“Democracia e corrupção
Por Miguel Reale Júnior
Fala-se que inquéritos e
processos relativos à corrupção de agentes políticos – senadores, deputados,
governadores, presidente e ex-presidentes – constituem fator de fragilização da
política, com promotores e juízes assumindo o papel de “tenentes de toga”, a
ditar com tom moralizador o destino da Nação, em prejuízo das genuínas
instituições políticas. Creio haver um equívoco grave de perspectiva.
Tristemente, revelou-se o lado B,
obscuro, dos ex-presidentes Lula e Dilma e do atual e de expressivas lideranças
políticas de diversos partidos. O crime dessas figuras foi, em parte, trazido
inicialmente à tona graças às delações dos empresários corruptores,
beneficiários da desonestidade dos dirigentes para obterem vantagens em
prejuízo das finanças públicas.
A Polícia Federal, o Ministério
Público e o Judiciário não tiveram a iniciativa de submeter a classe política à
persecução penal, com investigações, conduções coercitivas, busca e apreensão e
ações penais. Apenas agiram a partir da notícia de crime que lhes foi dada. Não
são tais investigados perseguidos políticos, mas políticos corruptos, que com
sua reiterada conduta se colocaram debaixo da incidência da lei penal.
O que se pretendia fosse feito
pelo Ministério Público e pela magistratura? Diante da avalanche de líderes da
sociedade política envolvidos em crimes graves, cumpriria aos juízes e
promotores prevaricar para manter hígida a “harmonia” entre Poderes? Caberia ao
Ministério Público e à Polícia Federal preocupar-se em não perquirir sobre
fatos delituosos, como corrupção passiva e lavagem de dinheiro, para não
perturbar a frágil ordem democrática e a economia? É isso que certos arautos do
comodismo democrático desejam?
Deveria ser esquecida e rejeitada
a delação da Odebrecht por tocar em figuras ilustres da República? E que dizer
da delação da JBS? Pensam alguns ser necessário preservar as instituições da
República, razão por que não convém cutucar tanto mais os políticos, sem os
quais não há democracia. Assim, haveríamos de ser condescendentes e, tocados
por cínico realismo, deixar de ser ferro e fogo, para admitir um tempero, uma
pitada de malfeito como necessária ao sistema democrático? Seria obrigatória da
democracia a combinação entre corrupção e classe política?
Sejamos claros: a persecução
penal de comportamentos criminosos de agentes políticos relevantes não
compromete a democracia. Ao contrário. Eles, os políticos, é que comprometiam a
democracia com o cancro da corrupção, traindo seus deveres elementares.
E não apurar a corrupção sabida é
corroer ainda mais a democracia, pois significa anuir com os atos delituosos,
incentivar a sua prática, passar à população o exemplo da sua permissão, apenas
por se tratar de pessoas do andar de cima, da classe dirigente. Não extrair o
tumor por ser a cirurgia arriscada é condenar a democracia a morrer, lá na
frente, de septicemia. A gangrena tomará conta do corpo social. Paralisar a
apuração dos crimes dos líderes políticos só provocará descrença profunda na
democracia. Separar o joio do trigo fará bem à democracia, pois há muitas
pessoas corretas na atividade política.
Não se trata de mero discurso
moralista. Os órgãos internacionais bem destacam ser a luta contra a corrupção
essencial para preservar a democracia, fato hoje em dia presente em diversos
países da Europa, onde o rigor penal em face da corrupção é ainda maior que no
Brasil.
A corrupção distorce a vontade
popular, desvia de programas sociais fundamentais verbas para encher os bolsos
de corruptos e corruptores. É um jogo sujo, feito às escondidas, com desprezo
pelo esforço cotidiano dos trabalhadores que recolhem impostos. Trata como
próprio o que é fruto do sacrifício de muitos. Nada mais antidemocrático. A
democracia é corroída por dentro pela corrupção, pois, repito, há duas formas
de ditadura, a do fuzil e a da propina, sendo que nesta o inimigo está oculto.
As convenções internacionais da
ONU e da União Europeia contra a corrupção relacionam essa persecução com o fim
de defesa da democracia e buscam promover a mais larga cooperação entre os
países, em especial por via do controle da lavagem de dinheiro.
Temer vem de ser denunciado
perante o STF por crime de corrupção passiva. A consistente denúncia será
submetida à Comissão de Constituição e Justiça e depois ao plenário da Câmara
dos Deputados, para que esta conceda a autorização para ser instaurado o
processo. A Câmara aborda apenas uma condição de procedibilidade, ou seja, um
pressuposto para ser iniciada a ação penal em decisão de cunho marcadamente
político.
Se for dada a autorização, a
denúncia é examinada pelo STF. Se recebida, Temer é afastado por 180 dias,
prazo em que deve haver o julgamento. Se, contudo, não for dada a autorização,
Temer continua no cargo, mas o processo fica por ora paralisado. Findo o
mandato, o processo terá continuidade.
É o momento de a sociedade
novamente se mobilizar, não apenas nas redes sociais ou pelos movimentos, mas
com os movimentos sociais. É o instante da coalisão para o futuro, unindo
forças da sociedade civil organizada, conjugando entidades de classe as mais
diversas e organismos não governamentais os mais diferentes em torno de uma
agenda mínima de proteção da democracia, contra o acordo espúrio feito por cima
pelos parlamentares em troca desonesta de favores com o Executivo e para
assegurar a manutenção das condições de revitalização da economia sem perder de
vista o objetivo de redução da desigualdade social.
É hora também de retornar às ruas
para dizer não ao conchavo que quer impedir a Justiça de analisar o processo no
qual o presidente é denunciado por corrupção passiva. A recusa da Câmara soará
ao povo como obstrução da Justiça para garantir a continuidade de um governo
tisnado por acusação grave.
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