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terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Por que o centro não existe




“Por que o centro não existe
     
Por Fernão Lara Mesquita

Esse nada do bolsonarismo x lulismo em que andamos vagando é o resultado da vitória da censura. A razão de ser do bolsonarismo é o lulismo e a razão de ser do lulismo é o bolsonarismo. Um existe como a negação do outro e os dois se equivalem e se anulam.

O diabo é que o centro não existe porque não sabe o que querer. Os social-democratas, portadores da síndrome do “renegado Kautsky”, nunca se livraram do “pecado original” que lhes permitiria existir por si mesmos. São a eterna sombra da esquerda antidemocrática dona do corpo que a produzia e que agora está morta. E os liberais made in Brazil simplesmente não têm no mapa a vasta planície que existe entre os dois abismos que assombram seus sonhos, o da presente iniquidade institucionalizada e o da anomia em que temem que o País caia se sair disso para o que lhes parece território incerto e não sabido. Faltam escola e jornalismo que dê a conhecer a ambos a hipermapeada solidez e a lógica prosaica da alternativa democrática real em funcionamento no mundo que funciona.

O Brasil das vilas perdidas do sertão que, no seu isolamento, tiveram de se auto-organizar para prover todas as suas necessidades praticou por 300 anos a “democracia dos analfabetos”, elegendo com pacífica e ininterrupta regularidade as lideranças da sua organização para a sobrevivência. Mas foi subitamente arrancado dessa sua “americanidade”. Tiradentes foi o último impulso de descolamento das velhas doenças europeias emitido por esse nosso DNA histórica e geopoliticamente democrático antes de elas passarem a nos ser instiladas de dentro, a partir de um Rio de Janeiro que purga até hoje o trauma do estupro em plena adolescência por uma monarquia decadente e corrupta no momento mesmo em que a democracia ensaiava os primeiros passos da sua terceira caminhada pelo planeta. Desde então temos sido cirurgicamente excluídos da trajetória dela...

O governo bipartido entre os Bolsonaros e o time de Paulo Guedes e Cia. corporifica essa dualidade. Ele é o filho tecnocrático importado, mas órfão do pai político e ideológico que o fez nascer nas democracias que fixaram a inviolabilidade da pessoa como o ponto de partida e de chegada de todas as ações do Estado e a hegemonia da iniciativa individual sobre a pesporrência de uma “nobreza” corrupta na busca da felicidade geral da Nação. Falta a humildade para importar o pai da experiência humana para a experiência brasileira, como têm feito os asiáticos e o resto do mundo que vai pra frente.

A ciência moderna só pôde estabelecer-se a partir do momento em que o dogma imposto pelo terror da “ira divina” passou a ser “protestado”. Mas onde a Contrarreforma, armada da Inquisição, fincou pé os “terraplanistas” da política seguem com sua furiosa campanha contra as vacinas institucionais que há mais de 200 anos fazem despencar a incidência de miséria onde quer que sejam aplicadas.

O Brasil é refém de um “Sistema” fechado em si mesmo, ancorado num passado que está morto e hermeticamente blindado contra qualquer eflúvio de renovação. E o monopólio da oferta de candidaturas ao eleitorado atribuído aos partidos políticos, recém debatido no STF, é a peça fundamental dessa blindagem. Nada na nossa ordem partidária e eleitoral tem o propósito de reproduzir fielmente o País real no País oficial, o pressuposto básico da constituição de uma democracia representativa. O único objetivo do “Sistema” é autorreproduzir-se e prevenir a ferro e fogo qualquer hipótese de surgimento de concorrentes.

Que os seus sumos sacerdotes fulminem qualquer dissidência no altar do STF com a invocação da letra da sua própria lei e os seus inquisidores eletrônicos corram o reino prometendo o fogo do inferno a quem ousar desafiá-la não põe nada de novo sob o sol. Toda igreja, da primeira à última, acenou com o seu céu para impor o seu inferno. Mas quando ouço a afirmação de que candidaturas avulsas seriam “obras individuais” que “atentam contra a democracia representativa e o Estado Democrático de Direito” tento convencer-me de que se trata apenas de um equívoco acaciano e não consigo.

Tais candidaturas seriam atentatórias ao Estado de Direito se, como os nossos partidos, fossem sustentadas pelo Estado à revelia do que pensam delas os eleitores. Posta num contexto histórico então essa condenação emparelha, em matéria de anacronismo, com a afirmação em pleno terceiro milênio de que a Terra é plana e o resto do Universo é que gira em torno dela. Afinal, a própria Constituição de 88 confessa seu dolo “ao exigir filiação partidária e fazer depender o exercício do direito de se candidatar de uma aceitação prévia de seus pares”, e não da aceitação prévia dos eleitores, como acontece em todas as democracias sem aspas, que não apenas aceitam e incentivam candidaturas avulsas independentes, como também, para prevenir a apropriação indébita da vontade do povo, da qual todo poder emana, impõem aos partidos regras internas permeáveis de apresentação de candidaturas a serem decididas em eleições prévias diretas.

A cura do Brasil, assim como historicamente se deu com outras democracias que se curaram antes da nossa, passa necessariamente pela instituição de eleições distritais puras, as únicas a proverem uma identificação à prova de falsificações entre representantes e representados, pela aceitação de toda e qualquer candidatura que o povo chancelar, pela despartidarização completa das eleições municipais, tanto porque não faz sentido misturar ideologia com a gestão técnica da infraestrutura das cidades quanto para encurtar o espaço dos proprietários de partidos políticos, pela imposição de primárias diretas das eleições estaduais para cima e, finalmente, pela instituição dos direitos de recall, referendo e iniciativa legislativa para os eleitores manterem seus representantes sob rédea.

Isto porque – é claro como o sol! – democracia existe quando é o povo quem manda. Na outra ponta estão as venezuelas e as cubas da vida. E no meio, isto é, no nada, boia o Brasil junto com outros náufragos.”

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Na democracia instituições não morrem, suicidam-se




“Na democracia instituições não morrem, suicidam-se
     
Por Francisco Ferraz

Quando o nome dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) é conhecido pelo povo em todo o País; quando se consegue antecipar o voto dos ministros sem errar; quando ministros se agridem oralmente, usando linguagem vulgar nas sessões; quando não hesitam em atropelar competências, a comprometer a segurança jurídica; isso só pode significar que o STF está numa trajetória equivocada de afirmar a sua superioridade política sobre os demais Poderes e está irreversivelmente enredado na política... É um desastre anunciado que já se instalou na Corte: a política está expulsando o Direito do tribunal.

O fato inegável é que o STF tem competências que o diferenciam do Executivo e do Legislativo. O poder de decretar a inconstitucionalidade de um diploma legal é exclusivo dele, afeta os outros dois Poderes sem ser por eles afetado. O STF não é um órgão eleito pelo povo, não está sujeito a mandato fixo, salvo por idade, e tem seus ministros indicados pelo Executivo e aprovados pelo Legislativo. Os freios da escolha popular ou do mandato com prazo fixo não o atingem. Por fim, é a última instância não só do Judiciário, como do sistema político em matéria jurídica.

Se o Judiciário tem esse poder que pode levá-lo a considerar-se superior aos outros dois, este também é o seu calcanhar de Aquiles.

Tribunais superiores, em regra, acautelam-se no exercício desses poderes. Não pretendem ser populares, detestam as especulações jornalísticas, proíbem fotografia, gravação ou filmagem de suas atividades, não dão entrevistas e evitam a todo o custo envolver-se na política. Preservam religiosamente sua discrição e sua independência, o mistério e a magia da instituição. Sabem que o maior inimigo da legitimidade da Corte é o envolvimento político. São 11 ministros que sabem qual o custo de tão elevada função: evitar a política, manter sob reserva suas características pessoais e evitar a popularidade, que gera expectativas e pressões.

Nosso Supremo, guardadas as diferenças entre os sistemas políticos de outras nações, tem se mantido dentro desses parâmetros comportamentais a maior parte do tempo. Os casos desviantes sempre existiram, mas divisão por motivos políticos, com formação de blocos, controles de fidelidade e a ousadia de submeter a segurança jurídica a interesses políticos não faziam parte da história do STF.

Então, por que o STF cada vez mais se envolve em decisões políticas? Porque a política está expulsando o Direito do tribunal?

O próprio ex-presidente Lula respondeu a essa pergunta quando da divulgação dos telefonemas gravados pelo então juiz Sergio Moro. Neles o ex-presidente exigia de seus companheiros que “cobrassem” dos ministros o apoio de que estava necessitando, a revelar que a nomeação deles implicava a contrapartida em votos no plenário. Se a lógica do aparelhamento político precisava de confirmação, o ex-presidente encarregou-se de fornecê-la.

O ingresso da política no STF foi também coadjuvado pelo próprio tribunal quando liberou a transmissão das sessões pela TV. O público não acompanharia sessões técnicas, mas o faria nas sessões em que estavam em julgamento questões políticas.

