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segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Ministros normais





“Ministros normais
      
Por William Waack

Jair Bolsonaro foi eleito para enfrentar dois superproblemas do Brasil: dívida e crime. Para fazer a economia crescer (o melhor jeito de enfrentar a dívida trazida pela tragédia fiscal) e para inverter as trágicas taxas de criminalidade (com lei, ordem e combate à corrupção), o capitão escolheu dois superministros, Paulo Guedes na Economia e Sérgio Moro na Justiça.

Atualmente, os desafios continuam na categoria “super”, mas os dois ministros, nem tanto. De fato, eles lidam com problemas de enorme e profundo alcance, que não se resolvem da noite para o dia nem há uma só medida isolada capaz de dar conta do recado. Além disso, os ex-super enfrentam um sistema de governo que funciona muito mal, e que a crise fiscal (acabou a grana) contribuiu para tornar ainda mais paralítico.

Mas seria injusto com os fatos da realidade atribuir a perda de status dos superministros ao Legislativo (e à tal “classe política”). Uma parte importante dos problemas políticos que os dois – agora normais – ministros enfrentam está no fato de o chefe do Executivo utilizar de forma precária e errática uma de suas maiores ferramentas de poder: a de determinar a agenda da própria política.

Dois exemplos recentes ilustram esse fato. Na seara de Guedes trata-se da reforma tributária, uma espécie de grito que se ouve ecoar em todos os níveis da Federação, em todos os segmentos da atividade econômica. A Câmara dos Deputados examina há pelo menos quatro anos uma proposta de simplificação. O Senado também. Surgiu mais um projeto de reforma, que seria do Executivo. Mas qual é ele, exatamente?

A volta de um imposto sobre transações financeiras? Um projeto acoplado à negociação política para abrandar a terrível crise fiscal de mais de uma dezena de Estados da Federação? Quem vai convencer o setor de serviços a pagar mais impostos? Como acertar com governadores, prefeitos e representantes de vários segmentos da economia compensações por diminuição de arrecadação ou fim de subsídios, desonerações e incentivos? E o que quer o presidente da República, afinal?

O segundo exemplo é o pacote anticrime de Sérgio Moro. A discussão política sobre o pacote acabou presa à reação de boa parte do Legislativo, ao próprio Moro, ao movimento apelidado de lavajatismo e à ação da PF contra o líder do governo no Senado, reação que se expressou na aprovação de uma lei contra o abuso de autoridade e posterior derrubada, pelo Senado, de vetos presidenciais à lei – vetos, em parte, negociados com o próprio ministro da Justiça. Fora o clima de comoção nacional em consequência da morte da menina Ágatha no Rio, um contexto no qual acabou prevalecendo no Legislativo (e em boa parte do público) a percepção de que a aprovação do pacote anticrime levaria a mais tragédias daquele tipo.

Também em relação a este segundo exemplo a conduta do Executivo levanta indagações. Afinal, Moro e os agentes anticorrupção têm carta-branca ou a conduta de Bolsonaro sugere, ao contrário, a imposição de limites aos órgãos investigadores, em parceria informal com o que parece ser uma nova maioria hoje “garantista” e “antilavajatista” no STF, algo que traria ao presidente conforto pessoal ainda que nem tanto conforto político?

Quando se trata de examinar como o Legislativo se conduziu frente aos dois grandes superproblemas – crime e dívida –, impõe-se sozinha a constatação de que uma base sólida e bem coordenada do governo teria facilitado a tarefa dos ex-superministros, dos quais se sabia de antemão que lhes faltava a experiência da costura e da articulação nos termos em que se dá a política em Brasília. Essa falta de experiência política estava em todos os cálculos. O que não se calculava é que o Executivo fosse ser supererrático.”

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

A lei é a arma com que assalta a Nação





"A lei é a arma com que se assalta a Nação

Por Fernão Lara Mesquita

A deformação do federalismo brasileiro, demonstrou dias atrás nesta página o ex-ministro Jose Serra, não está, como geralmente se pensa, na distribuição do dinheiro da arrecadação. “Em média, a participação de estados e municípios é de 30,9% nos países federados situados em nossa faixa de renda e de 49,5% entre os mais ricos (…)  no Brasil eles se apropriam de 56,4% mas vivem uma crônica hipossuficiência financeira e administrativa”. “Essa descentralização é consequência direta do pacto federativo decorrente da Constituição de 88 que definiu a autonomia como regra”, diz o ex-ministro, que sugere que é nessa autonomia, somada à incompetência dos gestores estaduais e municipais que está o problema, o que remete à “solução” de sempre que seria aumentar a centralização.

Falso! O problema essencial do Brasil é que a autonomia que a Constituição definiu como regra é a dos representantes, que deveriam ser fiscalizados, em relação aos representados, que deveriam ter plenos poderes para fiscaliza-los tanto mais de perto quanto mais se vai descendo na hierarquia dos entes de governo (união, estados, municípios, distritos eleitorais) sob pena de perda imediata do mandato dos faltosos. Então sim haveria ganhos, e enormes, em pulverizar a distribuição do dinheiro dos impostos.

Mas blindados os funcionários e representantes eleitos contra qualquer interferência dos seus representados, pulverizar a distribuição do dinheiro entre quase seis mil prefeituras, governos estaduais e respectivos legislativos é apenas e tão somente multiplicar exponencialmente o número de ralos por onde se irá esvair sem nenhum controle o dinheiro público.

Todas as desgraças brasileiras têm como causa fundamental esse desenraizamento do País Oficial da única fonte de legitimação do poder numa democracia. Invocar a constituição para encerrar controvérsias em países onde ela é o contrato para impor limites a quem detém o poder pactuado entre iguais e referendado por todos quantos concordaram em ceder parte de sua autonomia individual para fundar o Estado resultante desse contrato, faz todo sentido.

Mas invocar uma constituição que é produto exclusivo das deliberações de uma casta para reafirmar seus poderes e privilégios e recriar a sociedade feudal, aquela cuja legitimidade dependia exclusivamente do peso do passado, pelo expediente de reduzir esse “passado” a um par de segundos mediante a decretação da intocabilidade do “direito adquirido” apenas por ter sido “adquirido” e a partir do minuto seguinte a que tiver sido “adquirido” é tão somente um ato de força extremo para calar a denúncia dessa falsificação e impor pela força a opressão aos oprimidos.

Fala-se muito hoje na “polarização do debate político” mas a verdade é que não há debate sobre as questões essenciais no Brasil. Um entendimento mínimo sobre uma agenda comum só pode surgir em torno da definição da regra do jogo, nunca em torno do resultado desejado para o jogo. As constituições dignas do nome são as que limitam-se a definir como operar mudanças e não de onde para onde mudar nem, muito menos ainda, quem vai ganhar e quem vai perder sempre o jogo a cada nova mudança que houver que é estritamente o que faz a nossa “Constituição dos Miseráveis”.

O analista que parte da premissa de que o Brasil é uma democracia condena fatalmente ao erro todas as conclusões subsequentes. Não é! Nunca foi! E a Constituição de 88 é precisamente o documento que consagra esse não ser acima de todos os outros, ao sacramentar a deformação da representação do País Real no País Oficial feita para dar sobrevida à ditadura militar, institucionalizar a desigualdade perante a lei e “petrificar” o privilégio.

O “Brasil vocal”, que inclui da política à imprensa, divide-se hoje, com as raríssimas exceções que confirmam a regra, entre a bandidocracia que assume a autoria de toda e qualquer ignomínia e os caronas da bandidocracia que, por sua vez, dividem-se entre os com vergonha e os sem vergonha do papel a que se têm prestado; entre os que apenas murmuram diante das ignomínias contra as quais suas consciências lhes pedem que gritem, e os que nem a isso chegam.

Contam-se nos dedos os que vão à raiz do problema. A verdade nua e crua é que dispensada da obrigatoriedade de legitimação pelo povo a cada nova alteração significativa, como é imperativo que aconteça nas democracias, a lei no Brasil está reduzida à condição de arma com que a privilegiatura assalta a Nação. O paroxismo da subversão. A tentativa do momento, aliás, é de criar mais uma para determinar, entre outras aberrações, que se alguma das “excelências” for flagrada roubando-nos também por fora da lei, os roubados é que passarão a pagar pela defesa do ladrão.

Com que amplitude a Nação vem sendo assaltada com o recurso a leis sem nenhum resquício de legitimidade é algo de que nos presta contas eloquentes o orçamento federal: do 1 trilhão e 480 bilhões de reais que a União nos arranca todo ano em impostos sobram apenas 19 bi para investir no Brasil. Todo o resto vai para pagar os salários, as aposentadorias e as mordomias da opulenta corte do funcionalismo federal que conta pouco mais de dois milhões de indivíduos e os caronas da privilegiatura que ela coopta para não ser incomodada.

É impossível que o Brasil funcione orientado para a justiça enquanto o problema da ilegitimidade das nossas leis não for encarado de frente. A solução passa obrigatoriamente pela arrumação da questão da representação. É preciso criar, primeiro, um modelo de eleição que permita saber exatamente “quem representa quem” (voto distrital puro) e, em seguida, determinar com que instrumentos devem contar os representados para fazer respeitar sua vontade pelos seus representantes (recall, referendo, inciativa, controle das carreiras jurídicas). Só então teremos entrado no território da democracia no interior do qual aloja-se o território da justiça. Não dá para chegar ao segundo sem passar pelo primeiro.”

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Os meandros da Justiça





“Os meandros da Justiça

POR MERVAL PEREIRA

É costumeiro dizer que o tempo jurídico é diferente do da política. Desta vez, eles estão se aproximando. O ex-presidente Lula, pela conta mais conservadora, cumpriu ontem um sexto de sua pena de 8 anos, 10 meses e 20 dias definida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no caso do triplex de Guarujá. Poderia ir para o regime semi aberto.

