Por Carlos Sena (*)
Não quero saber se você sabe do
que sinto. Eu quero saber, seu dotô, se o que eu sinto é o que o senhor sabe
que eu sinto. O nome da minha dor pode não ser o mesmo que o senhor aprendeu na
sua escola, no seu curso superior. Seu eu sinto dor na espinhela, se ela tá
caída, o senhor tem que saber dela para poder me curar. Se o senhor vai
suspendê-la com estacas, com meizinha, com remédio da farmácia ou do raizeiro,
não sei. E até sei. Pois seria muito bom, seu doutor, um chazinho, um remedinho
natural, uma massagem, uma reza. Eu lembro, seu doutor, que um dia o senhor nem
olhou pra minha cara e depois escrevinhou no seu papel que eu tinha um monte de
doenças. Como se não bastasse, ainda me deu um monte de caxete pra eu tomar
três vez ao dia ou quatro ou cinco – eu já nem me lembro mais. Como se não bastasse, ainda me mandou
pra lá e pra cá pra fazer exame de merda e mijo, quando pra minha caganeira,
seu dotô não sei se tudo isso era preciso.
Agora tô eu aqui de novo
reclamando de minha espinhela caída e o senhor me pede mais chapa que vocês
chamam de Raio X. Minha espinhela caiu seu doutô porque eu carrego água nas
costas, porque já sou de idade e tenho que trabalhar na roça. O senhor sabe o
que é roça? O senhor já viu uma galinha em “pessoa” ou só sabe o que é caldo
dela em pacotinho? Aproveitando que o senhor não olha pra mim, não me pede para
tirar a camisa e me examinar direito, lhe digo que tô com uma roncha aqui na
minha pá direita. Foi uma raiva, seu moço, porque meu filho ficou sem ir pra
escola uma semana porque não tinha o dinheiro do transporte pra ir pra escola.
Mas eu pedi emprestado e ele agora tá indo lá, na escola estudar. Mas eu já
disse a ele que não queira ser dotô assim como o sinhô é. Mas se assim mesmo
ele quiser ser, não seja assim não, olhe pro povo que a dor dói mais por conta
da solidão.
Sabe dotô, outro dia um colega
seu me perguntou se eu defeco. Depois me disse que eu estava com uma tal de
sudorese (se eu não fosse tão bem casado podia imaginar que ele tava me dizendo
que eu tinha mudado de mulher). Disse também que uma manchinha roxa que tinha
no meu pescoço era cianose. Oxe, pensei. Não tinha nada disso não no meu
pescoço, pois era apenas um periquito – aquela manchinha que a gente fica por
conta de uma noite de amor, sabe como é? Eu me arretei e me levantei e fui
embora. No caminho eu fiquei matutando, pensando que meu filho queria ser dotô.
Mas se ele quiser ser igual esse dotô que não sabe de gente eu vou fazer tudo
pra ele não ser. Nesse dia, em conversa com meu filho depois da janta, ele logo
me explicou que queria ser médico da família. Aí minha cabeça deu um nó. Que
peste é médico da família Julinho. Eu sou Julio e meu filho é o Julinho, sabe
como é. Pai é doido por ter um filho homem e esse é o meu Julinho. Ele gosta de
estudar. Às vezes eu fico com dó dele que fica estudando com a luz de vela ou
de um cadieiro alcoviteiro, sabe como é? Daqueles de feira de cidade do
interior. Pois é. Ele me falou do médico da família. Confesso que não entendi
muita coisa não, mas meu filho tava falando a verdade. Porque ele me conhece e
sabe que eu tenho sofrido muito com a minha família quando a gente adoece e
precisa do SUS. Num tô falano do SUS não, num sabe. Mas é que os douto do posto
são tudo menino fino que não gosta de pobre. Tem um médico lá no posto que todo
mundo quer ele. Mas eu não consigo marcar uma ficha com ele. Dizem que ele
demora muito com cada pessoa lá dentro da salinha. Dizem até que ele passa chá,
que ele não é contra benzedeira nem contra parteira. Quase num passa ensame.
Agora, com lombriga, ninguém com ele
fica, pois logo ele tem o remédio certo
e baratinho, baratinho. Ele até sabe de espinhela caída, de panarisso, de
pustema, de farnizin, emorróia, de calombo no braço, de tosse braba. Soube
também que ele se dá bem com o padre e com o macumbeiro e também com Dona Zefa,
a mulé que benze com uns matinho na mão. Esse médico faz de tudo pra num passar receita de
farmácia. Ele gosta das plantas, das verdura, das fruta. Tudo isso meu filho me
contou. Antes que eu lhe perguntasse ele foi logo me dizendo: “fique tranquilo
papai que eu vou ser dotô igualzinho esse aí que o senhor gosta e que não pôde
ainda se consultar com ele. Eu vou ser dotô que vai na casa do povo para que o
povo não precise ir ao posto. Nessa noite eu dormi o sono dos justos. Acordei
cedo e vi meu filho ainda estudando a luz de cadieiro, para economizar na conta
da luz. Eu já disse a ele: estude com a luz elétrica. Não se preocupe com a
conta no final do mês que eu me lasco todinho – feito maxixe: em quato, mas
você não deixa de estudar por conta dela. Sabe, filho, disse eu, a luz de
candeeiro tem uma fumaça que pode afetas suas vistas. Se isso acontecer, você
não vai poder ver melhor seus pacientes quando você for dotô de família do
jeito que cê tá dizendo pra eu...
------------------
(*) Publicado no Recanto de
Letras em 15/03/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário