Por CARLOS SENA (*)
São João é para o Nordeste a sua maior festa. Não conhecemos nenhum nordestino que tenha restrições a esse período. Há quem até nem goste de carnaval em plena capital pernambucana, na Bahia ou mesmo no Rio de Janeiro. Gostar do nosso festejo junino é quase que uma obstinação. Reveste-se de um simbolismo não só em função do folclore, mas, e acima de tudo, do resgate da cultura no geral e da auto-estima no particular.
O mês de junho adentra na alma do nordestino pelos sete buracos da cabeça, sob forma de musica, de comidas típicas, de folguedos, de cultura, entretenimento, lazer, turismo. Cidades como Caruaru em Pernambuco e Campina Grande na Paraíba disputam o título do melhor São João. Quem vai a uma acha ser a melhor, mas se chega à outra, fica indeciso e, certamente dará o título às duas. Independente, o melhor de tudo isto é o sentimento de nordestinidade que se reaquece no calor das nossas fogueiras sem vaidades e exageros.
Ser nordestino hoje, não é a mesma coisa de antigamente. Nossa cultura popular se impôs pela competência e pela singularidade; nosso povo hoje disse a que não veio. Pensava-se no passado, com algumas exceções, que nós nordestinos teríamos o destino da macambira: nascer na seca, morrer na seca; ou talvez do mandacaru que, mesmo verde por fora, não servia pra nada, exceto par descer na goela do gado e virar bosta para adubar o chão seco porque a chuva não vinha para fecundar o chão.
O Nordeste hoje não é mais Dordeste. Ô Nor, Deste? Perguntariam muitos. Esses conceitos todos eram a lógica imanente de uma “nação” que está viva; que se fez por si, que se estabeleceu por si, que se reiniciou da inércia do atraso tecnológico por si. O nosso São João de hoje é como que uma página de um jornal imaginário que publica em forma de sentimento sua mais nobre tradução. Esse sentimento é a forma mais legítima que tenho de ver nossa festa maior. Um sentimento político que se reverbera no que fazemos e no que somos na cultura, no folclore, na criatividade, no sentimento de bravura e na capacidade que tivemos (e ainda temos) de tirar leite das pedras e fazer das “tripas coração”. “A TRISTE PARTIDA” canção de Luiz Gonzaga, composição de PATATIVA DO ASSARÉ (a seguir citada), é uma foto em preto e branco desse período nigérrimo da nossa nação nordestina. A gente vivia de pires na mão pedindo aos paulistanos para nos dar um pedaço de pão. O melhor é que eles nos deram e nós em retribuição construímos uma das maiores cidades da América Latina e uma das maiores do mundo. Pagamos caro esse preço é verdade, mas não existe nada sem preço. O que nos deixa ainda zonzos é que pagamos nesse bojo o preço da dignidade por não termos tido, na época, discernimento de que não se troca trabalho por comida, mas por vida digna.
O nordeste em junho é só festa. Turistas de montão. Hotéis lotados e... Vixe. Oxente! De onde vem tanta gente? Será que nós agora somos “IN”? – Não. Nós somos a grande nação Nordestina do Brasil que, fiel às suas origens se estabeleceu pela competência do nosso forró enquanto ritmo próprio; pela cultura do seu povo e destaque na política, na literatura, na ciência; enfim, pela sua singular gastronomia.
O sentimento de muitos sudestinos de que nordestino é besta, bobo, ou coisa parecida é coisa do passado. Que há xenófobos por lá todo mundo sabe, mas não são todos – trata-se de um nicho resumido de “filhos de papai” que concomitante massacram gay, negros, judeus, etc., e que Freud, certamente não explicará.
Venham todos. O nordeste é um só arraiá de festa. Tem forró pra todo lado; tem coco de roda, baião, maxixe, canjica, mungunzá, pamonha, moça bonita, moça feia, matuta, brejeira, enfim... Tem Caruaru, Campina Grande, Recife, Gravatá, Bom Conselho, Garanhuns, Pesqueira, Arcoverde, tudo tem.
Tem eu tem tu, tem Alceu, tem mandacaru.
Tem Gonzagão, Dominguinhos, tem quentão e tem vinho.
Tem carinho de mulher dengosa, tem rima e tem prosa.