Ao mesmo tempo, o Supremo Tribunal Federal (STF) marcou para amanhã o julgamento de um caso semelhante ao do ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras, Aldemir Bendine, que teve a condenação anulada devido ao entendimento da Segunda Turma de que réus delatores devem falar antes dos demais réus, pois seriam auxiliares da acusação. E a defesa deve falar sempre por último.

 Se o entendimento da maioria acompanhar o da Segunda Turma, não apenas os julgamentos de Lula, mas de vários outros condenados, podem ser anulados, recomeçando do zero.

Em outro processo contra Lula, o do Sítio de Atibaia, está tudo pronto para o julgamento do recurso da defesa no Tribunal Regional Federal-4 (TRF-4). O ex-presidente foi condenado em primeira instância a 12 anos e 11 meses de prisão pela juíza Gabriela Hardt, que substituiu interinamente Sérgio Moro quando este deixou a magistratura para tornar-se ministro da Justiça.

O desembargador João Pedro Gebran entregou seu voto no dia 11, depois de 90 dias de análise, e o revisor Leandro Paulsen também já terminou seu trabalho, restando agora o presidente do TRF-4, Victor Luiz dos Santos Laus marcar a data do julgamento. Isso quer dizer que Lula poder ser condenado novamente antes mesmo que os trâmites burocráticos para a progressão da pena sejam cumpridos. Ou que fique pouco tempo no regime semi-aberto, tendo que voltar para a prisão fechada.

Nesse caso, as sentenças são somadas e o cumprimento de um sexto da nova pena vai demorar mais. A não ser que, nesse intervalo, uma nova decisão do STF proíba a prisão em segunda instância. O que pode demorar também é a insistência de Lula em não querer pedir a progressão da pena, aguardando ser inocentado ou ter a condenação anulada.

Há ainda outro recurso que já pode ser marcado no STJ, onde a defesa de Lula pede, desde maio, que ele, em vez de ir para o regime semi-aberto, pois não há vagas em locais apropriados, vá direto para o aberto.

Com a nomeação do substituto interino do ministro Felix Fischer, relator das ações da Lava-Jato, o caso já pode ser decidido.

A decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de anular o julgamento que condenou Aldemir Bendine por ter recebido R$ 3 milhões da Odebrecht para facilitar contratos da empreiteira com a Petrobras, que presidia na ocasião, é uma interpretação alargada do direito dos réus, mesma prática de que o juiz Sérgio Moro e os procuradores de Curitiba são acusados.

Como lembrou ontem no twitter o juiz Marcelo Bretas, “no processo criminal brasileiro sempre houve delatores e delatados, réus confessos que depõem contra corréus”. Ambos sempre foram tratados igualmente como réus. A nova interpretação da Segunda Turma, tratando os delatores como auxiliares da acusação, tem espaço devido à figura da “delação premiada”, que não existia no processo penal brasileiro.

Tanto que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) referendaram a decisão de Moro, apesar dos apelos da defesa. Justamente por ser uma decisão sem precedentes, caso semelhante está sendo levado ao plenário do Supremo Tribunal Federal (STF).

O caso de Bendine, se estiverem esgotados os recursos do Ministério Público e o acórdão publicado, poderá se tornar único se a maioria do plenário do STF decidir em contrário. Ou pode dar inicio a uma jurisprudência.”

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Fábula da aposentadoria





“Fábula da aposentadoria

Por Pedro Fernando Nery

Maria, a diarista, corre para preparar as roupas que dona Glenda vai levar para a viagem, antes que chegue do salão de beleza. Glenda, ex-advogada, já parou de trabalhar: usufruiu das regras atuais e se aposentou aos 53 anos de idade. Ela pôde se aposentar bem antes de Rosa, a manicure, que só vai conseguir se aposentar aos 63 anos, já que não conseguiu muito tempo de emprego com carteira assinada. Maria, a diarista, vai se aposentar aos 68 anos.

Maria apressa-se, porque também tem de limpar a bagunça feita por Jorge, o pintor, contratado pelo seu Henrique, ex-engenheiro, para pintar o novo quarto. Henrique se aposentou aos 56 anos de idade, Jorge só o fará aos 68 anos.

A imensa desigualdade do Brasil se apresenta também no acesso à aposentadoria, que é facilitado justamente para os trabalhadores que vivem mais. Como ocorre somente em outros 12 países, no Brasil ainda existe a aposentadoria por tempo de contribuição. Ela não possui idade mínima, mas é destinada a quem teve muito tempo de emprego formal (30 anos se mulher, 35 anos se homem). Em média, a aposentadoria é concedida aos 53 anos para as mulheres, como dona Glenda, ex-advogada, e aos 56 anos para homens, como seu Henrique, ex-engenheiro.

Trabalhadores mais mal inseridos no mercado de trabalho têm de se aposentar depois. Vítimas das altas e crônicas taxas de desemprego e informalidade, só podem se aposentar a partir dos 60 anos (mulheres) ou 65 anos (homens) se não cumprirem os requisitos da aposentadoria por tempo de contribuição. Nesse caso, podem receber a aposentadoria por idade, com menos tempo de carteira: 15 anos. Em média, é concedida aos 67 anos para homens e 63 anos para mulheres, como no caso de Rosa, a manicure.

O requisito de 15 anos, porém, pode ser muito para ocupações de menor produtividade, em que labutam trabalhadores menos escolarizados, principalmente no caso de mulheres. Como ficam muito tempo inclusive fora da força de trabalho, muitas só podem recorrer a uma modalidade de aposentadoria formalmente assistencial, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), com idade mínima de 65 anos para ambos os sexos. Em média, é concedida aos 68 anos para mulheres, como Maria, a diarista, ou Jorge, o pintor.

A desigualdade do nosso sistema que privilegia os com melhor emprego se observa não só nos dados da idade média de concessão, mas também na duração dos benefícios. Na estimativa do economista Rodrigo Coelho, a expectativa de vida aos 65 anos é de 86 anos para as mulheres que se aposentam por tempo de contribuição, mas de 82 anos para as beneficiárias do BPC. Para homens, é de 83 anos na aposentadoria por tempo de contribuição e de 79 anos no BPC.

Apesar de viver menos, Maria, a doméstica, se aposentará 15 anos depois da patroa Glenda. Apesar de viver menos, Jorge, o pintor, se aposentará 12 anos depois do patrão Henrique.

Essa desigualdade é endereçada na reforma da Previdência, que cria a idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição, sem elevar o tempo mínimo de contribuição dos atuais trabalhadores ou a idade do BPC.

Também não afeta a idade mínima da Previdência rural, de que não tratamos neste texto, enquanto endurece os requisitos e o cálculo da aposentadoria dos servidores públicos – maior fonte de desigualdade do sistema pelos valores envolvidos.

Pelo seu foco nos maiores benefícios da Previdência urbana, como a aposentadoria por tempo de contribuição, e não na Previdência rural ou no BPC, a reforma tem seu impacto fiscal concentrado no Sudeste e no Sul do Brasil.

Do impacto de R$ 620 bilhões em dez anos nos benefícios operados pelo INSS, cerca de R$ 200 bilhões, um terço, está em São Paulo. Equivale ao dobro do impacto dos Estados de Norte e Nordeste somados, em minha estimativa. Os demais Estados do Sul e do Sudeste, Rio de Janeiro a frente, concentrariam quase 50%.

A ênfase da reforma da Previdência na aposentadoria por tempo de contribuição tem caráter progressivo também do ponto de vista da distribuição regional da renda.”

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Prioridades





“Prioridades

Por Ana Carla Abrão

No setor público, ao contrário do setor privado, não priorizar uma atividade não significa necessariamente deixar de provê-la. Por outro lado, também no setor público transformar exige estabelecer prioridades. Esse é um dos pontos do livro How to Run a Government (Como Administrar um Governo), de Michael Barber, ex-chefe da Unidade de Resultados do governo inglês entre 2001 e 2005, que também escreveu Instructions to Deliver: Fighting to Transform Britain’s Public Services (Instruções para Entregar: Lutando para Transformar os Serviços Públicos Britânicos). Mas definir prioridades exige, além de disciplina, definir o que não é prioridade.

Esse é um conceito árido num Brasil que, ao longo de décadas, viveu sem planejamento, sem atender a restrições fiscais, sem avaliar o impacto de políticas públicas e num crescente loteamento de cargos e, consequentemente, de orçamentos cuja motivação estava longe de ser o atendimento das nossas tantas carências. Mas há que se reconhecer, o atual colapso fiscal brasileiro tem tido um efeito educativo.

Passamos décadas sem nos preocuparmos com o descontrole fiscal, com os custos da má gestão pública ou da apropriação do Estado por grupos de interesse. Ignoramos que escolhas geram trade-offs, ou seja, que em qualquer decisão, há sempre algo que fica preterido. Fizemos de conta que não havia custos de oportunidade, como se fazer algo não implicasse necessariamente no custo de deixar outra coisa de lado. Preocupações em avaliar os efeitos das políticas públicas passaram ao largo. Dobrava-se a meta, e a consequente alocação de recursos, sem sabermos a que resultados estávamos chegando.

Mas os capítulos educativos surgiram na medida em que a crise se estabeleceu e ficou. O primeiro deles, e de grande relevância, foi a discussão da reforma da Previdência. Pena que ainda devemos sucumbir mais um pouco às pressões corporativistas que conseguem sempre justificar seus privilégios perante um Congresso claramente menos sensível às mazelas da população do que à grita das associações de servidores públicos. Mais uma perda, no apagar das luzes da aprovação final. Mas até isso hoje fica mais claro do que no passado. Sabemos quem ganha e quem perde. Outros exemplos são a discussão do Orçamento de 2020 e os ataques ao teto de gastos. Até artigo com erros ganhou espaço na mídia – e outro espaço para deixar claro o erro.

