Por José Fernandes Costa
Não sei se temos o pior parlamento do mundo. Mas sei que o
nosso parlamento é muito ruim. Das Câmaras de Vereadores ao Senado da
República. – O principal interesse dos parlamentares, de ordinário, é legislar
para eles próprios. – Tome-se como exemplo, o foro privilegiado, a que eles puseram nome enganador de foro especial por prerrogativa de função
pública.
Esse instituto do foro privilegiado foi criado só para
beneficiar os que cometem crimes e se abrigam numa função pública dita
relevante. Com isso, eles criam duas ou mais categorias de cidadãos: de
primeira, segunda e terceira classes etc. – Como a Constituição Federal dispõe
que todos são iguais perante a lei, mesmo sendo isso uma grande mentira, os
tais legisladores dizem que quem goza da prerrogativa é a função pública, e não
o indivíduo que cometeu o crime. – Bom artifício para acobertar crimes de toda
ordem.
Muitos dos leitores se lembram de Talvane Albuquerque e
Ronaldo Cunha Lima, para citar só dois delinquentes, há pouco privilegiados!
Pois bem: Talvane era deputado federal por Alagoas, em primeiro mandato. E
tinha uma lista de crimes nas costas, cobertos pelo manto da impunidade e do
foro privilegiado. – Ceci Cunha também era deputada federal naquele estado. No
pleito seguinte, Ceci renovou o mandato e Talvane ficou na primeira suplência
da mesma coligação de Ceci. – Aí nasceu o macabro plano de Talvane: se Ceci
morresse, Talvane assumiria na vaga dela e continuaria escondido no privilégio
do foro e na impunidade conferida pelos seus pares.
Deixando Talvane e Cunha Lima para tratarmos depois,
voltemos ao reino da indecência. Onde a coisa é tão imoral, tal como veremos a
seguir. – Havia a Súmula 394 do
Supremo Tribunal Federal (STF). Tal súmula preceituava que “cometido o crime durante o exercício
funcional, prevaleceria a competência especial por prerrogativa de função,
ainda que o inquérito ou a ação penal fossem iniciadas após a cessação daquele
exercício”. – Vejam a devassidão jurídica, quando querem beneficiar o
criminoso, mesmo após ele deixar a função pública! – Ora, mas não é a função
pública que se visa a proteger, segundo dizem eles? – Por que tamanha
malandragem, saída do próprio STF?
Contudo, 35 anos após a vigência dessa súmula, espalhando
privilégios a torto e a direito, o próprio STF decidiu extingui-la, por
unanimidade, em sessão plenária, no dia 30.4.1997, atendendo a uma questão de
ordem levantada, no início de um julgamento, onde o réu foi um ex-deputado
federal. – Eram outros os juízes do Supremo. E o ministro Sidney Sanches teve
atuação preponderante na derrubada da escabrosa súmula.
Disse o ministro Sanches, naquela ocasião: - “A prerrogativa de foro visa a garantir o
exercício do cargo ou do mandato. E não tem por que proteger quem o exerce. E
menos ainda quem deixa de exercê-lo.”
Assim, restou consignada pelo STF, a decisão de que,
deixando o cargo definitivamente, seja qual seja o motivo, seu ex-titular não
terá direito ao privilégio de ser processado e julgado em órgão jurisdicional
diferente daquele que teria qualquer outra pessoa do povo.
Mas, como os nossos parlamentares e afins cometem muitos
crimes, ficaram assustados com o cancelamento da Súmula 394. Assim, tentaram
reaver parte dos privilégios. Foi o que ocorreu com a aprovação da Lei 10.628,
pelo Congresso Nacional. Esta foi sancionada por Fernando Henrique Cardoso, ao
apagar das luzes do seu governo. E quando se acendiam as luzes do Natal. Isto
é, no dia 24.12.2002 essa lei espúria foi ratificada pelo presidente da
República, faltando, apenas sete dias para o término do seu governo.
E o que dizia a Lei 10.628? – Alterava o art. 84 do Código
de Processo Penal, adicionando-lhe dois parágrafos. O caput do art. 84 não
sofreu alteração digna de nota. Mas atentem para os dois parágrafos
introduzidos:
§ 1º - A competência
especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente,
prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a
cessação do exercício da função pública.
§ 2º - A ação de
improbidade, de que trata a Lei 8.429, de 2.6.1992, será proposta perante o
tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou
autoridade, na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função
pública, observado o disposto no § 1º.
Face ao disposto no art. 5º da Constituição de 1988, a
inconstitucionalidade desses parágrafos é patente. Fere de morte o princípio da
isonomia, assegurada esta no caput do art. 5º da CF. – A propósito, o jurista
Dalmo de Abreu Dallari assim se manifestou, quando esse monstrengo ainda era
projeto de lei: - “Embora seja
escandalosamente inconstitucional, esse projeto foi estranhamente aprovado pela
Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, onde se supõe que
haja conhecedores da Constituição.”
Foi sancionada a lei, como vimos acima. Pela gritante
aberração jurídica, três dias após, em 27.12.2002, a Associação Nacional dos
Membros do Ministério Público ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade
(Adin). Entretanto, só em 15.9.2005 houve a apreciação final da Adin e a Lei
10.628/2002 foi revogada, cancelando, assim, os dois parágrafos acima expostos.
Vejam outra face negra dos privilegiados: se um promotor de
Justiça de São Paulo matar um cidadão sergipano, em Aracaju, ele vai responder
pelo homicídio no Tribunal de Justiça de São Paulo. – Não é de se esperar que
ele respondesse ao processo no Tribunal de Justiça de Sergipe? Já que Aracaju
teria sido o local do crime e onde seria o domicílio do réu. – Esse mesmo
artifício serve para os prefeitos.
Assim, outro exemplo hipotético: um elemento de outro estado
é acusado de participar do assassinato de um desafeto em João Pessoa (PB). E
está respondendo ao processo em João Pessoa, que é o domicílio do réu. – Pouco
tempo depois, esse indivíduo se elege prefeito de uma cidade qualquer. – Aí, então,
o processo a que ele respondia vai para o Tribunal de Justiça do estado onde
ele é prefeito. E ainda poderá levar os possíveis coautores do homicídio para o
foro privilegiado! – Num raciocínio honesto, a lei não deveria
ordenar que o processo saísse do juízo de 1ª instância (Tribunal do Júri) para
o Tribunal de Justiça do estado onde se deu o crime? E preceituar, claramente,
que só o detentor do cargo público é que teria o foro privilegiado? Tanto que
se este for isentado de culpa, no decorrer do processo, os demais voltarão para
o juízo de origem! É por essas e outras libertinagens que o Congresso se
desmoraliza mais a cada dia. – Entretanto, o parlamento já é pervertido e está
se lixando por se corromper mais e mais.
Notem a monstruosidade: no caso hipotético a que
me referi acima, havendo concurso de pessoas, estas poderão, sem função pública, também,
utilizarem-se do foro privilegiado. É ou não é um escárnio? – Imaginemos que o
ex-jogador de futebol que ordenou o assassinato de Eliza Samudio houvesse sido
eleito prefeito de Vila Velha (ES). Com isso, o processo que corria no juízo de
Contagem (MG), teria ido para o Tribunal de Justiça de Vitória (ES). – E, de
quebra, iriam os comparsas do dito ex-goleiro. Todos criminosos frios e de alta
periculosidade, aí incluído nesse o tal ex-jogador. – É fácil digerir essas
práticas perniciosas?/.
Nenhum comentário:
Postar um comentário