Por Carlos Sena. (*)
Nunca entendi essa história de
que “a noite é uma criança”. Muitas vezes, em serenatas ouvia dizerem
repetidamente que “a noite é uma criança”. Eu acabei acreditando que, de fato,
a noite seria mesmo uma “criança”... Hoje, descubro que não me convenci mesmo
disto, porque lá fora, nas grandes cidades, a noite mete medo. Evidente que a
noite tem seus mistérios e seu romantismo. Talvez seja pelo romantismo que se
esconde em cada noite que se convencionou chama-la de criança. Insisto: a
rigor, a noite é mais “crionça”, porque nela também se dizem serem os “gatos
pardos”! Gatos e onças, como se veem casam muito bem e não nos parecem
sintonizar com as noites, como os galos. Os galos, sim. Esses estão mais para
as noites do que as crianças, embora saibamos que na lógica poética tudo possa
acontecer, inclusive nada.
Acho mesmo que a noite deixou de
ser criança. Talvez ela tenha crescido e, como adulta, logo assimilou as
malandragens todas dos adultos, ou de boa parte deles. Lá fora, não está como
outrora quando havia “galos, noites e quintais”... Ah, os tempos das noites em
que a gente fazia seresta na porta de quem amava. Não precisava amar, mas,
apenas imaginar que amava. Isso era o bastante para a gente comprar um barril
de vinho carreteiro e se lascar todinho na porta da amada até amanhecer o dia.
Nessa época, certamente a noite se comportava com uma criança – criança que em
tudo achava graça e que por tudo se sentia feliz. Muitas vezes o violão
desafinava, os cantores desafinavam ou eram totalmente afônicos, mas ela, a
noite, perdoava tudo isso em nome da simplicidade de ser criança como se
costumava acreditar. Hoje, andar na noite é um açoite. Medo é o que toma conta
da “crionça”. Assaltos, sequestros, violências de toda falta de sorte – eis o
que transformou a criança da noite em “crionça” dela mesma noite afora e dias
adentro. Assim, ficou mais difícil pra
mim e pra muitos, compreender que essa tal de noite tem uma criança presa
dentro de si. Mas, se de todo, a criança preferir ser da noite esse lirismo,
que seja: no quarto dos amantes. Nas varandas dos apartamentos simulando uma
seresta. Numa cidadezinha qualquer do Brasil que ainda subsista da natureza e
esconda dentro de cada noite os mistérios todos que andar pelas ruas sem medo
proporciona. Principalmente de noite, quando ela, certamente, acolhe nossas
crianças presas dentro de nós... Pelo medo da violência das ruas sem mais
estrelas pra gente vê-las e bebê-las num copo de geléia de mocotó Imbasa,
cheinho de vinho, preferencialmente tinto seco... Ou o velho e bom carreteiro?
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(*) Publicado no Recanto de Letras
em 30/09/2013
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