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sexta-feira, 23 de março de 2012

A MORTE DE UM GAY, qual um cão.



Por Carlos Sena (*)

 Faz tempo que ouvi a história que segue. Não sei se de fato aconteceu na totalidade, em partes ou nunca aconteceu. Contudo, asseguro que escutei de uma pessoa próxima dos atores dessa história triste.

A cena do crime foi em João Pessoa no campus da Faculdade de Medicina, mais ou menos nos anos 60. Um jovem estudante de Pernambuco foi estudar medicina por lá, pois não tinha conseguido passar na Universidade Federal de Pernambuco. Num determinado dia, aproveitando uma folga das aulas, os alunos daquela turma ficaram jogando conversa fora no pátio quando passa um gay – daqueles estereotipados, cheio de trejeitos e, certamente com indumentárias de natureza feminina. Não deu noutra. Os estudantes de medicina deram uma curra no gay e depois uma camada de pau. Ele chegou a ser levado para a emergência, mas faleceu.

O tempo passou, os alunos se formaram e foram cumprir seus naturais destinos. O gay, qual um cachorro estava morto. A policia, diante de um cachorro morto nada fez, como ainda hoje pouco faz. O estudante pernambucano que vamos chamá-lo de José, já que não nos foi dito seu verdadeiro nome, retornou a Recife. Pouco tempo depois era um especialista renomado e rico, dono de um importante consultório médico. Casou-se, teve três filhos: dois homens e uma mulher. Esses filhos, segundo nos contaram, foram criados em berço de ouro, estudando nos melhores colégios. Infelizmente a menina nasceu com um problema congênito de saúde que não a permitia andar. O pai, embora médico excelente, nada pôde fazer pela filha que viveu a vida toda em cima de uma cama. Com os dois filhos, tudo parecia dentro da normalidade das expectativas do pai e da mãe. Estudiosos, os filhos galgavam sempre os primeiros lugares na escola e na faculdade. Eram conhecidos pela inteligência e também por serem filhos do médico famoso da cidade. Contudo, algo andava errado naqueles filhos, é o que deve ter imaginado aqueles pais. Não havia jeito que fizesse os rapazes apresentarem aos seus pais alguma namorada. O pai fazia tudo. Criava situações, apresentava moças ricas, os mandava em férias para Europa, mas nada. Certo tempo, deixaram de acompanhar os pais aos eventos que outrora eram compartilhados. Demonstravam comportamentos arredios, preferindo os dois rapazes, ficar em casa ou saírem sozinhos para alguma festa que não diziam onde era nem com quem iriam. Um belo dia, sem aguentarem a barra da cobrança da família, os dois rapazes abriram o jogo: “nós somos gays”. Os pais, como todo bom pai conservador e preconceituoso, quase morreram. Até se dispuseram a pagar um bom psicólogo, mas os rapazes, conscientes da homossexualidade, não aceitaram.

A grande maioria dos amigos do médico soube e isto foi um momento de vergonha para aquela família tradicional. Quando, finalmente os pais perceberam que tinham, de fato, dois filhos “viados”, “bichas”, ou que outro nome valha, decidiram se livrar do peso que foi colocar duas bichas no mundo. Resultado: chamaram os dois filhos lhes deram dois apartamentos em bairros classe média e os mandaram viver a vida esquecendo que tinham família. Se os filhos esqueceram que tinham família não sabemos. Certamente foram bem mais felizes com suas escolhas do que com as escolhas do pai, o Dr. José. Da filha, quem me contou disse que ela veio a falecer logo depois que os irmãos foram colocados pra fora de casa.

E agora José? E agora você? Você que faz “medicina”, que zomba dos outros, não ama nem protesta, e agora José? E agora você? Com a chave na mão (consciência) quer abrir a porta, não existe porta, quer morrer no mar... Mas o mar secou, quer ir para o inferno, inferno não há mais, José e agora?

Concluo essa dissertiva acreditando que a espiritualidade esteja presente nessa trajetória de vida. Espero que o Dr. José tenha se lembrado de quando, com seus colegas, apedrejaram uma bichinha no campus da universidade em João Pessoa. Lei do retorno? Quem aqui faz aqui paga? Não sei. Tudo que sei é que hoje tudo continua do mesmo jeito: matam-se gays como não se matam cachorros sarnentos. O que mudou neste sentido foi muito pouco, talvez a forma, mas o preconceito apenas está disfarçado pelas bandeiras do humanismo tão em moda. Pra não cometer injustiça: os gays não são mais  bestas, ignorantes e sem grana, como no passado um dia foram. A imprensa, com algumas exceções, tem feito sua parte.

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(*) Publicado no Recanto de Letras em 19/03/2012

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