“A flecha e o bambu
Por José Nêumanne
Na semana em que o relator da
Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF) comemorou, em silêncio
cerimonioso, a vitória por 11 a 0 contra os colegas que desafiam seu poder
absoluto sobre os destinos dos réus sob o peso de seu martelo, seu parceiro
procurador-geral da República recorreu a uma metáfora primitiva. O ministro do
STF Luiz Edson Fachin e o chefão do Ministério Público Federal (MPF), Rodrigo
Janot, este em fim de linha não se sentem forçados a dar explicações por terem
patrocinado a delação premiada mais generosa da História da humanidade, que
ambos concederam a Joesley Batista, o bamba do abate.
Todo mundo sabe, pelo menos
dentro dos limites do Distrito Federal, que Ricardo Saud, um dos delatores
premiados da holding J&F, que deixaram Anápolis, em Goiás, para brilhar
nesse mundão grandão de Deus, foi solícito parceiro do excelentíssimo e
eminentíssimo relator em sua peregrinação à cata de votos a seu favor na
sabatina do Senado para aprovar sua nomeação para o Supremo. É ainda de
conhecimento público que sua escolha não foi abençoada pela ausência de
suspeitas e desconfianças, no momento em que a dra. Dilma Vana Rousseff
Linhares resolveu substituir o relator do mensalão, Joaquim Barbosa, por ele. E
não eram meros detalhes desprezáveis, como diria o dr. Michel Miguel, devoto de
palavras dicionarizadas que não têm uso corriqueiro. Ou, como o lente de
Direito Constitucional da PUC de São Paulo podia preferir, lana caprina.
Assim que findou sua passagem
pela presidência do STF, alegando ter sido ameaçado, Barbosa aposentou-se. A
chefa do Poder Executivo levou oito longos meses, quase uma gestação, para
substituí-lo. Os cheios de pruridos éticos na escolha para ser membro tão poderoso
de uma instituição que deveria ficar acima de qualquer suspeita na vida toda
– entre os quais o autor destas linhas –
insistiram na tecla de que o ilustre jurista tinha advogado quando ainda era
procurador do Estado do Paraná, o que fora proibido pela Constituição. Usei
fora e não era porque a mudança constitucional foi usada como argumento para
defendê-lo por entidades que não tinham por que se meter no caso: a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) e a Associação dos Procuradores do Estado do Paraná, que
apresentaram pareceres jurídicos a respeito. Ao aprová-lo na sabatina, o Senado
estendeu aos pretendentes ao STF o princípio básico do direito de defesa no
Direito Romano in dubio pro reo (ou seja, na dúvida a favor do réu) para os
insignes candidatos à colenda Corte. Outro princípio dos tempos de Roma – à
mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer – foi às favas, como os
escrúpulos do coronel Passarinho e a modéstia daquele que seria seu colega e
contendor no órgão máximo, o ministro Gilmar Mendes. Escrúpulos e modéstia não
são comuns no grupo em tela.
Em benefício da dúvida velha de
guerra, o doutor foi liberado para exercer a extrema magistratura, mas seus
aliados também tiveram de superar outros óbices, hoje já não se sabendo se mais
ou menos espinhosos. Jurista respeitado por colegas de ofício de ideologias
opostas, ele se fez conhecido por duas posições que põem eleitores e eleitos em
pé de guerra. Esquerdista, militou em favor das causas de movimentos sociais
que passam ao largo da legalidade, como o famigerado Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). E, católico devoto, frequentador de
missas dominicais com a mulher, com quem é casado há longa data, esposou com
fervor causas do Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM), presidido
pela gaúcha Maria Berenice Dias. Aos senadores conservadores explicou que a
Constituição se sobreporia a eventuais posições políticas, partidárias ou
referentes a causas que defendeu, entre elas, a múltipla paternidade e o
convívio conjugal entre parceiros casados (ou não) de quaisquer opções sexuais.
Convincente, foi aprovado.
Críticos mais renitentes
lembraram que o professor foi remunerado por uma empresa controlada pelo Estado
do Paraná numa causa contra uma concorrente americana, ao arrepio da lei, pois,
sendo procurador, teria obrigação de defender a estatal estadual gratuitamente.
Como titular do mesmo escritório de advogados, prestou serviços a uma empresa
paraguaia contra a estatal binacional (meio brasileira) Itaipu. O mesmo escritório
atuou em causas julgadas no Tribunal de Justiça do Paraná, no qual sua mulher,
Rosana Amara Girardi Fachin, é desembargadora.
Sua Excelência também postou
vídeo de apoio à candidata do PT à Presidência da República em 2010, Dilma
Rousseff, que o indicaria. Não há proibição legal para fazê-lo. Mas isso criou
mais problemas do que os outros seis pecados capitais, pois põe em dúvida a
imparcialidade. No STF, contudo, isso não é lana caprina e, sim, favas
contadas. Gilmar Mendes foi advogado-geral na gestão tucana de Fernando
Henrique. Ricardo Lewandowski é amigo antigo da família Lula da Silva. Dias
Toffoli foi advogado do PT e, depois da União nos mandatos de Lula. E Alexandre
de Moraes é duas vezes comprometido: com o governador tucano de São Paulo, Geraldo
Alckmin, de quem foi secretário de Segurança Pública, e do presidente Michel
Temer (PMDB-SP), de quem é amigo pessoal e foi ministro da Justiça. Vai longe a
data em que Marco Aurélio Mello, primo de Collor e por ele nomeado para o STF,
se declarou impedido de participar da decisão final sobre o impeachment do
parente e benfeitor.