Mas a TV no STF teve mais consequências. Ministros subitamente se tornaram figuras públicas. Seus acertos, como seus erros, passaram a ser vistos por todos, choveram convites para eventos, jornalistas estavam sempre em busca de entrevistas, sua presença nos noticiosos era frequente. Ministros, sendo 11, eram mais presentes na mídia do que as centenas de deputados e dezenas de senadores. Nem mesmo os presidentes das Casas Legislativas tinham cobertura de mídia tão intensa. Conflitos logo se tornaram públicos, o que exigia dos contendores coerência na continuidade da desarmonia.

A TV e a notoriedade pública envolveram os ministros do STF, atraindo-os para um protagonismo político para o qual não estavam preparados, mas cuja atração se revelou irresistível. Se a política entrou no STF, em boa parte foi porque a TV entrou na Corte.

Houve ainda um terceiro fator na politização da Corte. Como a ação da Lava Jato decorria numa comarca, sob a autoridade de um juiz singular, a investigação desembocava num processo e o processo conduzia ao julgamento, à sentença e, inevitavelmente, a recursos a instâncias superiores. A leitura dos que já estavam inoculados pela popularidade era de que um juiz de primeira instância havia aplicado uma capitis diminutio nos juízes do STF.

De início não se percebeu a desproporção que decorria da entrega do maior caso de corrupção da História do País a um jovem juiz singular. Não era uma ação de governo investigando suas entranhas, conduzida por autoridades de espectro nacional. Era uma ação em que o governo do País e suas autoridades surgiam como suspeitos e, como réus, ficaram sujeitos ao processo penal. Políticos, empresários e servidores da mais alta hierarquia acabaram submetidos à autoridade de um jovem juiz de subseção. Restaria ao STF, então, julgar recursos em matéria de Direito, porque em matéria de fato não havia mais o que fazer. E tudo o que surgia era resultado da ação de um juizado singular. Foi muito difícil para alguns ministros aceitar essa aparente humilhação.

Assim, Lava Jato e mensalão seguiram roteiros opostos quanto à sua origem: a Lava Jato deslocou-se de baixo para a cúpula do sistema político; o mensalão, ao contrário, nasceu e se extinguiu no STF.

Foi o mensalão televisionado, entretanto, que introduziu os ministros no mundo da política e do espetáculo, cujo ingresso ocorre com facilidade, até mesmo por descuido, mas cuja saída não se dá sem pagar um preço proibitivo na majestade institucional da Corte e naquele “terrível poder” dado ao homem para julgar o homem. Fácil é entrar no jogo político, difícil sair; impossível sair ileso e recuperar a pureza de outrora.”

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Acesso à dignidade





“Acesso à dignidade
      
Por Ana Carla Abrão

É inacreditável que um país como o Brasil ainda não tenha atingido a universalização no acesso ao saneamento básico. Pior do que isso, deveria ser inaceitável que apenas pouco mais da metade da população brasileira tenha acesso à coleta e tratamento de esgoto ou que mais de 100 milhões de brasileiros não tenham o seu esgoto nem sequer coletado. Mesmo em São Paulo, Estado mais rico do País, ainda não atingimos a universalização. Os dados do Painel Saneamento Brasil, compilados pelo Instituto Trata Brasil, mostram que, ainda hoje, mais de 10% de paulistas vivem sem acesso à coleta e quase 40% não têm tratamento de esgoto. Se olharmos os números de Roraima, que detém alguns dos piores indicadores, estamos falando de 60% da população sem acesso nem sequer à coleta de esgoto. Tratamento ainda é um sonho distante.

Há que se aplaudir, portanto, a aprovação do texto-base do novo marco de saneamento pela Câmara dos Deputados. O projeto foi aprovado com 276 votos a favor e injustificáveis 124 votos contrários. Ainda que de forma tardia, avança-se na direção de atrair capital privado para os investimentos que urgem no setor de saneamento no Brasil. Afinal, as evidências mostram que o modelo predominantemente estatal está exaurido e será incapaz de promover a necessária universalização. Além disso, a falta de disponibilidade de recursos públicos, num país refém de gastos obrigatórios não necessariamente bem alocados, afasta qualquer perspectiva de se suprir, via investimentos públicos, as necessidades de recursos nesse setor. Daí a importância de se estabelecer as bases institucionais que gerem atratividade, acesso e estabilidade de regras que vão alavancar os investimentos privados para o projeto de universalização dos serviços de saneamento no Brasil.

O ponto alto do projeto é a introdução da obrigatoriedade dos processos de concorrência nas contratações de serviços na área por parte de Estados e municípios. Até aqui, são as empresas estatais que dominam o setor de saneamento, isentas que são de processos licitatórios competitivos. São os chamados contratos de programa que ganharam um último fôlego. Com a futura obrigatoriedade das licitações e a consequente vedação dos contratos de programa, a tendência é que haja aumento da participação de empresas privadas no mercado e, consequentemente, dos volumes investidos. A expectativa do governo – algo otimista – é de investimentos na casa dos R$ 700 bilhões até o fim de 2033, ano em que deverão ser atingidas as metas de 90% de acesso à coleta e tratamento de esgoto e 99% de acesso à água potável.

O novo marco também prevê a regionalização na prestação dos serviços de saneamento e possibilita que a oferta seja feita a blocos de cidades. A regionalização e o emblocamento deverão gerar ganhos de eficiência e aumentar a atratividade da prestação de serviços em municípios menores, levando a uma expansão mais rápida da oferta não só dos serviços de coleta e tratamento de esgoto, mas também do abastecimento de água potável e dos programas de limpeza urbana e reciclagem de lixo.

O projeto aprovado é um avanço, não restam dúvidas. Chama a atenção, contudo, a expressiva votação contrária. Vários dos mais de cem que foram contra o projeto usaram o argumento de que água não se privatiza. Deixando de lado a falta de profundidade características dos clichês ideológicos – ou de outros motivos não nomináveis – é no mínimo questionável que mulheres e homens públicos, que foram eleitos para defender os interesses da população, ajam ignorando a situação precária que o atual modelo estatal nos legou. Junte-se a isso a realidade fiscal corrente e os resultados das privatizações, em particular do Sistema Telebrás no governo Fernando Henrique Cardoso, e não há como justificar ser contrário a um marco legal que fomenta o investimento privado no setor.

O Brasil prescinde de resultados. Os 124 deputados que votaram contra a universalização dos serviços de saneamento deveriam, em vez de defender a manutenção de uma situação desumana e indigna, usar seus votos – e seu espaço – para defender o fortalecimento das agências reguladoras. Se elas funcionarem de forma técnica, independente, exercendo sua prerrogativa de garantir que os serviços sejam prestados com foco em qualidade, acesso e preços justos, elas estarão, juntamente com uma nova lei, reforçando os objetivos e as metas.

Afinal, acesso a serviços de saneamento significa elevar os índices de aprendizagem, reduzir os gastos com saúde pública e melhorar as condições de vida de milhares de brasileiros. Até porque, saneamento significa, acima de tudo, acesso à uma vida digna. Tão simples e básico quanto isso.”

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Meritocracia e desigualdades sociais




“Meritocracia e desigualdades sociais
     
Por José Goldemberg

As causas das grandes manifestações populares, recentemente, no Equador, no Chile, no Líbano, no Iraque, na Checoslováquia e em Hong Kong, que abalaram governos e instituições, são complexas, mas não há dúvida de que boa parte dos protestos se origina no aumento da desigualdade de renda que está ocorrendo no mundo todo.

Esse é também um dos temas centrais das eleições presidenciais dos Estados Unidos no próximo ano. Apenas 0,1% dos americanos – cerca de 300 mil pessoas, numa população de mais de 300 milhões – controlam 20% da riqueza nacional. A renda dessas pessoas nos últimos 40 anos cresceu muito mais rapidamente que a renda do restante da população.

O fosso entre ricos e pobres está aumentando não apenas nos Estados Unidos, como também no Chile, na Argentina, entre outros países, como o Brasil, conforme mostram dados recentes do IBGE. A desigualdade econômica, porém, é apenas parte do problema: desde os primórdios da civilização, 10 mil anos atrás, existem aristocracias que governam e se beneficiam do trabalho da população: as famílias imperiais da Antiguidade, os senhores feudais da Idade Média e o sistema colonial vigente até o século 20. Em todos esses sistemas, o mérito foi uma consideração secundária diante das relações de sangue, favoritismo e corrupção.

A Revolução Francesa, de 1789, extinguiu a monarquia e implantou o regime republicano, que abriu caminho para a emergência dos mais capazes, escolhidos pelo mérito. As vantagens da meritocracia foram compreendidas pelo rei Luís XV, da França, antes da revolução. Ele criou, em 1760, uma escola militar para treinar oficiais oriundos de famílias que não pertenciam à nobreza. Foi nela que Napoleão Bonaparte, vindo de uma província secundária como a Córsega, se distinguiu e iniciou sua meteórica carreira militar, o que então era raro.

A meritocracia para o serviço público foi introduzida na Inglaterra em 1830 e um dos sucessos indiscutíveis da colonização da Índia pelos ingleses foi a organização de um excelente serviço público, que dura até hoje.