Mas o capítulo mais recente foi a liberação de R$ 12,5 bilhões do Orçamento previamente contingenciado. Há mais a se depreender dali do que parece à primeira vista. As linhas vinculadas aos gastos com Educação levaram a maior parcela dos recursos liberados. Os quase R$ 2 bilhões representam pouco perto do orçamento da pasta que tem quase 60% do seu orçamento de mais de R$ 100 bilhões comprometidos com despesas de pessoal de uma máquina que dobrou o número de servidores nos últimos anos. Antes que as suscetibilidades avancem sobre a razão, sim, a contratação de professores universitários responde por parte desse número, mas não estamos falando só disso. Há questões menos nobres que explicam esse gigantismo, e elas não atendem pelo nome de educação.

Mas a prioridade ao menos foi clara e justa. Dada a longa lista de pedidos, nada como priorizar a educação, um pouco no nível superior, mas mais importante ainda, a educação infantil, que recebeu verbas adicionais originadas nas recuperações da Operação Lava Jato. Nem um centavo desse recurso vai ajudar a elevar a qualidade do ensino no Brasil, estamos apenas tapando um buraco. Mas entre tapar o buraco da educação ou continuar financiando um programa cheio de problemas como o Minha Casa Minha Vida, melhor comemorar a escolha.

O segundo lugar da lista ficou com o Ministério da Economia, que recebeu R$ 1,7 bilhão para apagar incêndios mais prosaicas como cobrir calotes das dívidas “amigas” do BNDES e honrar compromissos do dia a dia. A Defesa vem em terceiro lugar, seguida de Saúde e Infraestrutura. Faz falta ver ali o Banco Central. De excelência reconhecida mundialmente, hoje o órgão sofre com cortes no orçamento ao mesmo tempo que abraça uma agenda importantíssima de modernização do Sistema Financeiro Nacional. Se houvesse um cálculo do retorno social de cada real de investimento público para estabelecer prioridades, o BC certamente estaria contemplado.

Enfim, estamos da mão para a boca. É a penúria de quem acumula déficits fiscais há tantos anos e que agora tem de fazer escolhas e estabelecer prioridades. Menos mal.”

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Nação e Exército





“Nação e Exército

POR MERVAL PEREIRA

A relação entre os militares e o presidente Jair Bolsonaro foi mais uma vez colocada em xeque por interferência do guru Olavo de Carvalho, que foi ao You Tube para criticar a edição do livro do sociólogo Gilberto Freyre “Nação e Exército” pela Biblioteca do Exército.

O lançamento será amanhã na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), para comemorar os 70 anos da edição do livro. Olavo de Carvalho estranhou, questionando se a decisão seria uma indicação de que militares estariam se unindo a comunistas para afrontar o presidente da República.

A análise nesse sentido foi publicada no blog bolsonarista “Sociedade Militar”, interpretando que a publicação do livro marca “o fortalecimento de uma ala mais progressista da força terrestre” e um “gradual afastamento do presidente da República e do governo como um todo”.

O que provocou a ira de Olavo de Carvalho, que normalmente é elogiado pelo blog bolsonarista. Olavo, no seu blog, disse não acreditar que essa análise representasse a visão do Exército. A informação de que Gilberto Freyre, em 1949, fazia parte da Aliança Nacional Libertadora, formada por comunistas, antifascistas e militares descontentes, e que, portanto, o livro representaria uma visão ideológica diferente da do Exército é rechaçada pelos militares responsáveis pela edição. Que, aliás, começou a ser pensada cerca de três anos atrás, sendo impossível atribuir a ideia a uma mensagem cifrada contra o governo Bolsonaro.

O neto de Gilberto Freyre, que é secretário de Cultura do governo de Pernambuco, aprovou a ideia e fará um lançamento também em Recife. No livro, Gilberto Freyre defende a tese de que o Exército não deve ser convocado pela sociedade para atuar em todos os momentos de crise. 

Debate que continua atual devido ao acionamento do Exército para a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em vários pontos do país, além de atuações na área de infraestrutura. A mensagem de Freyre é de união entre civis e militares para enfrentar os desafios futuros, como está ressaltado no livro.

Os militares, na verdade, não querem ser confundidos como parte do governo Bolsonaro, como não quiseram em qualquer outro governo, pois fazem questão de serem reconhecidos como parte de instituições do Estado brasileiro.

A participação de militares no governo Bolsonaro não significa a presença das instituições militares no governo, fazem questão de afirmar. O Comandante do Exército, General Pujol, sempre acentua que o Exército é uma instituição do Estado brasileiro, e não de governos, que são eventuais e ligados a partidos políticos.

Por isso, há uma preocupação, por exemplo, com a adoção de “escolas militarizadas”, que fazem parte do programa do ministério da Educação e foram prometidas na campanha por Bolsonaro como política de governo, embora alguns Estados já estivessem colocando em prática a ideia.

Essa proposta não conta com o apoio do Exército, cujos líderes consideram que o que se busca com essa adjetivação das escolas é segurança e disciplina, que não são objetivos dos Colégios Militares, mas consequência de um programa mais amplo de preparação dos alunos para a vida na sociedade.

Tanto que eles não são restritos aos militares, havendo oficiais superiores que não cursaram um Colégio MIlitar, e civis que cursaram e não seguiram a carreira. Os colégios militares não fazem parte da formação da carreira, que tem três pilares: a Academia Militar de Agulhas Negras; a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao) e a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME).

Os colégios militares são considerados educação assistencial, e são procurados por seus alunos, não impostos pelo governo. Não representam, portanto, uma filosofia educacional militar que possa ser transferida para o sistema nacional de educação.

Os militares como instituição consideram que muitas vezes são usados como válvula de escape de políticos, especialmente na segurança, e agora na educação, que os convocam quando a situação é grave, mas só assumem a responsabilidade quando as intervenções dão certo. Recaem sobre os militares as falhas, e seria da mesma maneira no caso de o programa educacional baseado nos colégios militares dar errado.”

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Uma causa muito nobre e seus infectos parasitas





“Uma causa muito nobre e seus infectos parasitas
     
Por José Nêumanne

Quando Samuel Johnson, tido e havido como o intelectual por excelência na História do Reino Unido, cunhou sua mais famosa entre célebres sentenças definitivas, “o patriotismo é o último refúgio de um canalha”, referiu-se especificamente ao próprio partido político, o Patriotas. O sábio sentia-se incomodado com a invasão da sigla por oportunistas, que se aproveitavam para defender não a causa patriótica a que se referia a denominação, mas diversas maneiras de se aproveitarem do nacionalismo para negócios e interesses próprios. Os movimentos anticolonialistas e o espírito bélico das duas guerras mundiais no século 20 transformaram sua frase em libelo contra o nacionalismo, usado com êxito por nazistas e fascistas.

Essa discussão despertada pelo post de Carlos Bolsonaro é o momento de, sem abrir mão das conquistas civilizatórias da democracia (governo do povo), parodiar a sentença do século 18 na “pérfida Albion” no debate político aqui e agora. A primeira reação provocada pela crítica exposta em redes públicas é sobre poder, relevância e respeito que se deve, ou não, ao autor. Ao lê-la, este escriba lembrou-se de uma anedota clássica do século 20. Diz-se que Pierre Laval, primeiro-ministro da França, ansioso para evitar que os alemães invadissem seu país, sugeriu a Josef Stalin que ganhasse apoio dos católicos aproximando-se do papa Pio 12 para fazer frente a Adolf Hitler. Stalin teria respondido: “O papa?! E quantas divisões (militares) tem o papa?”. Ao ouvir a história, Eugenio Pacelli teria respondido: “Diga a meu filho Josef que ele encontrará minhas divisões no céu”. O filho “02” do presidente da República é um general sem bastão de um exército desarmado de seguidores em redes sociais. Um Aedes aegipti tem poder mais demolidor sobre o regime do que ele.

É mais nociva para nossas instituições democráticas sua falta de representatividade do que arroubos da prole do capitão, esta ou a ameaça de fechar o Supremo Tribunal Federal (STF) com cabo, soldado e jipe.

A sensação de que a democracia no Brasil é o último refúgio dos corruptos não resulta da impaciência de um vereador nota zero na Câmara do Rio, nem das grosserias do pai dele contra a alta comissária dos Direitos Humanos nas Nações Unidas e Brigitte Macron. Mas da insidiosa mistura que os pseudoarautos do chamado governo do povo, pelo povo e para o povo fazem de seus interesses pessoais e de classe com a vontade popular. A Câmara dos Deputados – composta por um sistema de proporcionalidade que faz o voto de um paulista que mora no Acre 13 vezes mais poderoso do que um acriano eleitor em São Paulo – atua como um clube fechado de líderes de partidos, e não como o poder da cidadania.

Fala-se muito em “democracia representativa” no Brasil, mas a verdade é que, da forma como ela tem funcionado na prática, está mais para uma “cleptocracia partidária”. A distorção matemática, que impede a verdadeira representação do cidadão, relegada ao Executivo de União, Estados e municípios, tem um filhote infame na instituição que exerce o poder de fato no tal “presidencialismo de coalizão”. A Câmara tem 30 bancadas, recorde na História da República. Isso provoca um distanciamento crucial das votações em relação ao cidadão. Ao talante de seu chefão, leis de importância capital para a lisura e a consequente reputação da Casa são submetidas a votações simbólicas pelos líderes das bancadas, que decidem em alinhamento com as direções partidárias, sem prévias audiências públicas.

O texto da lei contra o abuso de autoridade, por exemplo, foi aprovado no Senado e ficou dois anos na Câmara, até passar em rito sumário e votação só de líderes. Deputados presentes tentaram exigir do presidente da sessão, Rodrigo Maia, verificação de quórum para fazer votação nominal, mas ele impôs sua vontade pessoal, jogando a democracia no lixo em nome dela própria.