Aliás, quando o assunto foi
aventado, Gilmar Mendes, inimigo declarado da Lava Jato e da delação premiada
em geral, não apenas a dos irmãos Batista, recorreu ao princípio evangélico do
“atire a primeira pedra”, advertindo que muito poucos colegas não contaram com
a ajuda de empresários ou políticos investigados, processados ou apenados.
É difícil encontrar em Brasília
quem não saiba que o substituto de Joaquim Barbosa foi instruído por um
caríssimo gestor de crises contratado para o serviço não pelo ministro, mas
pela mesma mão que o indicou para o cargo, a de Dilma. Pode não ter sido
ilícito, mas não é nenhum indício de lisura a se exigir do membro da cúpula de
um poder que decide querelas judiciais em última instância. Pode não ser o
oitavo pecado, mas não deixa de ser uma mácula na fantasia de Batman que o
ministro usa no trabalho.
Antes de chegar a Fachin,
contudo, a generosíssima delação premiada de Saud & Batista foi negociada
com o MPF, com o beneplácito de seu chefe, Janot, E este, com informações
colhidas pelos depoimentos dos delatores, está entrando na História como autor
do primeiro libelo acusatório contra um presidente da República no exercício da
função
Os procuradores chefiados por
Janot não deram a menor importância à lacuna imensa existente na delação dos
irmãos Batista e do parceiro de Fachin na preparação da sabatina. Zé Mineiro,
cujas iniciais inspiraram o nome JBS com a qual a carne da Friboi ganhou o
mundo todo, começou sua vida num açougue de duas portas no longínquo interior
goiano. Seus filhos Joesley e Wesley são hoje os mais bem-sucedidos produtores
e vendedores de proteína animal do planeta. Até a neta grávida de Lula, notória
por sua sem-cerimônia no uso de gestos obscenos, sabe que isso ocorreu mercê do
uso de empréstimos pra lá de beneméritos do BNDES.
Aos federais e procuradores que
negociaram sua delação a prêmio Joesley Batista contou que administrara contas
de Lula e Dilma, que movimentaram US$ 150 milhões, na Suíça. A denúncia tem o
valor de uma nota de R$ 3, pois o público pagante de seu vertiginoso
enriquecimento não ficou sabendo de um documento habilitado a comprovar “no
papel” a denúncia. É, digamos, uma delação de saliva, mas sem prova de tinta.
Depois de acusar Temer, alvo
preferencial de uma ação controlada, que os sócios e amigos do presidente
chamam de “armação”, Janot, aprovado por Fachin, que homologou os prêmios, pode
até acusá-lo de ser réu confesso. Pois o presidente nunca negou as
circunstâncias delituosas de seu encontro noturno em palácio com um bandido
conhecido até em Tietê, sua cidade natal. Pode ser que isso dê um pouco de
substância probatória à denúncia histórica do procurador. Mas não justifica o
desinteresse dele pelas origens da fortuna criminosa da família Batista, em si
só um delito.
Temer vingou-se dele nomeando uma
desafeta, Raquel Dodge, para o lugar que Janot terá de abandonar em 17 de
setembro. Mas, como Bento Carneiro, o vampiro brasileiro, Janot prometeu uma
“vingança maligna” até lá: “Enquanto houver bambu, vai ter flecha”. Resta saber
quem, Janot ou Fachin, é a flecha. E qual dos dois é o bambu.
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AGD Comenta:
O texto acima, do jornalista e
escritor José Neumanne, é muito completo, sobre a “flecha e o bambu”, e longo, para aperrearmos o leitor com mais
comentários, também longos. Aliás, ele é perfeito em descrever a relação,
sempre promíscua entre indicadores e indicados para o Supremo Tribunal Federal.
Que Janot e Fachin agiram de
forma mais política do que jurídica em suas vidas úteis nos cargos que ocupam é
verdade sem jaça. O que pode se comentar aqui é como isto vai continuar, do
ponto de vista político, o que pode levar nosso país à breca.
Já sabemos que não é moleza
colocar um presidente para fora, e já o fizemos duas vezes somente na vigência
de nossa Constituição. Se o Temer cair, diante de uma “flechada” do Janot, com o arco apontado pelo Fachin, o nosso livro maior poderá
ficar conhecido como “o catecismo das flechadas a presidentes”.
E o lamentável de tudo isto, e
das consequências das flechas sem rumo, é a desconfiança que o homem comum
passou a ter aumentada no nosso Judiciário, que tinha se saído tão bem do
mensalão. Hoje, só a operação Lava Jato se salva. No entanto, as atitudes de
brigas internas entre os poderes e dentro deles, podem minar o esforço que esta
operação policial vem fazendo para lavar o que bem merece e deixar o sujo de
lado.
Para não nos alongarmos apenas
desejamos aqui que as flechas do Janot não estejam viciadas, só atingindo
alguns. Ou seja, além do bambu e das flechas, esperamos os arcos sejam de
madeira de lei.
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