Surgiram, contudo, recentemente nos Estados Unidos teorias de que a causa dos problemas da desigualdade de renda é a nova aristocracia de superdotados e supercapacitados, que substituiu a velha aristocracia do “sangue”, isto é das grandes famílias do passado, como Vanderbilt, Carnegie e Rockefeller. Os novos bilionários, como Bill Gates (Apple), Mark Zuckerberg (Facebook), Jeff Bezos (Amazon) e outros, passaram a ser membros da aristocracia do país. As universidades de elite como Stanford, Harvard, MIT, nas quais estudaram, estariam, portanto, alimentando a concentração de fortunas.

Mais ainda, os filhos desta nova aristocracia, que são excepcionalmente bem preparados para a corrida da meritocracia, reproduzem o que se chama de “casta hereditária”. Nessas universidades, a maioria dos estudantes vem efetivamente de famílias ricas.

Essas ideias se originaram na noção de que na Inglaterra o sistema educacional perpetuava o domínio da aristocracia nas posições do governo por meio dos egressos das grandes universidades, como Oxford e Cambridge, às quais as classes menos favorecidas não tinham acesso.

Um educador inglês de tendência socialista, Michael Young, escreveu em 1958 uma sátira sobre os efeitos que o sistema educacional vigente poderia ter no futuro. Na época os jovens de 11 anos eram submetidos a exames que mediam o seu QI (quociente de inteligência) e de acordo com seu desempenho eram encaminhados para os diferentes tipos de escolas: os melhores para as universidades, os piores para escolas profissionais para a indústria, o comércio e a agricultura.

A tese fundamental de Young é que faz sentido escolher pelo mérito as pessoas mais adequadas a uma atividade específica (como pilotar aviões ou dirigir uma empresa de energia), mas permitir que elas constituam uma nova classe social que não deixa espaço para outros é um absurdo.

A sátira de Young faz uma caricatura do que poderia acontecer no futuro: uma revolução populista que destrói o governo aristocrata criado pela meritocracia. Seu livro é da categoria das “distopias”, como o filme Metrópolis, de Fritz Lang, os livros Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, que imaginaram um futuro em que elites privilegiadas controlavam completamente a sociedade e exploravam o resto da população.

É evidente, hoje, que as previsões da distopia de Young não se concretizaram. O controverso QI como único critério para alocação de crianças em escolas foi abandonado, já que é obvio que ele poderia variar ao longo do tempo, bem como as qualificações e predicações das pessoas. Competição e esforço individual têm papel importantíssimo no sucesso das pessoas, e não apenas o seu QI.

Outras experiências de “engenharia social” foram tentadas, também sem sucesso: os comunistas, após a revolução russa de 1917, aboliram os exames de seleção (vestibulares) nas universidades, abrindo suas portas aos “filhos dos trabalhadores”. Passados alguns anos o próprio Lenin se deu conta de que a construção do socialismo precisava de técnicos competentes e reintroduziu a meritocracia.

Meritocracia não é a causa das desigualdades econômicas que existem atualmente em muitos países, o que pode e deve ser resolvido pelo sistema de taxação das grandes fortunas. Os problemas que enfrentamos hoje se originam das características do capitalismo do século 21: a tecnologia moderna, largamente baseada na informática, depende muito mais de pessoal superqualificado do que o sistema industrial do passado – mineração, siderurgia, transporte e produção de bens de consumo –, que exigia grande quantidade de mão de obra e de materiais, ao passo que a informática depende fundamentalmente da inteligência que se cultiva e desenvolve nas universidades.”

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Uma guerra particular




“Uma guerra particular

Por Fernando Gabeira

Me segura que vou ter um troço. Esta é uma frase cômica, talvez muito vulgar para um tema clássico como a política externa de um país. No entanto, ela me parece adequada para definir os passos de Bolsonaro neste primeiro ano de governo.

Ele começou questionando a relação com a China, o nosso maior parceiro comercial. Os chineses não podem comprar o Brasil, dizia. Com o tempo, a turma do deixa-disso o convenceu de que as relações com a China são necessárias. Os próprios chineses, do alto de muitos séculos de experiência, estavam tranquilos. Hoje, Bolsonaro já fala de um futuro comum com a China.

Bolsonaro resolveu transferir a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém. De novo, a turma do deixa-disso o convenceu de que não era oportuno. O filho Eduardo insiste na tese. Isto indica, pelo menos, que na próxima geração de Bolsonaros no poder a transferência pode ocorrer. Isso leva tempo e depende das urnas.

Bolsonaro disse a Trump que o ama. Sua ideia era se alinhar totalmente com os Estados Unidos. De novo, a turma do deixa-disso alertou: calma, é preciso se aproximar sim, mas com cautela.

Ele achou que os Estados Unidos indicariam o Brasil para a OCDE. Pensava que isto viria de uma hora para outra. Os americanos indicaram a Argentina, pois já tinham compromisso anterior com o vizinho. Trump vai cumprir a promessa. Mas no seu tempo. Por enquanto, fala em taxar aço e alumínio do Brasil sem, ao menos, telefonar para Bolsonaro.

Por falar em Argentina, Bolsonaro criticou a escolha popular e disse que aquilo iria se tornar uma nova Venezuela. Resolveu que não iria à posse de Alberto Fernández. Em seguida, designou um ministro. Voltou atrás e disse que não iria mais ninguém. De novo, a turma do deixa-disso entrou em campo. Bolsonaro atenuou seu discurso e resolveu enviar o vice, general Mourão.

Nem sempre foi possível segurar Bolsonaro. Às vezes, ele teve um troço, como no momento em que divulgou o vídeo do golden shower. Sua ideia era mostrar como o mundo estava perdido.

Bolsonaro de novo teve um troço quando foi criticado por Macron e ofendeu Brigitte, a mulher do presidente francês.

No campo da política ambiental, aí sim não foi possível contê-lo. Ele não consegue entender a preocupação mundial com a Amazônia, muito menos com o aquecimento do planeta.

Mesmo contido em vários momentos, continuou tendo um troço, dessa vez acusando Leonardo DiCaprio de financiar as queimadas na Amazônia. Em seguida, investiu contra Greta Thunberg: pirralha, pirralha.

Bolsonaro não entende a influência crescente da juventude. Ainda mais quando é encarnado por meninas. Ele mesmo disse que fraquejou quando fez a filha, depois de tantos varões na família.

Ele no momento ainda tem o apoio de 30% dos brasileiros. Este índice é dinâmico, pode cair.

Mas a verdade é que muita gente como ele duvida do aquecimento global, questiona o papel das ONGs e acha Greta uma pirralha que deveria estar estudando.

Bolsonaro não é um relâmpago em céu azul. Nem simples produto da ignorância, pois seus simpatizantes frequentaram boas escolas. Isto não significa que fecharam suas cabeças para sempre. Podem mudar no futuro.

Por enquanto, não há outro caminho, exceto segurar para que Bolsonaro não tenha um troço. Em termos domésticos, tem sido mais difícil. Foi preciso a intervenção da Justiça para evitar que nomeasse um diretor da Fundação Palmares simpático à escravidão.

Além da Justiça, o próprio Congresso tem de segurar Bolsonaro: supressão de radares nas estradas, mineração em terras indígenas, ataques à ciência, ele vive tendo um troço.

Sexta-feira passada foi o 13 de dezembro. Felizmente, o ano termina sem que consigam ter o grande troço, aquilo que ameaçam constantemente nas entrevistas: um AI-5.

Foi um ano duro para todos os seguradores no Brasil, inclusive a imprensa, que sofreu alguns solavancos para evitar os troços. No entanto, chegamos ao final de 2019 sem grandes sobressaltos. E com muito mais experiência para a nova temporada. Creio que isto é uma forma modesta de dizer Feliz Ano Novo.”

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Ajuste fiscal: para onde vamos?




“Ajuste fiscal: para onde vamos?
      
Por José Roberto Mendonça de Barros

Há um grande consenso, entre os analistas minimamente isentos, que ao final do governo Dilma o regime fiscal brasileiro estava destruído.

Além das regras terem sido constantemente atropeladas pela chamada contabilidade criativa, três indicadores são suficientes para validar o diagnóstico:

- Os superávits primários mantidos por muitos anos, de 1998 a 2013, foram substituídos por recorrentes déficits desde então.

- Os gastos e transferências correntes, sem juros e sem investimentos, passaram a representar mais de 90% do Orçamento. Em muitos Estados e prefeituras, a situação havia se tornado ainda pior, pois muitos nem sequer conseguiam pagar integralmente os salários dos servidores. Na prática, caminhávamos para o momento no qual a coleta de impostos não manteria a máquina pública.

-Em consequência, a relação dívida pública/PIB começou a crescer, indicando a possibilidade de superar 100%, situação totalmente insustentável.

A consequência desse diagnóstico é que o programa de ajuste teria de ser prioridade número um. Para ter credibilidade, haveria de incluir a questão das aposentadorias e pensões, de um lado, e do crescimento descontrolado da folha de pagamentos, de outro.

Observe-se que, em ambos os casos, não se trata apenas de um problema fiscal, mas também de justiça. Em boa parte do setor público, os níveis salariais são muito mais elevados do que a média do País, as aposentadorias são precoces e também muito maiores que aquelas do cidadão comum.