Outro soit-disant arauto da democracia, Davi Alcolumbre, tentou golpe similar na semana passado para aprovar no Senado projeto ainda mais infame, em teoria, de reorganização dos partidos, mas teve de adiar para esta pela insistência de testemunhas de seu cinismo. Esse projeto autoriza parlamentares acusados de corrupção a usar recursos públicos para remunerarem advogados e dispensa partidos de pagarem multas por infrações à lei eleitoral. Os deputados da esquerda e do Centrão, com ajuda de parte da base governista, lutam para aumentar o fundo eleitoral para absurdos R$ 3,7 bilhões, aprovaram a permissão para os partidos pagarem passagens aéreas para filiados ou não com dinheiro público e retiraram as contas bancárias dos partidos dos controles da Receita Federal de Pessoas Politicamente Expostas. Um execrável descalabro!

Davi Alcolumbre, que, acumpliciado com o relator Roberto Rocha (PSDB-MA), arquivou o inquérito sobre a fraude na eleição que o pôs na presidência do Senado, em que foram computados 82 votos depositados por 81 senadores, e mantém a Casa sem Comissão de Ética, fez veemente defesa da democracia. Rodrigo Maia, eleito com 70 mil votos, no fim da fila da proporcionalidade, e feito presidente da Câmara com apoio do PCdoB ao DEM, também não perdeu a oportunosa ensancha para defender a nobre causa, da qual ele é um dos mais oportunistas parasitas.

O regime dos iguais foi desagravado pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que se julga preterida por Bolsonaro, apesar de não ter figurado na lista tríplice dos colegas, e pelo decano do STF, Celso de Mello, que, sem condições de saúde de dar expediente, não cede o alto posto. Na Câmara dos Deputados, Eduardo socorreu o irmão “02” com a frase célebre “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”, da lavra de Winston Churchill, primeiro-ministro britânico durante a 2.ª Guerra Mundial, ou “Wilson Church”, em sua prova rara de amor e erudição.”

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Xô responsabilidade fiscal





“Xô responsabilidade fiscal
      
Por Pedro Fernando Nery

Na semana que passou, o teto de gastos completou mil dias desde a sua promulgação. Na mesma semana foi noticiado que o STJ aprovou a criação de novo tribunal federal, o STM pagou R$ 100 mil para viagem de ministros em férias no verão grego, o STF reconheceu “repercussão geral de questão constitucional” no pleito de advogados federais terem 2 meses de férias, e o CNJ criou auxílio-saúde para o Judiciário sem previsão em lei. Também na semana dos mil dias, o risco país caiu para o menor nível desde 2013. Enquanto se discute seu fim, as notícias apontam para a essência do teto de gastos: redução do risco no longo prazo com um ajuste só gradual em curto prazo.

Contudo, predomina a narrativa de um teto draconiano, até abolindo direitos humanos. O discurso oposto, da importância da responsabilidade fiscal, fica longe de ter o mesmo apelo para ganhar corações e mentes. Talvez seja hora de abandonar expressões como “responsabilidade fiscal” no discurso e chamar as medidas contrárias pelo que elas são: inflacionismo.

Aperfeiçoar o teto ou substituí-lo por aumento de carga tributária ainda se inserem na lógica de responsabilidade fiscal ou austeridade: o objetivo ainda é a redução dos déficits e estabilização da dívida. Advogar abandonar o teto de gastos sem sugerir nada no lugar é inflacionismo.

 “Responsabilidade fiscal” não é um fim em si, evitar uma hiperinflação que é. A gravidade do problema e impacto na vida das pessoas de uma mal pensada política fiscal mais expansionista precisam ser mais bem comunicados.

Apesar do teto, os déficits primários que se iniciaram em 2014 só cessariam em 2024 pela IFI. Quer dizer que os governos “rentistas” de Temer e Bolsonaro não teriam poupado dos tributos um centavo sequer para abater da dívida: o último presidente a não fazer superávit primário em nenhum ano foi Sarney.

Sem freio, no limite o Tesouro precisaria do Banco Central para se financiar. A (hiper)-inflação seria a maneira de o governo cortar suas despesas em termos reais. Algo como o que ocorre hoje ao sul e ao norte de nossas fronteiras.

O colunista não está sendo alarmista: muitas das críticas ao teto ou medidas de “responsabilidade fiscal” estão implícita ou explicitamente associadas a impressão de dinheiro. Em artigo na Folha no domingo, professores críticos ao teto não apresentaram alternativa de controle de despesa ou aumento da receita, mas afirmaram com clareza que “o dinheiro não vai acabar enquanto o Estado puder exercer suas funções fiscais na sua própria moeda”.

A ideia anda em voga nos Estados Unidos no âmbito da autodenominada teoria monetária moderna (MMT). No contrabando para o debate brasileiro, esquece-se que não imprimimos dólar.

De forma mais explícita, a influente não-economista Maria Lucia Fattorelli, do movimento Auditoria Cidadã da Dívida, defende que o governo “irrigue” R$ 1 trilhão na economia: “Se o dinheiro for aplicado em investimento, não gera inflação coisa nenhuma.”

Com ideias populares entre internautas, políticos e nas ciências humanas, ela argumenta “Os bancos centrais dos países desenvolvidos jogam dinheiro na economia para investimento. Por isso que você chega lá e é aquela maravilha toda. Todas as estradas maravilhosas, tem metrô, tem trem para você viajar de trem. Por que aqui não tem nada? Por causa dessa desculpa errada de inflação”.

É diante desta intelligentsia que o teto se coloca. Nos termos de Samuel Pêssoa, ele permite “resolver problemas antes do abismo inflacionário”.

Afinal, quais os direitos humanos restringidos pelo teto até agora? Ele estimulou ampla reforma da Previdência, preservando rurais e BPC. Não à toa, 33% da economia no INSS será em São Paulo e somente 15% no Norte e Nordeste.

Já com os rentistas o teto tem sido cruel. Os desembolsos com juros estão prestes a cair abaixo de 4% do PIB, no acumulado de 12 meses calculado pelo Bacen, nível anterior ao da reeleição de Dilma. Em 2015, chegamos a pagar mais de 7%. Ao sinalizar solvência no longo prazo, o teto contribuiu para a queda da curva de juros.

Quanto ao investimento, ele sequer consta dos gastos proibidos como consequência de eventual descumprimento do teto, caso de despesas com funcionalismo ou aumentos reais no INSS. Ainda que o teto possa ser aprofundado para preservar ainda mais o investimento, como na PEC 438 (Rigoni de relator), é preciso ter em mente o que ele realmente veda, como a criação de novo tribunal ou do auxílio-saúde dos juízes, e do que ele protege. Se é de um abismo inflacionário, precisamos ajustar o discurso para explicar que o teto é um muro no barranco.”

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Falácia





“Falácia
      
Por Ana Carla Abrão

Em latim, fallere é o verbo que se traduz para o português como enganar, iludir ou trapacear. Dele deriva o termo falácia, que nada mais é do que um raciocínio que parece fazer sentido, mas que leva, invariavelmente, a uma conclusão errada. Do ponto de vista lógico, falácia é o uso de argumentos sem fundamento ou falhos para defender um resultado. Há falácias intencionais, cujo objetivo é o de confundir – e não o de esclarecer. Esses são sofismas e andam se multiplicando no debate nacional quando o tema é ajuste fiscal ou o teto de gastos. São textos, argumentos e conclusões que arregimentam defensores pouco isentos, pois buscam insistir no erro já cometido, ou justificá-los, confundindo causa e consequência numa ciranda de números pouco rigorosa.

“Gasto público é vida” é a hoje célebre frase da então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, na reunião que marcou o início da nossa derrocada fiscal. Foi ali que se definiu a inflexão de uma política econômica austera e consistente e criou-se as bases para o que viria a ser conhecido mais tarde como a Nova Matriz Econômica (NME), gênese dos nossos problemas fiscais. Mas as viúvas e viúvos dessa (des)orientação econômica continuam aí, insistindo que a causa da recessão e o vilão da dívida pública – os juros, claro – são todos resultados das correções e não dos erros cometidos no passado. Insistem, afinal, que é gastando que se sai da crise, defendendo conceitos amplamente usados no passado recente, numa esquizofrenia de quem acredita que ações iguais podem gerar resultados diferentes.

Foi esse o mote de artigo publicado no domingo na Folha de S. Paulo, sob o título de “Por que cortar gastos não é solução para o Brasil ter crescimento vigoroso?” e assinado por um grupo de economistas da Unicamp, UFRJ e Unisinos e UFF. Ali os autores negam o desequilíbrio fiscal e argumentam que o crescimento dos gastos obrigatórios não é um problema, e reforçam a conclusão de que a recessão é fruto do ajuste. Afinal, como não há desequilíbrio e não há como faltar recursos, pois o governo pode se financiar de forma ilimitada em moeda local, o grupo toma carona numa versão bem tupiniquim da nova teoria monetária (NMT na sigla em inglês) e a tempera com pitadas de NME.

Os números, de fato, não mentem. Vivemos um ciclo de redução contínua da capacidade do setor público de investir, o que leva à obvia conclusão de que estamos sofrendo com baixo investimento público (e privado). O investimento público atingiu patamares historicamente baixos, nos três níveis da federação. Paralelamente, os gastos obrigatórios, em particular os gastos com despesas de pessoal, cresceram à taxa real de 3,17% ao ano nos últimos 7 anos enquanto as receitas se elevaram, em termos reais, menos de 0,82% nesse mesmo período. O descolamento das duas trajetórias ocorreu tanto em tempos de bonança quanto em tempos de recessão, sendo a sequência muito clara.

À medida que receitas extraordinárias foram minguando e as despesas obrigatórias continuavam crescendo em ritmo definido pelos seus motores próprios (vinculações e/ou crescimento vegetativo), só havia uma conta a ser reduzida para minimizar o desequilíbrio estrutural entre despesas e receitas. E essa conta era a do investimento, aquela, dentre todas as despesas discricionárias, de mais fácil ajuste. O desequilíbrio estrutural continua, apesar de negado pelos autores, e hoje compromete não só os investimentos, mas também o funcionamento da máquina.

