Por Carlos Sena (**)
Dom Hélder entrou pelo cano das
injustiças do país que lhe calou a boca por longo tempo.
Entrou pelo cano de parte do
próprio clero. Este, insatisfeito em função de seu trabalho com as comunidades
de base fora dele se afastando, certamente por conta dos rumores de que o
comunismo tinha em Dom Helder, equivocadamente, um forte aliado.
Entrou pelo cano quando teve que
engolir, aparentemente calado, a morte de Padre Henrique, seu principal
sacerdote na luta contra a ditadura.
Entrou pelo cano da insolência
burguesa do Recife que tentou comprar suas convicções cristãs
"ofertando-lhe" uma Mercedes BENZ no dia da sua entronização
arquidiocesana.
Entrou pelo cano quando, pela sua
amizade e prestígio pessoal com Paulo VI, teve que enfrentar a ira dos padres
conservadores da arquidiocese de Recife e Olinda.
Entrou pelo cano quando foi
proibido de se expressar no Brasil via jornais, TV, palestras, etc. Em
contrapartida o mundo inteiro lhe convidava para falar da sua fé e do seu
compromisso com os pobres, especialmente os da América Latina.
Certa feita, teria dito ao Papa
Paulo VI que vendesse a Capela Sistina do Vaticano e desse o dinheiro aos
pobres. Também, mais uma vez, entrou pelo cano da intolerância brasileira por
gozar dessa intimidade papal.
Após a revolução, mais um cano,
dentre tantos: um taxista se deparou com ele dentro do seu taxi. Desmontou num
choro. Dom Hélder indagou os motivos daquele pranto ao que o motorista
respondeu: durante a ditadura fui pago a peso de ouro para lhe conduzir e dar
cabo da sua vida. Hoje lhe vendo diante de mim sinto como eu teria sido injusto
se tivesse lhe assassinado. O Dom apenas passou a mão na cabeça e disse
"se quiser faça isso agora". Mas a viagem terminou em paz, nesse cano
que lhe era reservado.
Poderia relatar vários outros
"canos" que ele, na defesa dos pobres e de uma igreja libertadora,
teria firmemente enfrentado. O tempo passou. Dom Hélder, finalmente entrara
noutro cano: o clero conservador e os políticos da ditadura evitaram (manobra
política) que o Estado do Vaticano lhe concedesse o Cardinalato. Mas ele,
segundo se noticia, morreu como Cardeal IN PECTORE*, por uma deferência do
clero romano e exigência do Papa.
Assim, com a noticia da sua
CANONIZAÇÃO, certamente que ele entrará no "cano" da merecida
santificação. O céu vai cair em festa regada a frevo e maracatu, baião de dois
e bandeirolas de renda CEARENSE.
(Depois eu volto com mais Cano do
Vati).
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* In pectore, literalmente
"do peito", é um termo latino empregado para designar um cardeal que
o Papa nomeou e cujo nome não tornou público.
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(**) Publicado no Recanto de
Letras em 29/05/2014
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