O início do ajuste fiscal foi realizado pelo governo Temer, especialmente por meio da PEC do teto de gastos e pela gestão muito mais cuidadosa e competente da política orçamentária, detonando um conflito com os que querem gastar mais sem pensar no amanhã.

Nesse meio tempo, o intenso debate na sociedade e no meio político acabou convencendo a maioria de que a reforma da Previdência se tornara indispensável, e ela ocorreu neste ano. Embora 2019 tenha sido um ano de crescimento econômico muito modesto e o mercado de trabalho tenha continuado bastante fraco, o final do ano sugere uma melhora razoável em 2020 e depois. Especialmente quanto à questão fiscal, foram enviados ao Congresso vários projetos de reforma fiscal e redesenho do Estado.

O que nos leva a uma questão central: para consolidar a retomada do crescimento precisaremos avançar na área fiscal, lembrando que muito provavelmente as votações importantes do Congresso ocorrerão apenas no primeiro semestre em virtude das eleições municipais.

Na minha percepção, será necessária a aprovação de alguma medida (uma versão da PEC emergencial?) que impeça a folha de pagamentos do setor público de crescer acima e independentemente da arrecadação pública por um certo tempo. É preciso lembrar que, no governo federal, até este ano, houve elevações de salários decretadas ainda no governo Dilma.

Uma medida desse tipo, somada ao que já foi aprovado, garantiria que a relação dívida pública/PIB ficasse abaixo de 80% e até começasse a cair em dois ou três anos. Nesse cenário, o reforço positivo nas expectativas seria muito robusto, permitindo ao Banco Central continuar operando uma política monetária ainda estimulativa, e reforçando os pilares de uma volta mais sustentável ao crescimento.

Mas isso não será fácil. O poder de pressão das grandes corporações públicas é enorme e será exercido ao máximo. Não faltam argumentos favoráveis à expansão imediata do gasto público: um dos líderes da heterodoxia recentemente declarou que “a orientação da agenda econômica está absolutamente errada. O Brasil está indo na contramão do mundo inteiro. O que existe na Europa é usar a política fiscal para estimular a economia”. Essa fala convenientemente esquece que a Alemanha, um dos países europeus onde existe essa discussão, não tem história recente de inflação, cresce há muitos anos, tem uma situação fiscal robusta e coloca a dívida pública a taxas negativas!

Mas segue a fala argumentando que “os servidores públicos foram escolhidos como bodes expiatórios da crise”.

Música pura.”

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Pororoca de ilusões




“Pororoca de ilusões
     
Por Bolívar Lamounier

“Outros povos podem ser felizes ou desgraçados por obra de estranhos. Os povos democráticos são os únicos que têm o bem e o mal feitos por suas próprias mãos” - J. F. Assis Brasil, político gaúcho, 1893

Nunca vi, mas posso imaginar a beleza do vagalhão, do grande estrondo que se forma na foz do Rio Amazonas quando aquele enorme curso d’água colide com as águas de outros rios.

A pororoca é um fenômeno real, maciço e formidável, que qualquer pessoa pode perceber a grande distância; uma difícil metáfora, portanto, para o nosso momento político, permeado muito mais por ilusões, incongruências, movimentos erráticos e até por desatinos que por ações organizadas e efetivas. O mais comum no curso da História brasileira é as forças políticas se contraporem de forma previsível, uma tentando ser pragmática e racional, obediente aos requisitos da economia, e a outra se deixando levar por (ou adotando como tática) algum delírio populista, de fundo emocional, religioso ou ideológico.

Penso, no entanto, que o Brasil atual se afastou daquele cenário tradicional e nada faz crer que retornará tão cedo à normalidade. Afastou-se – excetuado, naturalmente, o esforço do ministro Paulo Guedes no manejo da economia – em vista da linha divisória que se estabeleceu entre duas tribos alucinadas: petistas versus bolsonaristas.

Para bem apreender a referida mudança parece-me imprescindível remontar à eleição de 2018, na qual a maioria dos eleitores votou numa das duas principais alternativas com o único intuito de evitar a outra. Os partidos ditos “de centro” naufragaram porque imaginaram poder navegar em seus frágeis barquinhos oratórios, não percebendo o portento vagalhão que se avizinhava. Claro, o embate das duas rejeições não se formou no vácuo. Constituiu-se no caldo de cultura de hostilidade a tudo e a todos que ganhou corpo em função da situação econômica, da maré montante da violência, da deslealdade de certas autoridades no tocante a suas respectivas missões institucionais e, não menos importante, dos fatos trazidos a público pela Operação Lava Jato. Este último aspecto merece breve reflexão. Não é raro uma sociedade reagir negativamente a uma grande mudança em razão do desconforto e do mau humor que ela engendra – refiro-me aqui à constatação de que a corrupção se alastrara por todo o corpo político, contaminando os três Poderes e grande parte do meio empresarial –, não obstante tal mudança ser o ponto de partida para um importante avanço na vida pública.

Comecei falando de duas grandes ilusões. Para delinear a ilusão petista seria útil remontar às origens do Partido dos Trabalhadores, relembrar a desconjuntada composição de seus quadros e seu idílico “socialismo por construir” – esboço de uma ideologia evocativa das catacumbas. Parece-me, porém, suficiente frisar que a unidade e o dinamismo daquela imensa maçaroca repousava sobre um fato deveras estapafúrdio: a devoção quase religiosa a um líder populista, Luiz Inácio Lula da Silva, que nunca levou a sério qualquer projeto de País, empenhando-se tão somente, e em tempo integral, em levar avante sua pequena Realpolitik. Paradoxalmente, a condutibilidade atmosférica do petismo deveu-se desde sempre a seu descompromisso com políticas consistentes de crescimento e a sua rasa fundamentação intelectual.

Deixo para os pesquisadores de opinião e para os psicólogos sociais a tarefa de descrever as antenas que levaram Jair Bolsonaro a captar e personificar a crescente dilaceração da sociedade brasileira de alguns anos para cá. Não posso eximir-me de dizer algo sobre o governo Bolsonaro, que em poucos dias concluirá seu primeiro ano, mas adianto que dificilmente terei algo de novo a dizer a esse respeito. O que primeiro salta aos olhos é o bifrontismo do governo. De um lado, a área econômica, sob o comando de Paulo Guedes e de Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, trabalhando com afinco e coesão, numa direção que me parece correta. Do outro, uma acentuada cacofonia, da qual o próprio presidente participa com notável intensidade. O presidente tem dito e repetido que economia “é com o Guedes”, ficando ele, o presidente, com o restante. Nesse aspecto, penso que o presidente se equivoca redondamente, uma vez que tal distinção inexiste na prática governamental. Ajustar as contas públicas, atrair investimentos e repor a economia nos trilhos do crescimento é uma operação complexa, que exige a colaboração de todos os setores do Executivo, em colaboração com os outros dois Poderes, orientando-se o conjunto no sentido de estabelecer a estabilidade e previsibilidade do “ambiente de negócios”.

Ora, com todo o respeito, sou obrigado a registrar que o presidente fala muito mais do que deve, intervindo de forma errática em diversos temas que não lhe dizem respeito. Falta-lhe, evidentemente, a chamada “liturgia do cargo”, ou seja, a sobriedade, o comedimento e a imparcialidade sem os quais a mais alta magistratura não funciona a contento. No contexto atual, o papel do presidente precisa ser muito mais o de um pacificador que o de um incitador de conflitos.

8Mas qual será, no essencial, a grande ilusão bolsonarista? É, a meu juízo, sua incapacidade de enxergar o Brasil numa perspectiva histórica mais dilatada. A melhor ilustração dessa deficiência é ter o presidente colocado na estratégica área da educação um técnico aplicado, mas que não dá indícios de conhecer os entraves que a paralisam. Sabemos todos que o Brasil ainda se digladia com a chamada “armadilha da baixa renda”. Se nosso anseio de retomar o crescimento do PIB se mantiver na faixa de 2% a 3% ao ano, levaremos pelo menos 25 anos para dobrar nossa renda per capita. Não é exagero afirmar que tal cenário beira o insustentável.”

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Um escândalo puxa outro no Congresso




“Um escândalo puxa outro no Congresso
     
Por José Nêumanne

O tal do fundão eleitoral já é um escândalo em si: nada justifica que o cidadão, na penúria em que se encontra, financie bilionárias campanhas eleitorais. No entanto, neste país do absurdo total, ninguém discute se, eleitor ou não, seja de que partido for ou não filiado nem devoto de nenhuma legenda, deve pagar, sem direito a tugir ou mugir, a recente farra do dispêndio em todos os pleitos.

No ano passado, quando foram eleitos presidente da República, governadores, deputados estaduais e federais e dois terços dos senadores, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) autorizou que os 35 partidos registrados e reconhecidos em seus escaninhos gastassem R$ 1.716.209.431,00 em suas campanhas. É um despautério haver tantos partidos e se gastar tanto dinheiro público numa disputa privada em sua essência. Afinal, se não fosse, as entidades disputantes não seriam chamadas de partidos.