Tem cabra macho que se amansa quando recebe uma rosa.
Tem rosa despedaçada no vai-vem do forró.
Tem matuto bem dotado que deixa turista leve
Tem matuto cor de rosa feliz e respeitado
Tem mulher de sapato grande
Tem mulher sem sapato
Tem gente de todo jeito, mas ninguém sem recato...
A TRISTE PARTIDA
PATATIVA DO ASSARÉ
Passou-se setembro
outubro e novembro
estamos em dezembro
meu Deus que é de nós?
assim diz o pobre
do seco Nordeste
com medo da peste
e da fome feroz
A treze do mês
fez a experiência
perdeu sua crença
nas pedras de sal
com outra experiência
de novo se agarra
esperando a barra
do alegre Natal
Passou-se o Natal
e a barra não veio
o sol tão vermeio
nasceu muito além
na copa da mata
buzina a cigarra
ninguém vê a barra
pois barra não tem
Sem chuva na terra
descamba janeiro
até fevereiro
no mesmo verão
reclama o roceiro
dizendo consigo:
meu Deus é castigo
não chove mais não
Apela pra março
o mês preferido
do santo querido
senhor São José
sem chuva na terra
está tudo sem jeito
lhe foge do peito
o resto da fé
Assim diz o velho
sigo noutra trilha
convida a família
e começa a dizer:
Eu vendo o burro
o jumento e o cavalo
nós vamos a São Paulo
viver ou morrer
Nós vamos a São Paulo
que a coisa está feita
por terra alheia
nós vamos vagar
se o nosso destino
não for tão mesquinho
pro mesmo cantinho
nós torna a voltar
Venderam o burro
jumento e cavalo
até mesmo o galo
venderam também
e logo aparece
um feliz fazendeiro
por pouco dinheiro
lhe compra o que tem
Em cima do carro
se junta a família
chega o triste dia
já vão viajar
a seca é terrível
que tudo devora
lhe bota pra fora
do torrão natá
No segundo dia
já tudo enfadado
o carro embalado
veloz a correr
o pai de família
triste e pesaroso
um filho choroso
começa a dizer
De pena e saudade
papai, sei que morro
meu pobre cachorro
quem dá de comer?
E outro responde:
Mamãe, o meu gato
da fome e maltrato
mimi vai morrer
A mais pequenina
tremendo de medo
mamãe, meu brinquedo
e meu pé de fulô
a minha roseira
sem água ela seca
e minha boneca
também lá ficou
Assim vão deixando
com choro e gemido
seu norte querido
um céu lindo azul
o pai de família
nos filhos pensando
o carro rodando
na estrada do sul
O carro embalado
no topo da serra
olhando pra terra
seu berço seu lar
aquele nortista
partido de pena
de longe acena
adeus, Ceará
Chegaram em São Paulo
sem cobre e quebrado
o pobre acanhado
procura um patrão
só vê cara feia
de uma estranha gente
tudo é diferente
do caro torrão
Trabalha um ano
dois anos mais anos
e sempre no plano
de um dia inda vim
o pai de família
triste maldizendo
assim vão sofrendo
tormento sem fim
O pai de família
ali vive preso
sofrendo desprezo
e devendo ao patrão
o tempo passando
vai dia e vem dia
aquela família
não volta mais não
Se por acaso um dia
ele tem por sorte
notícia do Norte
o gosto de ouvir
saudade no peito
lhe bate de molhos
as águas dos olhos
começam a cair
Distante da terra
tão seca mas boa
sujeito à garoa
à lama e ao paul
é triste se ver
um nortista tão bravo
viver sendo escravo
na terra do Sul
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(*) Publicado no Recanto das Letras em 19/06/2011
Caro Carlos Sena,
ResponderExcluirVocê mais do que ninguém sabe que venho roubando seus artigos no Recanto de Letras e publicando-os aqui, em nosso jornal.
Seus artigos merecem. São simplesmente maravilhosos. Espero que nos deixe roubar sempre, para o bem de Bom Conselho.
Quando vi o poema de Patativa do Assaré, ainda pensei em procurar a música no YouTube e publicá-la junto com o texto. Depois achei que seria conspurcar um belo texto com o som, e não sei se você aprovaria.
De qualquer forma obrigado pelos seus textos.
Um abraço
Zé Carlos