“O perigo das
decisões precipitadas
Por Fernão Lara
Mesquita
A onda nacional
de repúdio que o vexame do Roda Viva com Jair Bolsonaro provocou teve, afinal,
um subproduto positivo. Poupou o Brasil do que poderia ter sido o vexame da
GloboNews se ela tivesse chegado virgem e com o ímpeto em que vinham vindo a
maior parte das redações. Na noite da sexta-feira (3/8) nenhuma agressão lhe
foi dirigida e quase tudo lhe foi perguntado no tom que convém.
O vexame esteve
nas respostas.
O fenômeno
Bolsonaro é independente de Jair Bolsonaro. O candidato transformou-se no
valhacouto de todos os exilados do Brasil com voz. Na sua praia acabaram por
encalhar os censurados pelos ditadores da “correção política”, os resistentes
ao terrorismo moral, todos quantos as subideologias fabricadas repulsam, os
rebelados contra a sistematização da mentira, os que se recusam a não ver o que
seus olhos enxergam, os que insistem em educar eles próprios os seus filhos, os
condenados à não existência midiática, os que persistem no index dos “ismos”
proibidos.
O liberalismo
de Paulo Guedes também foi lá bater fugido da censura e logo passou de
resgatado a resgatante, tal é o vazio que encontrou. No seu rastro vieram os
cacos da classe média meritocrática em extinção e os exauridos todos do welfare
state moreno com sotaque francês, a única outra alternativa à venezuelização
que se apresenta.
Mas tudo isso
aconteceu mais pela precisão desses desvalidos que pela boniteza do “candidato
honesto” que veio até à véspera desta fugindo de debates e de entrevistas
montado apenas em peças editadas de WhatsApp.
Foi quase por
acaso, aliás, que ele fez saber aos espectadores da GloboNews que, sim, a seu
ver são também honestos não só o seu particular auxílio-moradia como também os
privilégios todos dos marajás de farda. Ele nada mais disse porque não lhe foi
perguntado, o que é muito pior, mas a avaliação abrange também, “por isonomia”,
os dos marajás sem farda.
O déficit
acumulado pela previdência do setor público de 2001 a 2015 foi de R$ 1,3
trilhão para atender 1 milhão de aposentados! O déficit da previdência privada,
atendendo a 33 milhões de aposentados, no mesmo período, foi de R$ 450 bilhões.
A média das aposentadorias do setor privado é de R$ 1,5 mil. No setor público,
a média é de R$ 9 mil no Poder Executivo, o pedaço do marajalato mais sensível
ao voto, de R$ 25 mil no Legislativo, R$ 29 mil no Judiciário e acima de R$ 30
mil no Ministério Público.
Quase todos os
Estados brasileiros, responsáveis pela segurança pública dos 63 mil
assassinados por ano, pela saúde e pelo saneamento dos reassolados pelas pestes
medievais e pela educação dos ladrões de medalhas de Matemática gastam mais
hoje com aposentados que com funcionários na ativa. É a mais vasta máquina de
transferência de dinheiro de pobres para ricos jamais criada na face da Terra e
a trajetória do déficit põe uma explosão de proporções telúricas imediatamente
além da próxima curva.
Mas isso
continua sendo um não problema. Não entra em pauta no debate presidencial.
Este
desinteresse da imprensa (há exceções raras, inclusive na televisão) pelo
assalto à riqueza da Nação com a gazua da lei; este acobertamento do estupro
coletivo do Brasil pelas corporações que tomaram o Estado de assalto é a última
coisa que une esquerda e direita no Brasil. Essa cumplicidade mole, silenciosa,
acovardada e com medo da vida do “país com tetinhas” para com o “país com
tetonas”, que irmana partidos e conecta os extremos do espectro ideológico é
que empurra os nossos muitos rios de janeiros para o niilismo da desesperança e
para a guerra. Mas foi o único ponto em que as visões de Bolsonaro e da banca
examinadora da Rede Globo não geraram faísca por baixo da polidez com que tudo
transcorreu.
“Nem os
quilombolas, nem ninguém tem direito de ter comida servida na boca.”
“Nenhum
centímetro mais de terra indígena.”
“Gays, sim, kit
gay não.”
“Brancos e
negros, ricos e pobres, gays e heteros, somos todos brasileiros.”
“A história do
Brasil foi a que foi, não a que é narrada.”
O Brasil está
tão desesperadamente carente que tem ejaculações precoces com a mera declaração
do óbvio em público. Mas, de parte a parte, faz-se um enorme barulho com o que
não tem a menor importância para manter abafado o que tem toda.
Jair Bolsonaro
e Donald Trump são filhos da mesma negação, só que Trump é arrogante e
Bolsonaro é humilde, Trump sabe o que é capitalismo - de “laços”, vá lá - e
Bolsonaro nem isso. Há uma enorme diferença certificada por uma obra concreta
na capacidade de formulação, de montagem de equipe e de execução entre Jair
Bolsonaro e Geraldo Alckmin. Mas, assim como o “candidato honesto” ladra mas
não morde, a democracia da vaidade, aristocrática e sem povo, do PSDB não chega
nunca à penetração. Nenhum dos dois está contra o “sistema”, estão apenas fora
dele e muito desgostosos com isso. Nenhum dos dois propõe reformas que mudem a
essência ou a direção do que quer que seja, ambos contentam-se com “ajustes”,
com meras regulagens de velocidade, com vender anéis para preservar os dedos.
O Brasil terá
de ir ainda mais fundo no Inferno antes de sermos arrastados de volta ao
purgatório. Tiradentes foi o último momento em que estivemos parelhos com a
ponta mais moderna do pensamento político. Desde que fomos invadidos pela corte
e viciados nas blandícias da “aquisição de direitos”, nunca mais acertamos o
passo. É sempre o mundo que acaba nos arrastando para as modernidades depois
que elas ficam velhas.
Nós nos
aferramos às nossas escravidões e somos sempre os últimos a aboli-las. Quem
está dentro não sai e quem está fora sonha em entrar. Estamos sempre duas ou
três revoluções atrasados. Só somos “avançados” no papo furado. Privilégio é o
nosso negócio. O favelão continental que se exploda.”
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AGD
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