O governo Bolsonaro, eleito para implantar a tal da nova política, que diferiria da chamada de velha pela mudança dos velhos paradigmas por novos, traiu esse compromisso ao mandar um projeto orçamentário para o Congresso com dotação de R$ 2 bilhões para o tal fundo eleitoral. Os parlamentares consideraram a quantia, prevista para eleger prefeitos e vereadores, ínfima, apesar de ser mais que o dobro da das eleições gerais de há dois anos. E exigiram quase dobrar a verba prevista no texto do Orçamento, passando-a para R$ 3,8 bilhões. Fingindo não aceitar a escabrosa exigência, Bolsonaro vetou o truque da redação engana-trouxa. Achava que assim cumpria o pacto da adoção da vergonha na cara como projeto de governo.

O hipócrita faz de conta que abre a frase anterior parte da constatação de que seu primogênito, o senador Flávio Bolsonaro, ajudaria os “nobres” comparsas a derrubar o veto do pai. Para consternação geral da Nação, o ex-deputado estadual fluminense, que obteve 4.380.418 votos na disputa pela vaga no Senado, teve o desplante de dizer que votara na derrubada do veto por engano.

O erro primário que se atribui o senador e o faz merecer o apelido de “Flávio Bó”, lembrando Pedro Bó, o simplório coadjuvante de baixo QI no quadro do mentiroso Pantaleão de Chico Anysio na TV, não foi exclusivo. Muitos de seus colegas erraram, embora soubessem que o estavam fazendo em proveito próprio, e não representando o povão. O resultado da votação no Congresso para deixar em aberto a fixação do novo valor hipertrofiado não deixa dúvidas quanto à consciência (ou melhor, à falta dela) dos congressistas sobre o acintoso aumento: 263 a favor e 144 contra. A diferença deixou clara a reação ao anúncio de que a dádiva cairia para R$ 1,7 bilhão por decisão da teimosa equipe econômica.

O relatório do deputado Domingos Neto, de 31 anos, lançado na política pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), de esquerda, em 2009, e, depois, transitado por PROS e Partido da Mulher Brasileira antes de chegar à atual sigla, o PSD de Kassab, foi aprovado na Comissão Mista de Orçamento. Com apenas cinco votos contra, o relatório foi acusado de ter capturado verbas destinadas antes à educação e à saúde. O relator negou e disse que recebeu apelo de quase todas as bancadas para tomar a estroina decisão.

O pedido de aumento, que ele citou como inspiração para seu generoso relatório, contudo, motivou mais uma denúncia. O senador Jorginho Mello (PL-SC), cuja assinatura foi incluída, reafirmou sua militância contra o fundão e disse que não o assinou. Em resposta à queixa, veiculada por Cláudio Dantas, de O Antagonista, o deputado Wellington Roberto (PL-PB) confirmou que havia assinado pelo senador e também pelo presidente de seu partido, o notório Valdemar Costa Neto. Este, dono do PL, foi julgado e condenado a sete anos e dez meses de prisão, mas só cumpriu parte da pena, pois foi indultado por Dilma e perdoado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2016.

O tal fundão eleitoral é, portanto, um conto real de terror que ainda tende a produzir novas cenas de pânico para o pobre pagador de impostos, que banca a farra bilionária dos donos de legendas e seus sócios beneméritos. Por enquanto, o peculato autorizado na letra da lei mais importante da democracia brasileira – que determina o destino da distribuição do dinheiro recolhido pelo rigoroso fisco – tem produzido um florilégio de cinismo sem limites. Domingos Neto disse que a falsificação da assinatura do senador Jorginho Mello pelo deputado Wellington Roberto não importa. Afinal, segundo ele, este pode ter assinado no lugar errado por engano. E superou o próprio falsário em desfaçatez, pois este confessou o delito: “Assinei como representante do meu partido numa reunião em que estavam ausentes o presidente e o líder (no Senado). Encerrada a reunião, perguntaram se eu podia assinar. Assinei e assinaria de novo se preciso”.

Davi Alcolumbre, que venceu Renan Calheiros em eleição fraudada para a presidência do Senado e do Congresso, e Rodrigo Maia, o Botafogo do propinoduto da Odebrecht, fazem dos plenários do Legislativo meros carimbos de decisões dos chefões partidários. Em golpes de mestres, driblam as maiorias plenas em conchavos do tal colégio dos líderes, também avalizando o contorcionismo de Maia sobre o “sem fundo” eleitoral. Em obscuro contraste com a velha aritmética de Pitágoras de Samos, Maia tentou menosprezar o sacrifício da sociedade para financiar a farra eleiçoeira, num confuso axioma: “Independentemente do valor, se é (sic) dois, três ou quatro (bilhões de reais), o importante é que você mostre à sociedade que isso não está sendo em detrimento de nenhuma área fundamental do orçamento público”. E completou, solene e solerte: “Em relação ao fundo, a sociedade não vai ficar satisfeita nunca, mas é preciso financiar a democracia”.

Ou seja, esta anciã prostituída é o regime em que o povo paga a farra de gatunos e falsificadores de assinaturas.”

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Agora eu se consagro




“Agora eu se consagro
      
Por Pedro Fernando Nery

Eram os 39 do segundo tempo, o Corinthians perdia de 1 a 0 para o Palmeiras. Ataque corintiano, a bola sobrou para Bruno Octávio. De muito longe da área, o jogador do Corinthians tentou resolver sozinho, chutando dali mesmo e isolando a bola. O narrador Milton Leite não se conteve, chamou o momento de patético e lançou um bordão popular nos anos seguintes: agora eu “se” consagro! A expressão ironizava o jogador fominha que, empolgado e imaginando um momento de glória, acabava fazendo uma tolice.

A decisão sobre a Loggi na sexta é um desses momentos de nossos operadores do Direito que lembram o “agora eu se consagro”. A startup brasileira é espécie de Uber de entregas, com plataforma que conecta milhares de motoboys (cadastrados como microempreendedores individuais) a clientes. A Justiça do Trabalho determinou que todos sejam contratados, mandando ainda a empresa disponibilizar estacionamento e pagar R$ 30 milhões de multa. A razão seria “dumping social”: o valor estipulado equivale a todo o faturamento de 2018 (menos que os R$ 200 milhões pedidos pelo Ministério Público do Trabalho), autor da ação. Pode ainda ter de pagar R$ 10 mil por motoqueiro que não for contratado via CLT.

O ramo trabalhista é talvez o com mais adeptos do movimento “agora eu se consagro”, com juízes e procuradores voluntaristas produzindo decisões deletérias. A turma do agora eu se consagro adora chavões como “o trabalho não é mercadoria” (em negrito na decisão do caso da Loggi) e “cada vida não tem preço” (presente).

Focaremos nas possíveis consequências econômicas da decisão, antecipadas pela própria juíza, quando lembra que o cadastro na Loggi pode ser “um patamar melhor do que eventual desemprego ou miséria”. Quanto à presença ou não de vínculo empregatício, registra-se que a decisão peita o entendimento do STJ, que em setembro decidiu em caso semelhante que a situação é de autônomo, não de empregado. A juíza do Loggi justifica a decisão com base na reforma trabalhista, que passou a permitir o contrato por hora (intermitente): mas vale registrar que o intermitente é convocado pelo empregador, enquanto os usuários de aplicativos escolhem quando logar nas plataformas, e por quanto tempo ficar.

A contratação pela CLT implica custo muito maior do que o contrato do MEI [Micro Empreendedor Individual]. O valor pode ser mais que o dobro, considerando encargos previdenciárias e trabalhistas. É ingênuo supor que o lucro dos investidores arcará com a mudança. A empresa tentará repassar o custo para os consumidores e, o que não conseguir, para os motoboys (e é fácil para os clientes substituir serviços como delivery de sanduíches).

Supondo que a regra valesse para as demais plataformas, é intuitivo que os motoqueiros – muitos que hoje ganham mais do que a renda média nacional – passariam a ter rendimentos líquidos menores. Haveria restrições a novas vagas e muitos seriam desligados, voltando ao desemprego de que tantos só conseguiram sair pelo colchão dos aplicativos. A comparação com a jurisprudência da Califórnia reconhecendo vínculo é inoportuna: a região tem desemprego 3 vezes menor, renda 5 vezes maior e o vínculo empregatício é em uma legislação trabalhista das mais flexíveis do mundo. As consequências aqui serão piores. (Em tempo: estudo de big data de outubro no Journal of Political Economy identificou que a flexibilidade da plataforma traz ganho equivalente a 40% da renda para motoristas da Uber, em relação às alternativas).

A ironia do “trabalho não é mercadoria” que é exatamente como produtos guardados num armazém que ficam a multidão de desempregados vítimas dos juízes do agora eu se consagro. Mês passado um ex-presidente da associação de juízes declarou inconstitucional a MP do Verde Amarelo, que nem estava em vigor. Mais cedo, o TRT-MG reconheceu vínculo entre motoristas e Uber, e a decisão (“histórica”) foi rapidamente traduzida para inglês e espanhol.