Mas a solução fácil viria não pela reversão do desequilíbrio inexistente, receita vil de ortodoxos sem coração, mas pela manutenção da tendência de crescimento da dívida pública. Afinal, gasto é vida, orçamento público tem dinâmica distinta do orçamento privado e dívida pública pode ser ilimitada. Para fechar esse argumento temos que esquecer dos juros, aquele vilão que os heterodoxos tendem a ignorar ser um preço. Juro, lembremos, é consequência e não causa. Incerteza, solvência e risco estão na base da formação desse preço, a não ser que ignoremos tudo isso e deixemos a inflação voltar, assim como aconteceu em 2016.

De fato, os autores têm razão ao afirmar que o Brasil não quebrou. Mas só não quebrou ainda porque houve, em meados de 2016, um impeachment que nos deu a chance de reescrever nossa história econômica e mudar a rota que nos levava ao colapso. Foi graças ao teto de gastos, à reforma trabalhista, à aprovação da TLP e agora à reforma da Previdência – e quiçá uma profunda reforma administrativa – que começaremos a vislumbrar um país melhor. Um país mais justo, com mais oportunidades e uma melhor alocação de recursos. Gastar menos e melhor é a solução. Usar os resultados dos excessos de gastos para justificar a necessidade de gastar mais para crescer é falácia, senão enganação.”

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Reforma política: reformar o quê, quando, para quê?





“Reforma política: reformar o quê, quando, para quê?
     
Por Bolívar Lamounier

Ao longo de sua história independente, o Brasil efetivou numerosas alterações em seu sistema político-institucional, algumas muito positivas, outras nem tanto. Algumas em resposta a desafios bem definidos, outras na esteira de um “clima” reformista vagamente delineado.

Entre as reformas positivas, eu começaria por mencionar a própria Constituição de 1824, muitas vezes debatida em tom de chacota, mas que teve o mérito, nem mais nem menos, de encaminhar nossa evolução política na direção do moderno Estado constitucional, devendo-se também observar que os órgãos legislativos e judiciários que tal evolução pressupõe foram imediatamente instalados. Outra alteração notável foi a de 1840, que muitos historiadores, incorrendo mais uma vez no pecado do anacronismo, denominam “o golpe da maioridade”. Ao autorizar a ascensão ao trono de um adolescente de 15 anos, o referido “golpe” teve o condão de encerrar quase instantaneamente a onda de rebeliões e pequenas guerras civis regionais que se configurara durante o período regencial (1831-1840), cujo prosseguimento poderia pôr em risco nossa unidade territorial.

Entre as mudanças negativas, a pior foi, sem dúvida, o autogolpe desfechado por Getúlio Vargas no dia 10 de novembro de 1937, o famigerado Estado Novo, a única vez em que o regime representativo e os mecanismos institucionais que o legitimam foram inteiramente erradicados em nossa história.

No passado recente, a tentativa mais ambiciosa foi a do Congresso Constituinte de 1987-1988, precedida pelos estudos levados a cabo durante quase um ano pela Comissão Afonso Arinos (Comissão Provisória de Estudos Constitucionais), nomeada pelo presidente José Sarney. Tratava-se, na ocasião, de reorganizar constitucionalmente o País após 21 anos de governos militares, convocando toda a sociedade a participar do processo a fim de lhe conferir o máximo possível de legitimidade. Natural, portanto, que todo o leque de questões pertinentes fosse aberto, dando ensejo a um debate público que equivalia praticamente a um reexame de toda a experiência histórica iniciada em 1824. Do ponto de vista institucional, no entanto, uma preocupação – a da estabilidade do novo regime democrático – destacava-se claramente sobre as demais, e nem poderia ser diferente, uma vez que Brasil, Argentina e Chile mal saíam de interregnos autoritários. E que outras experiências desse tipo se insinuavam no cenário latino-americano – poucos anos depois, o Peru sucumbiria ao fujimorismo e a Venezuela, ao chavismo.

Esta breve evocação das preocupações daquela época se afigura imperativa neste momento, dado o sentimento generalizado de que cedo ou tarde teremos de encarar novamente o desafio da reforma política. Dados, também, os cenários doméstico e internacional que ora se descortinam, com referências quase diárias a um suposto “fim da democracia representativa” e com tendências de fato preocupantes em diversos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a disputa entre Donald Trump e Hilary Clinton configurou-se como um enfrentamento raivoso, bem o oposto da garantia que os estudiosos políticos daquele país sempre nos deram: a de que a eleição presidencial sempre favoreceria a moderação e a convergência, forçando os radicais e furibundos a se contentarem com o apoio de faixas minoritárias da sociedade.

No quadro atual, é indispensável considerar que uma reforma política que se preze deve levar em conta pelo menos três critérios, ou perspectivas, examinando meticulosamente as interligações e eventuais contradições que entre eles se estabelecem. Refiro-me, em primeiro lugar, ao já referido critério da estabilidade, vale dizer, ao imperativo de reduzir ao mínimo possível as chances de ruptura da ordem constitucional e a consequente imposição de fórmulas ditatoriais.

Segundo, o critério da governabilidade, vale dizer, o da eficácia do sistema político em seu conjunto na produção das políticas públicas e, principalmente, na efetivação de reformas estruturais, que de tempos em tempos se faz necessária.

Terceiro, o critério da representatividade, da identificação ou não do eleitorado com seus representantes, questão que remete invariavelmente ao debate sobre o voto distrital e à desproporcionalidade entre as populações de certos Estados e as respectivas bancadas na Câmara dos Deputados (agravada pela representação igual de três parlamentares por Estado no Senado Federal).

Retrocessos ditatoriais geralmente decorrem de uma combinação de fatores, como crises econômicas, acirramento do embate entre partidos ou grupos ideológicos, personalidades destemperadas ocupando posições elevadas na estrutura de poder e, por último, mas não menos importante, sistemas de governo propícios à instabilidade, como o é o sistema presidencial.

Nesse aspecto, a situação brasileira atual é profundamente diferente daquela que vivenciamos nos anos 80 do século passado. Hoje, o que nos preocupa não é apenas a memória de retrocessos passados, mas a alta probabilidade de que possamos sucumbir a situações ainda mais graves num futuro não muito distante. Somos, como é de conhecimento geral, um país enredado na “armadilha do baixo crescimento”, incapaz de elevar sua renda anual por habitante a um nível compatível com a assustadora acumulação de problemas na sociedade. Direta ou indiretamente, tudo isso tem que ver com a governabilidade, vale dizer, com a constatação de que o sistema político tem grande parte de seu potencial travado por acoplamentos disfuncionais de mecanismos institucionais específicos.

Nesse aspecto, como ninguém ignora, o Brasil é um caso de alto risco, na medida em que associa o regime presidencial, com sua característica rigidez, a um sistema de partidos que é sabidamente o mais fragmentado do mundo.”

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

A lógica do destempero





“A lógica do destempero
      
Por DENIS LERRER ROSENFIELD

As manifestações intempestivas do presidente da República, suscitando confrontos permanentes, aparecem como formas de descontrole, quando são, na verdade, lógicas segundo sua arte de governar. São coerentes não apenas com o seu estilo pessoal, mas também, e sobretudo, com sua forma de fazer política.

Somente agora completa o novo governo sete meses, porém tem-se a impressão de que alguns anos já transcorreram. Discute-se a sucessão presidencial como se as eleições já estivessem ali adiante, expondo um quadro de envelhecimento precoce do governo. Nestes poucos meses ele ainda não disse ao que veio, mas novas eleições já entraram em pauta.

A duras penas completou o novo governo a aprovação da primeira rodada de votações da reforma da Previdência na Câmara dos Deputados. O processo, provavelmente, não se concluirá no Senado antes de outubro, no que se configura o início de um duro processo de retomada do crescimento. No entanto, o debate público é regido por questões manifestamente menores, como liberação de cadeirinhas para crianças nos automóveis, porte de fuzis, nomeação de um filho para embaixador, acusações de que o pai do presidente da OAB teria sido “justiçado” por seus “companheiros” durante o regime militar, e assim por diante. Há uma evidente confusão entre o principal e o acessório. A comunicação social do presidente é manifestamente falha. Só agrada aos fiéis e aos já convertidos.

Note-se que o governo, em vez de se beneficiar dos seus feitos – como o começo da aprovação da reforma da Previdência, a lei sobre o direito à legítima defesa (depurada de seus excessos), a concessão de aeroportos, o debate sobre a necessidade das privatizações, o início de desburocratização administrativa via eliminação de decretos, portarias e conselhos –, se perde em pautas claramente secundárias, ofuscando o que faz pelo País. Há uma inversão: o principal sai de foco e entra em seu lugar o subsidiário.

Qual é a lógica? Certamente não é a arte de governar, pois esta exigiria uma atenção às políticas públicas voltadas para tirar o País do marasmo de uma economia que patina e de um desemprego que aterroriza milhões de brasileiros. A insegurança pessoal ronda boa parte da população. Em seu lugar entra um conjunto de questões menores que diz respeito à concepção política dos bolsonaristas, voltada para o embate permanente, sempre à caça do inimigo real ou imaginário, não importa. O que conta é a “existência” do inimigo, real ou não.

Quando o presidente confronta opositores, logo tomados como inimigos, logo o faz sob a forma do embate, como se ele próprio estivesse em questão, como se estivesse sendo atacado. Qualquer ocasião é aproveitada segundo sua intuição dos dividendos que poderá extrair do confronto. Precisa do embate para fortalecer a própria posição, sentindo-se ameaçado. Tal processo funcionou muito bem durante a campanha eleitoral, particularmente propícia para a “destruição do inimigo”, no caso, o PT. Deixa, porém, de funcionar quando se aplica à arte democrática de governar, baseada na negociação e na composição com os adversários.

Tomemos o caso do confronto com o presidente da OAB. Em aparente descontrole, o presidente fez acusações, sem nenhuma prova, ao pai do dr. Felipe Santa Cruz, procurando criar uma instabilidade no interlocutor. Tratou-se de um ato gratuito, fora de contexto, sem nenhuma compaixão. A moral foi para o espaço. A liturgia do cargo foi abandonada. Suscitou um problema que não deveria sequer ter sido levantado. Por que o fez?

Procurou trazer para o debate político a questão do “justiçamento” dos que participaram da luta armada para a instauração do socialismo/comunismo no Brasil. Ressalte-se: não lutaram pela democracia. Eram “companheiros” que não mais concordavam com o uso da violência, que discordavam ou, simplesmente, pretendiam voltar a uma vida normal. Eram tidos por “suspeitos” ou ”traidores”. Foram “julgados” por “tribunais populares” e sumariamente assassinados. Tais casos, porém, não foram investigados pela Comissão da “Verdade”, por contrariarem a narrativa de que a “esquerda” seria “vítima” e lutava pela “democracia”. Acontece que o caso específico do pai do presidente da OAB não se enquadra nesse tipo de fato, tendo sido atestada sua morte, seu “desaparecimento”, nas mãos de órgãos do Estado.

Ora, o presidente, ao suscitar um problema histórico e mal aplicá-lo ao caso em questão, trouxe a entidade dos advogados para o embate político, realçando seu perfil de esquerda e colocando-a como “inimiga”, na esteira de outros ataques ao PT. Ou seja, o presidente precisa do PT e da esquerda em geral para se justificar, para manter em movimento o seu embate político, pois é essa narrativa que o seu grupo pensa ser a sua forma de sustentação. Se 2022 é o horizonte, é necessário que sua narrativa seja preparada desde já. O “inimigo” deve estar agora presente. Se o PT não existisse, seria necessário criá-lo.

Na verdade, o inimigo real dos bolsonaristas não é o PT, mas o centro do espectro partidário, que se pode apresentar nas próximas eleições em figuras como o governador João Doria ou o apresentador Luciano Huck. Eles são os alvos ocultos. Pense-se, por hipótese, que os bolsonaristas representam em torno de 30% dos eleitores e o PT e a esquerda, outros 30%. O embate entre os dois grupos favorece ambos, excluindo terceiros. O presidente Bolsonaro está voltado para o fortalecimento de seu eleitorado, de seus fiéis, apostando que o adversário num eventual segundo turno seria o PT. Suas chances eleitorais seriam grandes. Se, contudo, o PT não tiver condições de chegar ao segundo turno, entrando em seu lugar Doria ou Huck, o presidente estaria seriamente ameaçado.

Não há incontinência verbal, mas a lógica de um projeto de poder, muito bem pensada.”

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

O apagão que vem aí




“O apagão que vem aí
     
Por Paulo Rabello de Castro

A recente Portaria 424 do Ministério da Economia manda cortar até papel higiênico e cafezinho. É o governo federal no rumo de um apagão operacional. Mas a portaria do ministro é só a confeitaria do bolo. O governo federal prepara-se para sufocar gastos essenciais, porque a lei manda manter intactas despesas burocráticas.

Para não mexer em altos salários, aposentadorias milionárias e juros bilionários, o governo corta luz, água, obras, controle de queimadas e segurança nacional. O gasto total não para de crescer, mas os cortes só podem recair sobre o que é essencial. O aumento da despesa improdutiva do setor público subiu mais de sete pontos porcentuais do produto interno bruto (PIB) nos últimos anos e hoje trava o setor privado, pagador da conta, numa semirrecessão crônica.

No Orçamento da União há dois tipos de gastos, os ditos “obrigatórios” e os chamados de “discricionários” – nome complicado, que significa serem estes os “passíveis de cortes”. Começa aí o drama de todos os últimos ministros da área econômica.

O Brasil gastador passou em lei a obrigatoriedade de todos os gastos que afetam as corporações e os Poderes. Puseram na Constituição uma aberração que só existe aqui, o “reajuste anual global” de todos os salários e subsídios no governo federal (artigo 37, inciso X da Constituição federal). Com essas três palavrinhas, o governo está rigorosamente proibido de governar.

Em recente decisão – pendente de apenas um voto – na Suprema Corte brasileira, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmam o absurdo kafkiano da má governança pública no País. Os senhores magistrados estão para bater o martelo, proibindo que o governo use a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para ajustar o horário de trabalho e, portanto, as verbas remuneratórias da legião de funcionários públicos indemissíveis.

O STF, na prática, mandou o ministro da Economia retomar suas caminhadas no Leblon, já que em Brasília pouco lhe restou a fazer. O governo é gestor de um Orçamento 95% congelado por obrigatoriedades. O ministro tem para cortar os restantes 5%, que são, justamente, os gastos mais prementes, os dispêndios mais “produtivos”, pois representam investimentos em infraestrutura, a conta de luz na universidade, a gaze no hospital, o lápis na escola.

Ao deixar para o governo apenas a opção de cortar o essencial, na prática a lei ordena parar o governo no caso de uma insuficiência de arrecadação. Ora, esse dispositivo, embora constitucional, ofende frontalmente o princípio maior da eficiência na administração pública, constante do enunciado do próprio artigo 37 da Carta Magna. O Supremo Tribunal Federal, pelo visto, não leva isso em conta.

Mas o que Jair Bolsonaro poderia, ainda, fazer, ou já ter feito desde o primeiro dia de seu governo?

Primeiro, dar o exemplo, cortando na própria carne. Presidente não precisa gastar, pois sua vida é bancada pelos contribuintes. Poderia determinar corte de 50% (o ideal seriam 100%) da sua remuneração, o mesmo para seu vice e seus ministros (salvo apresentação de atestado de pobreza). Segundo, poderia contingenciar 10% de todo o Orçamento federal sem exceção, perfazendo um total à volta de R$ 140 bilhões em economias, ou seja, o número exato do déficit primário de 2019. Terceiro, permitir ao Congresso Nacional, em 60 dias, modular o corte médio geral de 10% por critério de essencialidade. Rodrigo Maia e seus companheiros parlamentares poderiam, então, ajustar os cortes efetivos de cada rubrica no Orçamento conforme sua essencialidade, desde que respeitando, no cômputo final, a economia média de 10%, ou seja, de R$ 140 bilhões.

Essa fórmula simples e corajosa já foi posta em prática em países sérios como a Alemanha de Angela Merkel, em 2010, e por Barack Obama, em 2012, nos Estados Unidos. Ambos tinham ajustes fortes a fazer para destravar suas economias após o estrago da grande recessão de 2008-2009. E ambos toparam o risco do desgaste de popularidade. Deu certo para ambos, pois a economia se destravou e os dois foram reeleitos em seguida.

Propus esse caminho ao presidente Michel Temer no início da sua gestão (abril de 2016), assim como havia sugerido essa mesma saída ao ministro Joaquim Levy, em 2015. Diversos estudos do Instituto Atlântico demonstraram, à época, que se ganharia rapidez na estabilização da dívida interna e todos, afinal, sairiam ganhando. Mas é preciso que o governo tenha coragem para enfrentar, com bons argumentos, os amigos da gastança e mostrar que a festa acabou.

Enquanto o presidente da República continuar colocando disco na vitrola, é óbvio que o arrasta-pé vai prosseguir. Até porque quem não gosta de um forró?

O Brasil está travado por excesso de sucção de dinheiro bom, que sai do bolso de famílias e empresas para alimentar o gasto federal, que não cabe mais na pesada carga tributária. A sucção (crowding out) da economia produtiva pelo setor governo está na raiz do estancamento do País. Não existe outra explicação. Mas isso dá para resolver, e rápido.

O presidente tem de autorizar seu ministro a pôr um fim no déficit primário de R$ 140 bilhões já em 2020. Ao ensejo da votação da Proposta da Lei Orçamentária (Ploa) de 2020 no Congresso Nacional, melhor ocasião não haverá. Salvar o crescimento do próximo ano é o objetivo que está em jogo.

O governo pode introduzir o “dispositivo Merkel-Obama” na próxima Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Pacto Federativo. Se o fizer, a economia vai se destravar e os brasileiros serão gratos pela coragem desassombrada dos seus líderes.”

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Os Estados e o 'timing'





“Os Estados e o ‘timing’
     
Por Fabio Giambiagi

O País caminha, aparentemente, para que em outubro tenhamos aprovado o que terá sido a reforma mais profunda da Previdência desde a Constituição de 1988. Mesmo assim, não há razões para comemorar esse feito de forma muito efusiva, por dois motivos. Primeiro, porque a despesa previdenciária continuará aumentando em termos reais ano após ano, ainda que, naturalmente, numa velocidade bastante inferior em relação à que se verificaria se a reforma não fosse aprovada. E segundo, porque a reforma aprovada na Câmara deixou de lado os Estados e municípios. Considerando que o fluxo de desequilíbrio destes, pelo Anuário Estatístico da Previdência Social, passou de R$ 27 bilhões em 2010 para R$ 92 bilhões em 2017, tem-se uma sinalização da nossa lentidão paquidérmica em fazer mudanças estruturais, mesmo quando o País avança.

Tal omissão se explica, politicamente, como resultado do que em teoria dos jogos é um típico jogo não cooperativo. O exemplo clássico é o famoso “dilema dos prisioneiros”, em que dois detentos podem agir racionalmente ou, olhando puramente para seus interesses individuais, criar um resultado negativo para o conjunto representado pela soma de ambos. Como podemos entender que se tenha chegado a esta situação tão ruim para o País, de um problema óbvio e enorme não ser endereçado? Na verdade, isso é bastante fácil de entender quando se leva em conta o mosaico político dos Estados. Os governadores do Nordeste, pertencentes ao lado do espectro político associado (lato sensu) à esquerda, manifestaram-se, em sua maioria, pro forma a favor da reforma, porém ao mesmo tempo em que os parlamentares dos seus partidos, no Congresso e nas ruas, faziam campanha aberta contra a aprovação da PEC.

Como a reforma envolve medidas impopulares e vários desses parlamentares oposicionistas serão candidatos a eleições majoritárias no futuro, o script que resultaria da aprovação da PEC original – que tinha os Estados e municípios na reforma – era muito claro: os Estados se beneficiariam da medida – pela contenção das despesas que resultaria da reforma –, enquanto, nas eleições de 2020 ou 2022, os deputados dos mesmos partidos que os governadores – que não votam no Congresso, em Brasília – fariam campanha contra os candidatos do centro e da direita, acusando-0s de terem votado a favor da reforma e “contra o povo”. Um contingente expressivo, portanto, de parlamentares do centro e da direita se aliou, na prática, à oposição no Congresso para bloquear a parte da reforma que afetaria os Estados, deixando-os de fora. A lógica é fazer os governadores “sangrarem” politicamente, assumindo o ônus de aprovar medidas duras de aumento do período de serviço dos servidores estaduais, o que em âmbito local deve provocar certo desgaste para eles.

Em mais de uma oportunidade, nos últimos meses, tenho utilizado a mesma expressão: “O nome do jogo é articulação política” (no mais alto grau). Foi ela a grande ausente nesse ponto específico. Lembremos que, em 2003, Lula aprovou a idade mínima e a taxação dos servidores – duas medidas politicamente explosivas até então – e, talvez por ter uma liderança maior sobre o Congresso, não só conseguiu fazer a reforma passar, como, além disso, o fez valendo para os três níveis de governo – central, estadual e municipal. A liderança e a articulação do Executivo não se fizeram presentes na reforma de 2019 e o resultado é essa reforma com apenas uma perna só – a federal.

O fato de a reforma não ter os Estados como parte inerente a ela acarreta dois grandes ônus. O primeiro é a questão fiscal em si. Como o problema previdenciário nas alçadas subnacionais é gravíssimo, manter os Estados fora da reforma é uma garantia de que seus problemas fiscais vão continuar, ou seja, de que não veremos tão cedo notícias como X sai da crise ou Após vários anos, Y volta a investir pesadamente, referindo-se aos Estados X ou Y.

O segundo problema é o risco de repetição de imagens como as que os habitantes do Rio de Janeiro vimos há quatro ou cinco anos, quando o Estado do Rio, na prática, quebrou e foi obrigado pelas circunstâncias a um ajuste num contexto de grande contestação social. Durante meses a população fluminense acostumou-se a cenas de ônibus queimados, vitrines quebradas, black blocs nas ruas, etc. E em muitos lares os servidores públicos, até mesmo aposentados e pensionistas do Estado, ficaram sem receber ou receberam com atraso por meses a fio. A perspectiva do risco de essas cenas se repetirem em diversos Estados durante um ou dois anos seria um pesadelo, quando se considera a necessidade de aumentar o investimento do País. Imagens como essas toda semana no noticiário seriam a melhor forma de dissuadir interessados em fazer apostas pesadas no futuro.

Por tudo isso, os Estados deveriam aproveitar para avançar na elaboração das próprias propostas a serem encaminhadas às respectivas Assembleias Legislativas, de preferência logo após a aprovação da emenda constitucional pelo Congresso Nacional. Aguardar, sem fazer nada, a aprovação de uma “PEC paralela” pode deixá-los na pior das situações, se ela for aprovada no Senado, mas esbarrar nas mesmas restrições que a original na Câmara dos Deputados.

Será praticamente impossível aprovar medidas duras em âmbito local no segundo semestre de 2020, quando toda a atividade política deverá girar em torno das eleições municipais de outubro do ano que vem. Ao mesmo tempo, 2021 está muito longe, quando se leva em conta a urgência da situação fiscal dos Estados. O ideal seria os governadores amadurecerem rapidamente as ideias a respeito do tema em outubro e encaminharem as propostas em novembro, para aprová-las na Assembleia até o segundo trimestre do ano que vem.

O País precisa virar essa página de uma vez por todas.”

terça-feira, 10 de setembro de 2019

A boca do inferno




“A boca do inferno
      
Por William Waack

O governo Bolsonaro está sendo obrigado a pensar em gastar – além dos limites legais, obviamente. A equipe econômica acredita, acompanhada por importantes segmentos da economia, que a agenda de concessões, desburocratização, melhoria do ambiente de negócios e desregulamentação trará crescimento num horizonte de médio prazo. O problema é o que fazer até lá, pois economia andando devagar, renda familiar comprimida e desemprego persistente nunca trouxeram dividendos políticos a governo algum.

Esse é o pano de fundo das conversas já em tom alto de voz para levar ao Legislativo propostas que flexibilizem de alguma forma as restrições impostas pelo teto dos gastos públicos, aprovado sob Temer. “Pela primeira vez estou escutando com insistência amigos dizendo que a PEC do teto dos gastos é muito dura, está inviabilizando o setor público”, admitiu o competente secretário do Tesouro, Mansueto Almeida. E fuzilou: “A realidade dos fatos é que a gente tem um país que tributa muito, gasta muito, não tem capacidade de investimento e ainda tem ajuste fiscal a ser feito”.

O muro com o qual Paulo Guedes e sua equipe se chocaram é formidável e impõe consequências políticas. Por causa da limitação do teto, os gastos obrigatórios (saúde, educação, aposentadorias) corrigidos pela inflação aumentam todo ano, enquanto os discricionários (“livres”) diminuem todo ano. É a tal da “matemática” à qual se referiu o presidente. Ministérios já estão parando, sufocados por contingenciamento de verbas, o mesmo acontecendo com programas que vão do Minha Casa Minha Vida ao combate a queimadas na Amazônia.

Esse é o pano de fundo também da insistente conversa sobre um novo pacto federativo, que Guedes tem oferecido aos governadores nos seguintes termos (simplificados): vocês nos ajudam a desindexar no Legislativo despesas e a desengessar o Orçamento, nós ajudamos vocês a melhorar a situação fiscal já no curto prazo com divisão mais favorável da arrecadação obtida com leilões do pré-sal, além de repasses diversos como fundos para educação, entre outros. A aprovação da cessão onerosa no Senado (com a qual o governo espera arrecadar mais de R$ 100 bilhões, dos quais R$ 21 bilhões vão para Estados e municípios) foi parte relevante dessa negociação.

O tal “pacto” tem sido visto por algumas agências de classificação de risco e por economistas com certo ceticismo. Por um motivo principal: o tamanho da bomba fiscal que paira sobre os Estados e, por consequência, sobre a própria União. De fato, os governadores não poderão gastar o dinheiro do megaleilão do pré-sal com itens como pagamento de pessoal ou custeio da máquina administrativa. Mas eles têm recebido poucos “incentivos” para proceder os ajustes fiscais.

Ao tal “novo pacto federativo” está ligada a reforma tributária, à qual alguns governadores associaram a falsa esperança de melhoria de arrecadação (enquanto o público em geral está confundindo simplificação tributária com redução de carga tributária, perigoso engano). Ao contrário, vai piorar para alguns, e não dá para reduzir impostos diante do tamanho dos gastos sociais no País – simples assim.

O STF não está ajudando, ao bloquear a redução de carga horária e salários para servidores públicos, cuja folha já consome em 14 Estados mais que o teto de 60% fixado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Contingências políticas (como perda de popularidade) e também econômicas (dar um impulso na economia) provavelmente levarão a algum tipo de entendimento para flexibilização do teto de gastos. Pode ser simplesmente a não criminalização de quem não cumpri-lo, por exemplo. Os puristas dirão que mexer no teto de gastos é abrir a boca do inferno. Os cínicos observarão que dali sai até algum calorzinho, fora o fato de estar cheio de conhecidos.”

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

A tradição da mentira no Brasil





“A tradição da mentira no Brasil
      
Por Fernão Lara Mesquita

No editorial Os problemas da delação (29/8), este jornal endossou o “viés formalista” da tese do STF (na verdade, a meu ver, ela é bem mais que só isso) que resultou na libertação de Aldemir Bendine, o elemento que o PT instalou na presidência da Petrobrás e do Banco do Brasil em boa parte do período em que passaram pelo “maior assalto consentido já registrado na história da humanidade”. Não existe qualquer dúvida quanto à culpabilidade de Bendine nem dos seus comparsas, mas o precedente poderá resultar na libertação de praticamente todos os envolvidos, a começar pelo o ex-presidente Lula, sobre cuja culpabilidade também não paira a menor dúvida.

Vem de muito longe o processo de domesticação do brasileiro para deixar-se cavalgar pelo absurdo sem reagir. O sistema de educação jesuíta, a ordem religiosa que por 389 anos teve o monopólio régio da educação no Brasil, não partia de perguntas nem visava a aquisição de conhecimento. Era um sistema defensivo criado para sustentar a qualquer preço a “verdade revelada” que fundamentava o sistema de poder e de organização da sociedade em castas detentoras de privilégios hereditários ameaçados pela revolução democrática.

O truque consiste em despir toda e qualquer ideia a ser discutida da sua relação com o contexto real que a produziu para examiná-la como se existisse em si mesmo, desligada dos fatos ou pessoas às quais se refere. Sem sua circunstância, a ideia transforma-se num corpo inerte, ao qual não se aplicam juízos de valor. Assim esterilizado, o raciocínio é, então, fatiado nos segmentos que o compõem, sendo a coerência interna de cada um examinada isoladamente nos seus aspectos formais, segundo as regras da lógica abstrata, as únicas que podem ser aplicadas a esse corpo dissecado.

