Por Nelson Rodrigues (*)
Depois do jogo América x Santos35, seria um crime não fazer
de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade [Albert]
Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e
tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes,
inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer
que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o
meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais.
Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente
perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no
em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em
derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de
alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de
se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um
adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E
o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias.
Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a
ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — “Qual é o maior ponta do
mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir.
Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém
reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as
posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o
incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x
Santos. Enfi ou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia.
Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu
lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o
carregue!” De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele
recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não.
Olha para a frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o
homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe, ao
encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra:
— sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição
minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia
mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa
estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais
driblar Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e
puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de
certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua
maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de
todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida
docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é
imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de
ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não
se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo,
insolente, que precisamos. Sim, amigos:
— aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns
pernas de pau.
Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a
fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o
rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de
humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no
time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas.
Os outros é que tremerão diante de nós.
Manchete Esportiva, 8/3/1958
------------
(*) Hoje começa a Copa do Mundo. Será que alguém terá tempo
de ler este blog? Por vias das dúvidas, reservamos algumas crônicas do melhor
cronista desportivo que o Brasil já teve, o Nelson Rodrigues, e as publicaremos
durante este período. Não sabemos ainda a frequência mas, venham ao blog e
curtam de quando em vez, tanto a saudade de seleções passadas, quanto a prosa
perfeita do Nelson. (Administração da AGD, cujos componentes também curtirão a
Copa, mesmo que ela não seja a Copa das Copas, mas, esperando que sejamos
hexa).
Nenhum comentário:
Postar um comentário