Por José Antonio Taveira Belo / Zetinho
Sempre fui atento para as conversas das pessoas mais idosas. São pessoas de sabedoria popular, sem muito estudo, mas de uma capacidade incrível de apontar certos seguimentos da vida com bastante clareza.
Como meu pai, Antonio Zuza, e outros membros da nossa família sempre ficaram atento para os seus conselhos, o que me fez e me faz uma pessoa compreensível.
Ouvir estórias dos mais velhos é uma coisa que eu gosto, pois, delas saem muitas lições para a vida. São sabedorias, que muitas pessoas pensam que já estão ultrapassadas.
Em nossa casa, pobre na Rua do Caborje, sempre ao final do café da noite, papai gostava de contar suas estórias, muitas das vezes debulhando feijão verde trazido do “sitio Terra Preta” em um saco e que derramava na mesa e ali ele, minha mãe Nedi, e minha duas irmãs se ajeitavam para debulhar aquele monte de feijão em vagem verdinha. Sentava cada um em um tamborete, com exceção da minha irmã Ana, que de tão pequena sentava-se na mesa e colocava entre as pernas um monte de vagem e com suas pequenas mãos ia abrindo todas e colocando os caroços em vasilha.
Papai começou a contar mais uma das suas estórias:
Disse para a gente, olha esta semana tive uma surpresa quando cheguei ao sitio Pinto d’Água, na segunda feira. O Seu Alvim, um dono de um sitio que sempre me recebeu bem, tinha morrido. A noticia se espalhou pelo povoado e todos iam ao velório, pois, era uma pessoa muito querida. Muitas das vezes dormi em sua casa, não faltando o bejú, a macaxeira e inhame, com carne de sol ou guisado de galinha.
Comecei neste dia o meu trabalho pelas ruas do povoado e a noite lá fui para o velório prestar a última homenagem a este cidadão que tanto me fez bem. Chegando por volta das sete horas da noite, já tinha uma grande multidão no terreiro embaixo de uma jaqueira e um alarido dentro da casa de taipa, com a luz do candeeiro acesso em vários lugares e o caixão na pequena sala, com velas acesas em cima de quatro latas. Entrei e vi lá aquele homem, dedicado à agricultura interiorana, deitado de mãos posto e um terço nas mãos cruzadas sobre o peito.
Sai e fui lá para fora. Sentei-me em um tronco de mangueira, ali comecei a escutar a conversas dos matutos, seus vizinhos. A cada momento chegava mulheres com um pano enrolado na cabeça e no pescoço enquanto, os homens iam se achegando com os seus paletós surrados, chapéu de palha ou de couro na cabeça e um lenço nas mãos. Alguns amarravam seus animais de montaria em uma cerca, tirando os arreios, pois passariam a noite. Olhavam e depois sai e as mulheres lá dentro começavam a cantar e rezar as “incelência” e “rezas” para o defunto encontrar paz no céu junto a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Virgem das Dores, e consolando a família.
É assim mesmo comadre, todos nois um dia iremos para o céu. Abraçava a comadre chorosa.
- Perguntei – Seu Zezinho, o porquê desta cantoria?
- Ele me disse: Seu guarda Isto para acalmar a alma do compadre que está subindo para o céu, com a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Mamãe falou. Antonio que estória esta nesta hora da noite?
- Os meninos estão com medo?
- Não vê?
- Isto estória para se contar a noite?
Papai riu. Continuou.
Era por volta das sete horas da noite. Sentei-me embaixo do pé de jaqueira em um tronco ocupado por dois moradores de sítios vizinhos. Eles conversam. Sentiram a minha presença e se voltaram para falar alguma coisa.
- Seu guarda conhecia Alvim?
- Conhecia. Já trabalhei nesta casa no mês passado. Tudo parecia bem. Conversamos a tarde sentado neste mesmo tronco, olhando o por do sol e o refugio dos pássaros. As galinhas com os seus pintinhos no terreiro cocoricavam. A comadre fazendo um café para tomar com beijo e tapioca e uma bolachinhas de “nego”.
- Como foi que ele morreu?
- Deu-lhe uma dor no estomago e vomitou sangue. Levaram para o povoado o doutor passou uns cachetes comprados na farmácia de Seu Lourenço, tomou mais não adiantou de nada e ai está o resultado morto, mortinho da silva.
- E esta cantoria é feita com todas as pessoas que morrem?