Se qualquer desses segmentos apresentar a menor imperfeição lógica ou puder ser colocado em contradição com qualquer dos outros, a imperfeição “contamina” o todo e o debatedor fica autorizado a denunciar como falso o conjunto inteiro, mesmo que, visto vivo e dentro do seu contexto, ele seja indiscutivelmente verdadeiro.

Como nenhuma proposição humana é capaz de passar incólume por esse exercício de dissecação, a pessoa começa a duvidar da própria capacidade de discernimento. Desclassificados o senso comum (até hoje a base do sistema jurídico anglo-saxônico) e a razão como instrumentos bastantes para dirimir controvérsias, tudo acaba tendo de ser decidido por um juiz segundo uma regra artificial que deve ser vaga o bastante para permitir as mais variadas interpretações, de modo a conferir a esse juiz uma virtual onipotência.

Invocar o límpido preceito do “na dúvida, a favor do réu” para justificar o movimento que, visto no conjunto, tem o óbvio propósito de manter a impunidade dos representantes do povo que traem seus representados – a própria negação do sentido de “democracia” – é um exemplo prático de como esse sistema põe a verdade a serviço da mentira e a lei a serviço do crime. Seguido à risca ele garante que nenhum réu com dinheiro suficiente para pagar advogados possa ser condenado em definitivo e nenhum “direito adquirido” pela privilegiatura (são estes que estrangulam economicamente a Nação; o que nos roubam sem o recurso à lei é apenas troco) venha a ser desafiado.

O esquema de Antonio Gramsci é um aggiornamento da dialética defensiva jesuíta. Ele marca o momento da rendição da utopia socialista e o decidido abraço da casta que ela pôs no poder pelos caminhos do privilégio na luta contra a meritocracia, o pressuposto essencial da democracia. A paulatina conversão dessa luta de uma disputa entre verdades concorrentes para a destruição do próprio conceito de verdade (a “pós-verdade”) inclui o reconhecimento da relação indissolúvel entre democracia e verdade (cujo agente intermediador é a imprensa, que não sobreviverá se não reassumir esse papel). E a admissão do fato de que onde está bem plantada ela só pode ser destruída por dentro, a partir de uma deliberação da maioria contra si mesma, e que só uma trapaça pode produzir esse efeito homenageia a superioridade moral que os seus inimigos sempre negaram à democracia ao longo de todo o século 20.

A apropriação pelas ditaduras socialistas dos métodos do capitalismo pré-democrático, o ataque maciço contra os direitos do consumidor, o esmagamento do indivíduo e a concentração extrema da riqueza, frutos da volta dos monopólios, a globalização da censura gramsciana agora deslocada para o campo do comportamento, os ensaios de Vladimir Putin para o falseamento da eleição americana, as primeiras ações de censura das megaplataformas da internet, os movimentos coordenados de militâncias internacionais contra e a favor de governos nacionais tendo a Amazônia (e não somente ela) como pretexto desenham os contornos que terá a guerra no novo mundo hiperconectado. As UTIs serão invadidas, os cateteres de sustentação da vida (no caso brasileiro, o do agronegócio) serão implacavelmente arrancados das veias das economias moribundas, os interesses de casta da privilegiatura estarão sempre acima de tudo. Mas os únicos remédios conhecidos seguem sendo os mesmos de sempre: a exposição da verdade e o culto ao merecimento.

O Brasil não precisa de “um novo pacto social”. O Brasil precisa do seu primeiro pacto social. Fazer a revolução democrática que saltou. Mudar o poder de dono pela primeira vez em sua história. E a única maneira conhecida de consegui-lo sem que a tentativa degenere num sistema de opressão da maioria sobre a minoria é com a velha receita dos iluministas. Uma democracia efetivamente representativa, o que só o sistema de eleições distritais puras proporciona, com uma cidadania armada de recall, referendo, iniciativa legislativa e a prerrogativa de reconfirmação periódica dos poderes dos seus juízes, pela razão muito elementar de que, fora dos contos da carochinha, só tem algum controle sobre o seu destino e condição de proteger o que é seu quem tem o poder de demitir.”

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Impunidade garantida





“Impunidade garantida
      
Por José Nêumanne

O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Velloso não concordou com a decisão, por 3 a 1, da Segunda Turma da Corte anulando a condenação do ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobrás Ademir Bendine. “Nem o Código Penal nem a lei da colaboração premiada fazem esta distinção que o Supremo adotou. Penso que não é possível o tribunal, invocando o direito de defesa, ampliar norma processual”. Especialista em combate à corrupção, o professor de Direito da USP Modesto Carvalhosa revelou idêntico entendimento no seu perfil no Twitter: “Este precedente, aberto graças à ministra Cármen Lúcia, a Gilmar Mendes e Lewandowski, foi apenas uma desculpa esfarrapada para dar argumentos aos advogados de Lula”. E o desembargador Walter Maierovitch ironizou: “Só de ficar atento ao voto de três ministros do Supremo Edson Fachin teve torcicolo”.

Tiradas de humor à parte, o assunto é sério. Já há algum tempo o STF vem brincando de legislar à revelia do Congresso, instituição eleita para representar o cidadão, detentor de todo o poder, de acordo com a Constituição. Diante da informação repetida à exaustão por ilustres jurisconsultos, citados ou não no parágrafo acima, salta aos olhos de qualquer um a falta de algum amparo ou mesmo da mais criativa interpretação da letra da lei para manter a decisão. Não há previsão na Constituição, no Código Penal nem na lei das colaborações premiadas que justifique o despautério em questão.

Tida como a primeira proclamação de tribunal superior a desautorizar sentença do ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro, a anulação da condenação constrange também o Tribunal Federal da 4.ª Região (TRF-4), em Porto Alegre, e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, que a mantiveram com ênfase. Além disso, despreza a solução de conciliação proposta pelo presidente do STF, Dias Toffoli, de alterar jurisprudência resolvida três vezes em 2016 de permitir início de cumprimento de pena para após a terceira instância.

Enquanto este se faz de surdo ao não se referir mais à própria proposta, ao que parece, esquecida, novos ingredientes de soberba, indiferença e autismo acabam de ser noticiados. Josias de Souza, comentarista do Jornal da Gazeta e colunista do UOL, resgatou despacho de abril de 2018 em que o relator da Lava Jato no STJ, ministro Félix Fischer, destacou a generosidade do julgador ao atender a pedido de segundo depoimento do réu, cuja defesa alegou ser necessário por ele se ter negado a falar no primeiro. Ao aceitar a demanda de Alberto Toron de ter sido, então, negado ao réu pleno direito de defesa, o trio pródigo protagonizou chicana mais absurda que o arquivamento da Operação Castelo de Areia, em 2009.

Essa descoberta não foi, contudo, a única revelação recente. Outra veio à luz no fim da semana passada, superando o episódio em que penoso trabalho de investigação naufragou com o cancelamento das muitas provas recolhidas após o argumento da defesa da acusada, a empreiteira Camargo Corrêa, de que a denúncia original havia sido anônima. Agora, dez anos depois, o ex-ministro da Fazenda de Lula e da Casa Civil de Dilma, Antônio Palocci, contou à Polícia Federal (PF), em delação premiada, o que já se supunha. A chicana – “dificuldade criada no curso de um processo judicial civil, pela apresentação de um argumento com base num detalhe ou num ponto irrelevante” (Houaiss, pág. 699) – desconsiderou outra informação que destrói a hipótese de prejuízo à defesa. No UOL o mesmo Josias informou que não houve acusações novas nas considerações finais de delatores, às quais Bendine alegou não haver tido acesso antes da condenação. “Preocuparam-se em consolidar as próprias revelações, credenciando-se para usufruir recompensas judiciais como a redução da pena.” Conforme o relato, esse foi o caso de Marcelo Odebrecht, que chegou a ficar dois anos na cadeia.

Meu pai, José de Anchieta Pinto, que foi chefe político no sertão da Paraíba dos anos 50 a 70, repetia sempre em casa o chavão segundo o qual “de barriga de mulher, bumbum de bebê e cabeça de juiz é impossível saber o que pode sair”. Naquele tempo podia ser. Hoje a tecnologia do ultrassom revela detalhes extraordinários, muito além do sexo, dos embriões no ventre materno. Motivações de magistrados continuam sendo, contudo, imunes à mais sofisticada tecnologia. Se Cármen, Gilmar e Lewandowski não confidenciarem a ninguém capaz de revelar seu segredo, jamais se saberá se, de fato, como vituperou Carvalhosa, a anulação da sentença do corrupto menor Bendine terá sido apenas um pretexto para libertar o condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, por 8 a 0, Lula da Silva, que calça coturno mais alto. Certo, porém, é que sempre haverá um “pirréps”, como dizia o poeta do absurdo (e é de absurdo que tratamos) Zé Limeira em cantorias na serra de Teixeira.

O jurista pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, ex-ministro da Justiça, ex-membro da comissão de notáveis que fez um projeto para a Constituição de 1988, que a Constituinte não levou em conta, levantou uma dúvida sobre eventuais benefício do precedente Bendine para Lula. E o “pirréps” tem nome: preclusão, “impedimento de usar determinada faculdade processual civil (...) pela não utilização dela na ordem legal” (Houaiss, pág. 2.281). Ou seja: a tradição do Direito não permite que o advogado recorra, após a sentença, a argumentos não usados no decorrer do processo. No popular: foi para Portugal, perdeu o lugar. Seja por civil não ser penal, seja por Gilmar Mendes ir sempre para Portugal sem nunca perder o lugar no “colendo colegiado”, ainda restará uma esperança de utilizar o efeito Bendine para mandar o ex-presidente da cela de “estado-maior” em Curitiba para seu lar doce lar no ABC.

A Lava Jato não tem mais plenário a favor. Cármen Lúcia será o sexto voto da vitória dos “garantistas” da impunidade.”