Por Nelson Rodrigues
Amigos, falemos ainda do Brasil. O triunfo, na Suécia, em
58, foi para nós tão importante como a Primeira Missa. Começava o Brasil. Nós
nos inaugurávamos. Tudo o que fi cava para trás era o pré-Brasil. E basta
comparar. Até 58, o brasileiro não ganhava nem cuspe à distância. O sujeito
dormia enrolado na derrota como num cobertor. Ninguém acreditava no Brasil, nem
o Brasil acreditava em si mesmo.
E, por isso, eu lhes digo que A Primeira Missa, de
Portinari, é inexata. Aqueles índios de biquine, o umbigo à mostra, não deviam
estar na tela, ou por outra: — podiam estar, mas de calções, chuteiras e camisa
amarela. Lapso de Portinari não pôr o Feola, sem boné e contrito, com aqueles
pernões monumentais e aquela barriga tão plástica. O principal papel do escrete
de 58 foi o de profeta do grande Brasil.
Para quem soubesse ver nas entrelinhas da vitória, a Jules
Rimet anunciava também várias coisas, inclusive — seriamente — o triunfo d’O
pagador de promessas. Amigos, só os imbecis não percebem o parentesco de uma
coisa e outra: — da Suécia e de Cannes, da Jules Rimet e da Palma de Ouro. É
uma relação nítida, taxativa, e eu quase dizia: — é uma cínica relação. O
pagador ganhou em Cannes porque o escrete ganhou na Suécia. E digo mais: — o
escrete vai ganhar no Chile porque O pagador ganhou no festival.
Antes de 58, o Brasil não tiraria a Palma nem de Madureira.
E o que nos dá vontade de cantar o Hino Nacional é o seguinte: — a apoteose do
cinema brasileiro, amigos, do nosso humilhadíssimo cinema. Vocês estão
lembrados. Um filme patrício era uma vergonha nacional, e insisto: — uma
vergonha nacional só comparável à de Canudos. E o sujeito que via um dos nossos
celuloides saía neurótico do cinema.
E, de repente, há o estalo rutilante. O Brasil vai a Cannes
com um descaro suicida, e para perder, claro, para perder. Eu disse “descaro” e
explico: — o cinema brasileiro não podia ganhar. Porque não tem tostão e vive,
e sobrevive, na base da cara e da coragem. O cinema brasileiro ainda anda de
taioba. E ganhamos. Há 15 minutos, não tínhamos diretores, nem artistas, nem
escritores, nada. De repente, aparece tudo, aos borbotões.
É o Brasil. Há, na vida dos povos, um momento de tal euforia
que os idiotas somem, os imbecis desaparecem. O próprio Anselmo Duarte. Não era
nada, ou por outra: — era um canastrão chapado, um canastrão da cabeça aos
sapatos. E, uma noite, Anselmo foi dormir um e acordou outro. Aí está o
sortilégio do Brasil: — o canastrão da véspera pode ser o gênio do dia
seguinte. Imediatamente os conhecidos, os vizinhos notaram a diferença física.
Perguntavam: — “O que é que há contigo?” Para ser honesto, ele teria de
responder com modéstia triunfal: — “É o gênio! O gênio!”
De fato, o gênio que venta por todo o Brasil. E é um gênio
gratuito e geral, que não se apoia, ou por outra: — que se apoia na cara e
coragem de cada um. O que Anselmo gastou com O pagador é uma vergonha. O
capital empatado não dá para comprar uma sandália da Elizabeth Taylor na
Cleópatra.
Pero Vaz de Caminha diria que, nesta terra, até os
paralelepípedos dão flor, até as zebras estão florindo. E outra coisa: —
outrora, o que matava o brasileiro era o subdesenvolvimento pessoal. Sim, cada
um 134 de nós era, individualmente, um falido do sentimento, um falido da
paixão, um falido da esperança. Depois de 58, o país continua subdesenvolvido,
ao passo que cada brasileiro, pessoalmente, está investido de uma imensa
potencialidade criadora.
Alguém dirá que o Paulo Francis continua amargo. Explica-se:
— o conhecido crítico é um analfabeto obsessivo, que precisa ver analfabetos
por toda a parte. Mas o próprio Paulo Francis, que não passou d’O conde de
Monte Cristo, não escreve, não tem uma coluna? É outro milagre do Brasil. Hoje
em dia, qualquer jumento nosso tem um charme de puro-sangue.
Mas estejam certos. O pagador de promessas é o profeta do
bicampeonato.
O Globo, 25/5/1962
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