*

No sábado, o MEI foi visto como fonte de direitos para a turma que malhou a reforma trabalhista, quando artistas foram excluídos do alcance do microempreendedor individual. Atrizes globais que posaram com carteiras de trabalho em protesto à flexibilização de 2017 foram rápidas em criticar o fim do MEI para a classe. Deputadas da esquerda também apontaram o risco de desemprego para artistas, já que as alternativas são o contrato via CLT ou autônomo tradicional, mais caro. O MEI garante direitos previdenciários a um custo menor para contratantes com menos tributos ao contratado. A decisão acabou revogada: o lacre ficou.”

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

De como o óbvio é revolucionário




“De como o óbvio é revolucionário
     
Por Fernão Lara Mesquita

Domingo agora, J. R. Guzzo escreveu neste jornal que “a igualdade não é um direito, é o resultado do que o cidadão aprendeu”, que “é inútil querer que as pessoas tenham igualdade nos resultados quando não são iguais nos méritos” e que “não há como ser igual nos méritos se o sujeito que sabe menos não teve oportunidades iguais de aprender as coisas que foram aprendidas pelo sujeito que sabe mais”. Conclusão: “ainda não foi inventada no mundo uma maneira mais eficaz de concentrar renda, preservar a pobreza e promover a desigualdade do que negar ao povo jovem uma educação decente”.

Mas como arrancar a educação pública brasileira dos dois atoleiros aos quais está presa, a corrupção inerente ao ambiente estatal e o serviço a um projeto de poder? Ontem, falando de corrupção, Modesto Carvalhosa lembrou nesta página que “um fenômeno sistêmico é o que cria, ele próprio, sua continuidade, permanência, persistência e expansão”. Mas pode haver uma versão virtuosa disso. Eu tenho fascínio pela instituição da eleição direta do school board das escolas públicas em todos os países de colonização inglesa. É a peça mais básica da democracia moderna, que é a que foi reinventada por eles. É ali que se dá a intersecção mais concreta do público com o privado e que se define, no nível mais próximo do cidadão comum, a relação hierárquica que há entre ele e o seu representante eleito, de modo a criar a sua própria continuidade.

Sendo a base de tudo na democracia moderna a necessidade de ela ser “representativa” e o sistema distrital puro de eleição a única maneira sem tapeações de prover essa representação de modo aferível, preto no branco, o bairro, a menor célula do sistema, elege obrigatoriamente entre candidatos que moram nele (pais de alunos) o conselho gestor da escola pública local. Nos Estados Unidos esses boards têm, tipicamente, sete membros para que não haja empate em suas decisões, com duas “metades”, uma de três outra de quatro membros, eleita a cada dois anos, para mandatos desemparceirados de quatro anos. Como todo funcionário eleito, também estes estão sujeitos a recall a qualquer momento que seus eleitores se sentirem mal representados. Esse conselho tem por atribuição contratar e demitir o diretor da escola e aprovar ou não os seus orçamentos e planos de voo anuais.

A esta altura os leitores ainda sujeitos ao complexo de vira-latas já estão pensando como o brasileiro das favelas ou lá dos fundões poderá mandar na educação (de seus filhos) com bons resultados. A função do school board, assim como a da democracia como um todo, não é imprimir sofisticação aos currículos, é estabelecer o filtro contra a mais mortífera de todas as doenças que acompanham a humanidade ao longo dos tempos neste vale de lágrimas, que é a corrupção pelo poder, e tornar a escola pública “orientada para o cliente”. Hoje, com as exceções que confirmam a regra, ela está orientada para servir a seus servidores e manter para sempre nas mãos dos próprios privilegiados o controle sobre a distribuição de privilégios pelo Estado, que é ao que se resume, despido de sua fantasia século 20, todo o blablablá em torno da estatização ou não do que quer que seja.

Qualquer pai terá condições de saber quem são as pessoas mais capacitadas para fazer parte desse board na sua comunidade e, sendo o voto secreto, de defender-se de pressões indevidas. E qualquer ser humano em poder de suas faculdades saberá avaliar a razoabilidade ou não de um orçamento a partir da segunda vez que tiver de tratar do assunto. Além disso, como todos, esse sistema gera os seus próprios meios de tornar-se “sistêmico” e autorreproduzir-se: centros de apuração e difusão de melhores práticas, cursos de aperfeiçoamento de membros de school boards, etc.

Nenhum prejuízo colateral será maior que o de manter o controle das verbas e das decisões na área de educação nas mãos de quem terá o poder de transformá-las no próprio salário e o de deixar a avaliação de quem deve preparar um país inteiro para a competição global a indivíduos que não têm, eles próprios, de competir por seu lugar ao sol. Ontem mesmo, aliás, editorial na página ao lado desta constatava que há mais professores do ensino básico sendo formados no Brasil de hoje, onde eles já são 3,1% da força de trabalho e 20% das mulheres com ensino superior, que alunos a demandá-los. Por que seria, se os salários são tão baixos? Porque o magistério público atrai pessoas de famílias paupérrimas e, no quadro da miséria nacional, ser professor prestando um vestibular de Pedagogia é um modo mais fácil que o vestibular de Medicina, por exemplo, para disputar uma posição de segurança vitalícia num emprego estatal.

Não é, portanto, aumentando salários num ambiente regido pela regra da isonomia – aquela que afirma: “eu merecerei ganhar mais sempre que outra pessoa fizer por merecer ganhar mais” – que se vai resolver o problema da qualidade da educação básica no Brasil. E a solução passa obrigatoriamente pelo rompimento com a “mentira analítica”: a crítica do sistema tem de ser feita pelo consumidor, e não pelo fornecedor de educação pública, como geralmente acontece até mesmo nas bancas (quase exclusivamente compostas por professores de universidades públicas) que os jornalistas convocam para debater o problema.

Nada disso, porém, pode ocorrer isoladamente. Se quisermos viver numa democracia, o school board é só a peça mais básica. Um certo número de distritos eleitorais escolares (bairros) comporá um distrito eleitoral municipal, um conjunto destes fará um distrito estadual e outro múltiplo deles fará um distrito federal, que elege um deputado federal, todos eles diretamente atrelados a eleitores específicos e sujeitos a recall, ou seja, submetidos à mesma meritocracia sob a qual vivem os seus representados.

Não é só o sistema de educação pública. O Brasil inteiro não funciona porque a avaliação e a condição de permanência, seja no emprego, seja no poder públicos, é absolutamente independente da “satisfação do cliente”.”

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Atos institucionais




“Atos institucionais
     
Por Denis Lerrer Rosenfield

A polêmica suscitada pelo deputado Eduardo Bolsonaro a propósito do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), respaldada depois pelo próprio ministro da Fazenda, é da maior gravidade por expor um pendor autoritário. Atos institucionais, como os que caracterizaram a ditadura militar de 1964, são derivados de uma ruptura institucional, a partir da qual um novo regime é estabelecido. Não são atos constitucionais, mas resultam da violência instaurada por um “golpe”, por uma “revolução”, ou qualquer outro nome que se queira dar. A questão reside em que são instrumentos jurídicos provenientes do uso da força, que rompe a ordem constitucional vigente. Dá para brincar com declarações desse tipo?

Não dá para compreender o AI-5 sem remontarmos aos atos anteriores, em particular o AI-1. A perspectiva histórica é importante. O primeiro ato do regime militar foi resultado de uma tomada de poder por via da ruptura institucional e constitucional. A quebra da ordem jurídica situa-se fora da Constituição, que se torna subordinada ao ato de força e à sua nova legalidade, que passa então a vigorar.

Em 1964, primeiro foi produzida a ruptura, depois a nova legalidade, sob a forma do AI-1. Consumada a tomada do poder, o jurista Francisco Campos, homem culto e competente, com longa ficha de serviços prestados ao presidente Getúlio Vargas, tendo redigido a Constituição de 1937, foi chamado pelo ministro da Guerra, Costa e Silva, para dar forma jurídica ao novo regime. Após uma conversa entre ambos, Francisco Campos sugeriu que não era necessário seguir a Constituição de então, pela singela razão de que ela não estava mais sendo cumprida, de qualquer maneira; uma alternativa legal seria mais condizente com a conquista do poder.

Segundo ele, o Brasil estava sendo conduzido por um novo governo de tipo revolucionário, que, como tal, seria fonte originária de uma nova legalidade. O novo poder era a origem mesma de uma nova legislação, não se subordinando a qualquer outra força ou posição constitucional. Ele se justificaria por si mesmo, bastando tão somente conferir-lhe um novo ordenamento jurídico.

O jurista tirou seu paletó, ocupa uma escrivaninha e ao amanhecer do outro dia o Ato Institucional n.º 1 estava redigido, com a colaboração de outro jurista, Carlos Medeiros Silva. O governo revolucionário passou a guiar-se por esse ato institucional e pelos outros atos que se seguiram.

O AI-5 foi ordenado e promulgado pelo mesmo general Costa e Silva, que nesse meio tempo se havia tornado presidente. O seu caráter “revolucionário”, de fonte geradora de uma nova legalidade, foi marcante. O habeas corpus foi suspenso para crimes considerados políticos, o presidente podia suspender o Congresso, o que logo foi feito, passando a legislar ele mesmo por decretos-leis, a censura prévia foi instaurada em jornais, revistas e outros meios de comunicação, o presidente podia intervir em Estados e municípios, entre outras medidas.