- É seu guarda. Agente do mato respeita muita a Deus e Nossa Senhora. Agente vai se chegando devarinho e em silencio e, ai as comadre começa a reza e canto a incelença. Há incelencia de hora, como o senhor já deve ouvido, á excelência da hora (quando do falecimento), da roupa (quando se veste o defunto), o da morte (que se referem os olhos, os cabelos, a boca e outras coisas mais), e da despedida. Cada excelência é cantada pelas rezadeiras doze vezes, exceto da mortalha que se canta durante o tempo necessário a vestir o defunto.
- Eu fiquei mais curioso. Conte o resto, seu Vital.
- Marinhinha traz uma pinga e para o seu guarda um café quente que a noite vai esfriar.
Dentro de pouco tempo estava sendo servido o café amargo e uma pinga.
- Veja seu Guarda, o canto agora, é de tristeza e de lamuria por um amigo perdido, aqui na terra, pois no céu eu vou encontrar com ele como diz o Padre Genuíno, nas missas no povoado.
As mulheres dentro de casa cantavam:
Seu Alvim // Te alevante // Prá vesti // A derradeira camisa // Veste esta mortalha // Que Deus te mandô.
E, continuava a cantar com aquela voz fina choramingando que se ouvia distante.
Uma incelência // foi quem mereceu // palma, capela e fulô //Vai cantá mais os anjos // Lá no reino do sinhô.
E tem mais. Por aqui nestas redondezas, nois e os parentes do defunto, se dirigem ao delegado de policia e pede licença para rezar um “quarto de defunto”. Com a permissão do delegado, vão então até a “budega” e compram oito ou dez garrafas de aguardente ruim um ou dois quilos de bolacha ruim. Passa-se a noite cantando as ladainhas e ofícios, tomando aguardente e comendo bolacha. Aqui e acolá surge um gaiato que torna o “quarto” menos pesado. Uns e outros a contar anedotas de gente que já morreu e que na hora de descer para a cova voltou à vida.
A viúva nem tempo tem de chorar.
Servindo a uns e outros, às vezes se esquece até do finado.
Lá para as tantas da noite, homens e mulheres já meio embebedados, já não sabem o que estão cantando. Há reclamações de algumas, pelo descaso que se esta fazendo com o morto. Já ninguém se entende. Só o pobre defunto é que não reclama. Quando chega certa hora o cadáver está exalando um mau cheiro danado, coloca-se uma lata cheia de brasa queimando incenso para amenizar o odor desagradável. Quando vamos chegando fazemos logo o “sinal da cruz” e a pergunte é homem ou mulher? Não é o nosso caso, pois conhecemos o Alvim. Velas de sebo ficam acesas a noite inteira. Aqueles que sabem ler mais ou menos, é que inicia a ladainhas e ofícios. Começa com o Pranto de Nossa Senhora das Dores.
Estava a mãe dolorosa // Enquanto o filho pendia // Sua alma cruel espada // Que lhe foi profetizada // Tiranamente faria.
Todos respondem, numa só voz que se ouve a distancia pelo silencio da noite
Tende misericórdia Senhor // Tende misericórdia de mim.
Terminado o Pranto de Nossa Senhora das Dores, começa a cantar Padecimento de Jesus Cristo.
É uma quinta feira meu Jesus foi para o horto // Foi fazer três horas de oração // Indo os judeus na frente de uma tropa // Indo ela nas horas do capitão.
O coro responde:
Misericórdia meu Deus, misericórdia // Misericórdia meu Deus de piedade.
Terminado esta ladinha, começa a cantar uma incelência. A incelência da Virgem do Rosário começa assim, ouça. Estão cantando agora.
Uma incelência da virgem do Rosário // Sacrários abertos o senhor saiu fora // Acompanha esta alma que vai para a gloria. (bis)
Continua assim até sete ou quinze vezes, como já lhe disse.
Noite avançada. Todos cansados de cantarem, beberem e com sono, já não têm mais força para cantar outra ladainha, e vão cantando desafinado, outra incelência, assim
Uma incelência pra ele // Desce um anjo do céu vem lhe vê // Espera ai meu anjo do senhor // Eu vou pro céu mais você.
Ao longe já se divisa a barra do dia que vem quebrando. Muitos se retiram, ficando somente a família do morto.
Já dia claro é só cuidar do enterro. A alma já foi bem encomendada com tantas ladainhas, incelência e ofícios.
Ouviu seu Guarda.
Vou me levantar e tomar um café bem forte, pois, estou de quarto caído nesta posição. Venha comigo. Ergui-me com a mão na cintura, olhei para o defunto ali estendido e me despedi da dona Zefinha.
E fui trabalhar... E nós fomos dormir na cama de mola Faixa Azul.
Nenhum comentário:
Postar um comentário