Por Nelson Rodrigues
Amigos, Julinho
começou a ser o meu personagem da semana a partir do momento em que o vaiaram.
Foi, até, se me permitem a expressão, trágico. Insisto: trágico! Quem estava lá
viu ou, por outra, ouviu. No instante em que o alto-falante do Maracanã
anunciou Julinho em lugar de Garrincha, o estádio entupido foi uma vaia só.30
Menos eu. Eis a verdade: — eu não apupei, embora preferisse Garrincha.
Parecia-me que o escrete sem o “seu” Mané era um mutilado. Na pior das
hipóteses, eu achava que o Feola devia ter posto os dois: — Julinho na
ponta-direita e Garrincha na esquerda. Mas um técnico tem razões que a razão
desconhece. Puseram só Julinho e esqueceram o Garrincha. Verificou-se, então, o
amargo e ululante desagrado da multidão. Naquele momento, ninguém se lembrou,
no Maracanã e fora dele, de quem é Julinho na história do futebol brasileiro.
Sim, amigos: — o homem andou pela Itália e quando voltou nós o olhamos, de alto
a baixo, como se fosse um gringo qualquer, ou pior do que isso, como se fosse
um perna de pau. Não há nada mais relapso do que a memória. Atrevo-me mesmo a
dizer que a memória é uma vigarista, uma emérita falsificadora de fatos e de fi
guras. Por exemplo: — ninguém se lembrava de que, no Mundial da Suíça, contra
os húngaros, Julinho fi zera um carnaval medonho. De certa feita, driblara toda
a defesa contrária para fi nalizar com uma bomba, e que bomba! O arqueiro nem
viu por onde a bola entrou. Esse gol foi uma obra-prima e devia estar numa
vitrine de turismo, para a admiração pateta dos visitantes. Pois bem: — ao ser
anunciada a escalação de Julinho, a nossa memória apresentou-nos a imagem não
autêntica, não fidedigna do craque, mas de um quase penetra do escrete.
Ao ouvir o apupo, eu fui um pouco oracular para mim mesmo.
Imaginei o seguinte vaticínio: — “Julinho vai comer a bola!” Podia parecer uma
piada e, no entanto, era uma grave profecia. Eis a verdade: — para o jogador de
caráter uma vaia é um incentivo fabuloso, um afrodisíaco infalível. Imagino que
Julinho há de ter entrado em campo crispado da cabeça aos sapatos ou, retifi
co, às chuteiras. Nunca um craque foi tão só. Era um único contra duzentos mil.
Mas, homem de brio indomável, Julinho aceitou a luta: — bateu-se contra a
multidão que o cercava por todos os lados, disposta a crucificá-lo em outras
vaias. Mas se nós tínhamos esquecido Julinho, Julinho não estava esquecido de
si mesmo. Foi Julinho em cada um dos 45 minutos, foi sempre Julinho e só
Julinho. Em inúmeras ocasiões, o que ele fez com o adversário foi pior que
xingar a mãe. E o primeiro gol, ah, o primeiro gol! Ele o marcou contra os
ingleses, sim, mas também contra os que o vaiaram. Enfiou a bola de uma
maneira, por assim dizer, sádica.
Jamais houve um gol tão amorosamente sofrido como este. A
partir da abertura da contagem, todo mundo passou a reconhecê-lo, todo mundo
admitiu para si mesmo: — “Este é o Julinho!” E era.
Ele não parou mais. Aquela multidão se arremessara contra
ele como um touro enfurecido. Pois bem: — ele agarra o touro à unha e lhe
quebra os chifres. Então, aconteceu o milagre. O ex-touro brabo, já manso,
tornou-se outro bicho. Sim, amigos: — do primeiro gol em diante, a multidão
transformou-se na macaca de auditório de Julinho. Se ele apanhava a bola, os
duzentos mil espectadores arreganhavam o riso enorme e já gozavam, por
antecipação, o que o Julinho iria fazer. Vejam vocês as ironias da vida e do
futebol: — de um momento para outro, o vaiado, o apupado, o quase cuspido
transformava-se num triunfador. E, de fato, Julinho foi grande. Nos pés de
Julinho a jogada se 78 enfeitava como um índio de carnaval. De certa feita,
come um, dois, três, quatro e quase entra com bola e tudo. Imagino que, nesse
momento, Lorde Nelson há de ter perguntado, lá do alto, para o mais próximo
companheiro de eternidade: — “Quem é esse cara?” O “cara” era Julinho, sempre
Julinho.
Assim é o brasileiro de brio. Deem-lhe uma boa vaia e ele
sai por aí, fazendo milagres, aos borbotões. Amigos, cada jogada de Julinho foi
exatamente isto: — um milagre de futebol.
Manchete Esportiva, 16/5/1959
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