Logo, quando autoridades propõem um ato institucional para conter uma eventual – e imaginária – sublevação popular à maneira das manifestações de rua no Chile, eles estão “brincando” com uma ruptura institucional. Note-se que eles não defendem a manutenção da ordem por via constitucional, dado que nossa Carta Magna contempla instrumentos desse tipo, como a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o estado de sítio e o estado de defesa nacional. O primeiro, aliás, amplamente utilizado pelos governos anteriores na manutenção da ordem pública para combater a criminalidade, sendo o exemplo do Estado do Rio de Janeiro o mais conhecido. Observe-se ainda que todos eles, sobretudo os dois últimos, exigem trâmites constitucionais que pressupõem sua aprovação pelo Legislativo.

Consequentemente, a pergunta que se coloca é quem assumiria o poder gerador de novas leis, o da nova legalidade. As Forças Armadas têm mantido rigorosa postura constitucional, defendendo a democracia em nosso país. Não há nenhuma sinalização anunciando uma nova atitude. O seu desempenho é estritamente profissional, elas têm sido exemplares na defesa das instituições republicanas. Se não são elas candidatas a artífices da nova “revolução”, só sobrariam os que defendem a tal de “revolução cultural”, o círculo mais próximo do presidente. Isto é, o País passaria a ser governado pela ala ideológica do governo, fazendo tábula rasa do Congresso, das oposições, da liberdade de imprensa, concentrando todo o poder no Executivo e em seu grupo dominante.

A reação a tais declarações foi de tal monta que um recuo imediatamente se fez necessário. Não por virtude, mas pela pequena adesão suscitada, confinada aos núcleos digitais do bolsonarismo. Sem apoio, evidentemente, nenhum “ato institucional” seria possível, nem na opinião pública, nem na ação dos militares. Na verdade, foi um tiro no pé, expondo o vigor das instituições democráticas em nosso país.

O problema, porém, persiste. O mesmo governo que alberga posições radicais e antidemocráticas desse tipo é o que apresenta um arrojado programa de reforma do Estado mediante várias propostas de emenda constitucional e projetos de lei, trazendo à tona uma agenda liberal. Questões centrais são trazidas à discussão, sem medo das patrulhas ideológicas da esquerda. Se tudo o que está sendo proposto for aprovado pelo Congresso, estaríamos diante de uma verdadeira “revolução”, ao reconfigurar as relações entre a intervenção estatal e a economia baseada em relações concorrenciais, e não de “compadrio”.

O risco, porém, consiste em que a “revolução cultural” pode terminar por contaminar as transformações liberais. Em muito ajudaria o País o presidente Bolsonaro tomar uma decisão, posicionando-se firmemente pelas transformações econômicas e pelo redesenho do Estado, imprescindíveis para todos os cidadãos. A permanência da tensão entre ambas só ajuda os que pretendem manter o status quo.”

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Dia Internacional de Combate à Corrupção




“Dia Internacional de Combate à Corrupção
     
Por Modesto Carvalhosa

Neste mês de dezembro inúmeras manifestações e eventos marcam o Dia Internacional de Combate à Corrupção. Sobre esse grave delito, que afeta, empobrece, mantém na miséria e mata milhões de pessoas em todo o planeta, muito se poderia relatar trazendo uma lista significativa de medidas e de campanhas que no Brasil, em 2019, têm procurado neutralizar e mesmo destruir as instituições e as pessoas dedicadas ao seu combate.

Por outro lado, seria possível ressaltar o entusiasmado apoio que o povo brasileiro tem dado aos agentes públicos encarregados da difícil tarefa de enfrentar esse crime contra a humanidade de cujas vítimas não conhecemos o rosto, mesmo porque pertencem a nada menos que dois terços da humanidade. Os efeitos devastadores da corrupção são evidentes em todo o mundo. Por isso é necessário pensar nas causas desse flagelo.

No âmbito dos diversos países verifica-se uma diferença grande na prática desse tipo de ilicitude. Nas nações civilizadas, com presença marcante da sociedade civil nos destinos do país e ordenamento jurídico fundado na ética e no interesse público, a corrupção é episódica e não sistêmica. Já nos países com fraca presença da sociedade civil, ou seja, com a onipresença do Estado, a corrupção é claramente sistêmica, ultrapassando as práticas criminosas das propinas para se instituir nas leis e na própria Constituição.

Afinal, o que é um fenômeno sistêmico? É o que cria, ele próprio, sua continuidade, permanência, persistência e expansão. Reproduz-se naturalmente. Essa corrupção sistêmica acaba por se tornar estrutural, fazendo parte dos fundamentos e das bases do Estado.

Nos países do terceiro mundo e nos emergentes temos três espécies de corrupção sistêmica: a corrupção constitucionalizada, a legalizada e a criminalizada.

E o que se entende por estrutural, nesse contexto?

São as bases institucionais que condicionam a vida social, mediante o modelo político expresso no sistema normativo-administrativo.

No Brasil a corrupção é claramente sistêmica e, por isso, estrutural a partir exatamente do modelo institucional, como se pode ver na Carta de 1988.

Sem uma profunda reforma política e administrativa será muito difícil mudar a fonte da corrupção. Pode-se combatê-la eficientemente, como se tem feito no Brasil nos últimos cinco anos. Dificilmente, no entanto, teríamos bases estruturais capazes de mudar a cultura dessa prática criminosa, que destrói vidas, oportunidades e esperanças. Para tanto cabe desde logo lembrar a necessidade de extinção do foro privilegiado por exercício de função, fonte de impunidade que produz todas as práticas corruptivas dos potentados da política.

Quanto ao Supremo Tribunal Federal (STF), deve ser estabelecido que os ministros serão automaticamente nomeados pela regra do decanato, com um mandato de oito anos. Ou seja, as vagas serão preenchidas pelos ministros mais antigos em exercício no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A mesma regra de decanato valerá para os demais tribunais superiores. Nada de nomeação política, como atualmente. Também o STF terá competência unicamente de declaração de constitucionalidade das leis, deixando de ser uma instância recursal que trata de todas as demandas, incluídas as de habeas corpus.

A outra medida é proibir a reeleição para qualquer cargo eletivo nas eleições seguintes. A reeleição é nefasta por várias razões, principalmente por propiciar as mais variadas formas de corrupção.

Deve ser vedada a qualquer representante eleito a nomeação para cargo de ministro de Estado ou para qualquer outra função no âmbito do Poder Executivo. A mesma proibição se aplica nas esferas dos Estados e municípios.

Outra mudança estrutural necessária: o voto distrital puro, permitindo o controle dos eleitores sobre seus eleitos, inclusive com o direito de recall a cada dois anos, por ocasião das eleições gerais e municipais. Também as candidaturas independentes se impõem, para se dissolver a partidocracia instituída pela Constituição de 1988.

A eliminação do Fundo Partidário e do fundo eleitoral são medidas de moralização pública, fazendo com que os partidos políticos assumam o seu papel institucional e recobrem a sua relação com a sociedade civil e os seus eleitores, que deverão ser a única fonte de seus recursos. Outra providência constitucional imprescindível: a extinção das emendas parlamentares, fonte sistêmica de corrupção.

Por outro lado, o seguro de obra, de 100% do seu valor (performance bonds), adotado nos Estados Unidos desde l896, constitui o antídoto para a corrupção em obras públicas, pois quebra a interlocução direta dos agentes públicos com os empreiteiros licitantes e contratados. A seguradora assume, ademais, o prosseguimento da obra em caso de inadimplência da construtora.

Ainda no aspecto da administração do Estado, é fundamental que se declare que o direito adquirido não pode prevalecer sobre o interesse público no que tange aos agentes públicos. O Banco Mundial, no seu célebre relatório de 2017, apontou esse direito como o maior responsável pelos enormes e absurdos privilégios dos agentes políticos e administrativos em nosso país.

Nesse mesmo assunto, a extinção da estabilidade ampla, geral e irrestrita dos 13 milhões de servidores públicos se impõe, para que se possa estabelecer um regime de isonomia de direitos entre os que trabalham no setor público e no privado.

E, finalmente, o regime de transparência das atividades governamentais, a tempo presente e com leitura prévia, deve ser aprofundado com o sistema de robotização, capaz de abranger todos os setores da administração pública a um só tempo.

A lista não se esgota aqui. Contudo essas medidas acima devem ser adotadas para que o Brasil saia da lista dos países sistemicamente corruptos.

Uma nova Constituição cada vez mais se faz necessária.”

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

O caso do cheque especial




“O caso do cheque especial
      
Por Affonso Celso Pastore

Desde quando no CDPP trabalhei com João Manoel Pinho de Melo e Vinicius Carrasco no livro Infraestrutura: Eficiência e Ética, aprendi a respeitar seu conhecimento teórico e empírico na solução de problemas econômicos. Após curta permanência no BNDES, onde ajudou na substituição da TJLP pela TLP, Vinicius retornou à academia. Já João Manoel, após produtiva passagem pelo Ministério da Fazenda, quando trabalhou nas reformas microeconômicas, foi recrutado por Campos Neto para a diretoria do Banco Central. Foi uma decisão sábia do presidente do BC. João Manoel é o autor do estudo sobre a nova regulação que o CMN impôs ao cheque especial, cujos resultados são expostos neste artigo.

