amanhã, em Santiago. Em outro tempo, a luta seria
mais dura e mais problemática. O homem do Brasil ainda não tinha amadurecido.
Nas grandes partidas internacionais, ele entrava em campo arrasado emocionalmente.
Perdia antes da derrota. Mas 58 nos libertou de todas as nossas frustrações. Os
negros, os mulatos, os brancos do país surgiram numa plenitude até então
desconhecida.
E, de então para cá, o brasileiro tem um destino de campeão.
Vence tudo. Os nossos cavalos triunfam, lá fora, não porque sejam bons, mas
porque são brasileiros. As nossas caixas de fósforos ganham nas exposições. Há
coisa mais comovente do que um zebu premiado, com uma medalha pendurada na fitinha?
Se os cavalos, os zebus, as caixas de fósforos estão brilhando — por que
falharia o homem?
Aí é que está: — é o homem brasileiro que vai lutar amanhã,
contra o tcheco, para levantar o bi. Eu acredito na vitória, ou por outra: — só
acredito na vitória. Creio que, dentro de 24 horas, o escrete do Brasil
oferecerá ao mundo a melhor exibição de toda a sua biografia.
Temos Garrincha. E o Mané, sozinho, com o seu gênio
individual, vale por um time. Já foi consagrado a maior fi gura da Copa. E todo
o escrete vai jogar com a fl ama de Garrincha. Vavá, na última partida, marcou
dois gols. Está desencabulado. E terá, em campo, a ferocidade de um cossaco do
Don e do Kuban. Há também Amarildo, o Possesso. O dostoievskiano andou se
machucando. Mas vai aparecer, amanhã, mais possesso do que nunca. Acredito no
bi, porque, repito, acredito no homem genial do Brasil.
Jornal dos Sports, 16/6/1962
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