Na economia, como na medicina, a prescrição da terapia é precedida do diagnóstico, de cuja qualidade depende o sucesso do tratamento. Por que os juros do cheque especial são tão elevados no Brasil? O diagnóstico se inicia caracterizando-o como produto híbrido. É ao mesmo tempo um “seguro” e uma forma de empréstimo. Pessoas com rendas mais elevadas costumam ter amplo limite no cheque especial que raramente – ou talvez nunca – é sacado. Funciona como um seguro a ser usado na emergência de uma queda inesperada no fluxo de caixa, e é natural que paguem ao banco pela prestação deste serviço.

Como no seguro de um automóvel, podem optar por cobertura total ou parcial, o primeiro com preço mais alto. Em um sistema no qual predomina a livre escolha, e não decisões impostas, a solução correta no caso do cheque especial consiste em estabelecer uma tarifa proporcional ao limite autorizado do saque, deixando ao beneficiário a escolha entre um limite maior ou menor.

Evidentemente, para atrair mais e melhores clientes os bancos são estimulados a dar limites elevados cobrando muito pouco. Do ponto de vista do banco, é a solução correta, mas do ponto de vista da sociedade como um todo é errada. Por quê? O acordo da Basileia obriga que os reguladores – os bancos centrais – imponham uma alocação de capital que cresce com o aumento do limite de crédito concedido ou à disposição do cliente, ainda que não utilizado. Alocando mais capital para este propósito, sobra menos capital para todas as outras formas de empréstimos, que são penalizadas. Ou seja, este é um instrumento excelente para a atração de clientes, mas péssimo para a sociedade, que assiste ao encolhimento do crédito total.

Mas há, também, pessoas que sacam frequentemente até o seu limite, e que seguidamente renovam o “empréstimo”. São em geral pessoas de baixa renda, com dificuldade de planejar o fluxo de caixa, e que não se dão conta do custo incorrido. Sacam porque precisam, qualquer que seja o preço. Ao ler esta caracterização, um economista diria de imediato que a “elasticidade-preço” da demanda deste tipo de clientes é muito baixa, tendendo a zero.

Mas em vez de simplesmente assumir que este é o caso, um bom economista fará um teste para verificar se ele é correto. Procederá como o médico que, antes de concluir o diagnóstico, pedirá um exame de laboratório. Foi isto que João Manoel fez. Quem ler seu estudo, verificará que ali está o resultado do exame, o teste econométrico que comprova, empiricamente, que para este grupo de pessoas a elasticidade-preço da demanda é muito baixa.

Diante disto, os bancos têm um “poder de mercado”, que não chega ao extremo de levar ao monopólio, mas que, junto com a atração dos mais ricos proporcionada por um seguro quase de graça, caracteriza uma falha de mercado. O dirigente do banco tem obrigação de atrair bons clientes cobrando barato pelo seguro, e busca maximizar o lucro, o que diante do poder de mercado eleva a taxa de juros dos correntistas que não reduzem os saques nem mesmo com taxas de juros de 350% ao ano. O banco aumenta seu lucro ao explorar seu poder de mercado, e ocupa o limite da Basileia atraindo clientes mais ricos à custa da queda de outros empréstimos, penalizando a sociedade. Um dos resultados apontados por João Manoel é que, embora o cheque especial represente apenas 1,4% do total de empréstimos, representa 13,2% dos lucros dos bancos.

Mesmo no mundo do liberalismo, os reguladores têm obrigação de agir para corrigir falhas de mercado, e, na qualidade de regulador, o Banco Central agiu corretamente, inclusive quando o usuário do empréstimo tiver abatida a tarifa. Apesar das críticas ruidosas, parabéns ao Banco Central!”

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A ousadia da moderação




“A ousadia da moderação
     
Por Pedro S. Malan

“Presidents are not kings”, escreveu juiz federal norte-americano ao decidir (contra a vontade expressa de Donald Trump) que um ex-funcionário da Casa Branca deveria atender à convocação para depor como testemunha em investigação em andamento no Congresso. A Casa Branca vai recorrer, mas a decisão mostrou, mais uma vez, que as preocupações dos founding fathers com a importância de checks and balances, pesos e contrapesos, freios e filtros em decisões de chefes do Poder Executivo continuam vivas e operantes, passados 230 anos.

Presidentes podem muito, mas não podem tudo. Há limites à sua vontade, impostos não apenas pelos outros Poderes, mas também pela reação da opinião pública quanto a planos e intenções que afrontem em demasia valores e expectativas de parte expressiva da sociedade. Afinal, presidentes, e outras lideranças políticas, emitem poderosos sinais sobre o que são padrões de conduta e decência considerados aceitáveis na vida pública.

Vale sempre lembrar o artigo hoje clássico de Madison (em The Federalist n.º 51, de fevereiro de 1788). “Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se os anjos fossem governar os homens, nem controles externos nem controles internos sobre o governo seriam necessários. Na construção de um governo a ser administrado por homens e exercido sobre homens, a grande dificuldade reside no seguinte: é preciso primeiro capacitar o governo a controlar os governados e, em seguida, obrigá-lo a controlar a si próprio”.

A História registra numerosos exemplos de governos e governantes com “grande dificuldade” para controlar seus próprios instintos, paixões e interesses. Registra também tentativas de estabelecer relações diretas com a parte da população mais cúmplice de suas ilusões, incluída a ilusão da falta de limites ao exercício de seu poder. A tentação de ocupar a máquina pública com militantes fiéis e, principalmente, de utilizar as ferramentas do poder para combater os “inimigos” e intimidar vozes discordantes é mais comum do que parece.

É preciso resistir, em particular, a certa visão que neste momento aparentemente encontra ampla acolhida entre extremos do espectro político brasileiro, baseada na clássica formulação do alemão Carl Schmitt, para quem “a distinção política específica à qual ações e motivos políticos podem ser reduzidos é a distinção entre amigo e inimigo”. Para Schmitt, uma coletividade constitui um corpo político apenas na medida em que haja definido com clareza seus “inimigos”. E como mostrou Mark Lilla, para Schmitt tudo é potencialmente político: costumes morais, religião, economia, arte, cultura podem se tornar questões políticas, encontros com o inimigo, e transformar-se em fonte de deliberado, aberto e sempre renovado conflito.

Qualquer semelhança com situações que não nos são estranhas não é mera coincidência. Teremos menos de três anos à frente para tentar aprofundar esta discussão e encontrar as saídas que devem prevalecer em democracias (sem adjetivos). Saídas que deverão sempre passar pelo diálogo franco, pela resolução de diferenças e conflitos via soluções de compromisso, sem a famosa escolha binária entre o “nós e eles” que tanto mal causou e vem causando ao País.

Os mundos (e os tempos) da política não podem, nunca, ser dissociados dos da economia. Por essa razão este meu último artigo do ano não poderia deixar de mencionar a importância crucial da continuidade do esforço centrado na agenda de reformas, em particular as do setor público. Sem elas não conseguiremos equacionar nossa insustentável situação fiscal (governo federal e especialmente Estados e municípios), tampouco recuperar de forma sustentada o crescimento econômico, cuja média anual foi, no período 2011-2018, de pífios 0,7%, ante 3,25% em 1995-2010.

Já escrevi muito neste espaço sobre as raízes da pressão estrutural por maiores gastos públicos no Brasil, com ênfase nas nossas mudanças demográficas e na rapidez extraordinária de nosso processo de urbanização, sem paralelo no mundo. Esse processo gerou e gera demandas que continuam a exigir respostas de sucessivos governos, em termos de gastos de custeio e investimento nas áreas de infraestrutura física, infraestrutura social e redução de pobreza e desigualdades de oportunidades. As tentativas de resposta a elas levaram a taxas de crescimento real do gasto público muito superiores às taxas de crescimento da economia, com as implicações conhecidas sobre inflação (até o Real), além de endividamento do setor público.

A excelente e ousada entrevista com o atual governador do Rio Grande do Sul (Valor Econômico, 3/12) é imperdível para os brasileiros de boa-fé que estejam dispostos a entender quão dramática é a situação fiscal de muitas unidades da Federação. E queiram entender o que deve ser feito como inexorável ajuste, como condição para a retomada da capacidade de investimentos, da qual depende o crescimento.

Concluo com uma observação de 1994 do economista Edmar Bacha que retém surpreendente atualidade e relevância: “A resolução, sem uso da inflação, do conflito fiscal brasileiro (por fatias do orçamento público) envolve decisões políticas fundamentais sobre a composição do gasto público. O governo federal tem que transferir para outras esferas governamentais ou para o setor privado parte de suas exageradas atribuições atuais para que possa especializar-se com vantagem nas atribuições que de fato lhe cabem num modelo de desenvolvimento com inflação sob controle”.

Estamos há pelo menos 25 anos a tentar lidar com os problemas interligados do nível , da composição e da eficiência tanto do gasto público quanto da arrecadação tributária. É preciso perseverar, se quisermos realmente crescer a taxas mais altas, sem inflação e sem depender de choques externos favoráveis como os que nos ajudaram em passado recente.”