“A política
como pornochanchada
POR JOSÉ
NÊUMANNE
A República
brasileira começou numa parada militar que se tornou um golpe. Quando o desfile
acabou defronte ao Arsenal da Marinha, o médico republicano jacobino José Lopes
da Silva Trovão foi instado pelo povo, que se recolhera a um botequim, a pagar
um trago. A conta somou 40 mil réis e o paladino só tinha 11 mil réis.
Resultado: o taverneiro arcou com todo o prejuízo da celebração. A piada
pronta, contada no clássico A Formação das Almas: O Imaginário da República
Brasileira, do acadêmico José Murilo de Carvalho, revela como ela teve início
num porre com pendura.
Até hoje, às
vésperas da parada cívica das eleições gerais de outubro (a um mês de completar
seu 129.º aniversário), o prejuízo continua sendo arcado pelo empreendedor
disponível para financiar a embriaguez geral. Os 40 mil réis bancados pelo
taverneiro em novembro de 1889 chegaram ao astronômico déficit público nominal,
isto é, a diferença entre receitas e despesas (incluindo os juros da dívida
pública), que alcançou a expressiva quantia de R$ 562,8 bilhões. Enquanto o
déficit primário (receitas menos despesas, excluindo os juros) na última virada
do ano foi de R$ 155,8 bilhões. Em janeiro, esperava-se que o príncipe
escolhido pelo povo mataria esse sapo imenso com uma paulada certeira.
O último fim de
semana, porém, jogou por terra as ilusões de que um presidente legitimado pelo
voto daria um jeito nas contas públicas agônicas. E usaria toda a força obtida
nas urnas para avançar na guerra popular contra a corrupção endêmica que mata o
País de inanição moral, tuberculose cívica e tumores malignos de despudor. A
campanha presidencial está nas ruas e nenhum pretendente ao trono imperial da
República cínica gastou um grama de sua saliva para apresentar um plano
racional para reduzir a máquina pública devoradora de recursos, pôr fim a
privilégios herdados das priscas eras imperiais e impor um garrote de lei e
ordem para conter a sangria da guerra civil da violência urbana e rural. O povo
esperançoso está é órfão.
O pior é que,
em nome desta Nação esfolada, os políticos encarregados de legislar e executar
e os juízes aptos a julgar promovem um espetáculo grotesco que não pode ser
instalado num picadeiro de circo mambembe por lhe faltarem caráter e pudor, mas
sobrar profissionalismo. As comédias do teatro de revista, produzidas por
Walter Pinto, e que regalavam o caudilho Vargas, que adorava piadas a respeito
dele próprio, são lembranças do pundonor de um passado distante. As aventuras
mirabolantes de João Acácio Pereira da Costa, O Bandido da Luz Vermelha,
registradas no filme de Rogério Sganzerla, são matéria de contos infantis
edificantes, se comparadas com os atuais escândalos de gatunagem.
O
ex-sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva chefiou a quadrilha que esvaziou os
cofres da República pela qual Lopes Trovão lutou e bebeu, conforme os
procuradores que o acusaram, o juiz, os desembargadores e ministros que o
condenaram e as evidências dos fatos históricos. À frente de um Partido dito
dos Trabalhadores (PT), esse cavalheiro cumpre pena de 12 anos e 1 mês por
corrupção e lavagem de dinheiro numa tal “sala de estado maior” da
Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. Ao título de presidente mais
amado da História ele adicionou o de presidiário mais celebrado e disputado do
inferno prisional, onde, aliás, não vive.
Numa das
inúmeras tentativas de garantir um mínimo de limpeza ao exercício de cargos
públicos, a Constituição de 1988, que ele próprio assinou, criou a inovação das
leis de iniciativa popular. A mais célebre de todas – a Lei da Ficha Limpa –
chegou ao Congresso, que a aprovou e foi sancionada por sua mão direita,
proibindo desde então candidatura de qualquer cidadão condenado em segunda
instância, que é o caso dele. No entanto, sua mão esquerda a rasga, exigindo o
absurdo de autorizar o signatário da norma legal a nela escarrar.
A República –
que, como Almir Pazzianotto Pinto lembrou, em artigo nesta página, O puxadinho
da Constituição, garantiu “pensão vitalícia a D. Pedro II” e autorizou “a
compra da casa onde faleceu Benjamin Constant, destinada à residência da viúva”
– patrocina hoje a farsa da egolatria de um condenado por furto amplificado.
Que outro nome pode ser dado à convenção do PT em que o aplaudido ator Sérgio
Mamberti leu um texto do presidiário, que surgiu em imagem e som na exibição de
um vídeo?
Esse
espetáculo, aliás, foi precedido por outro show, em que dois ídolos da música
brasileira e da resistência à ditadura militar, Chico Buarque e Gilberto Gil,
usaram uma canção, Cálice, com inspiração bíblica e símbolo da luta contra a
censura, para tratar um político preso como se preso político fora. E precedeu
o mais espetacular passa-moleque da tradição de engodos desta República dos
desfiles: o lançamento do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad para
substituir na chapa o poderoso chefão preso, como vice, que terá a vice do
vice, Manuela d’Ávila. Arre!
Tudo pode
parecer uma pornochanchada da Boca do Lixo, mas é muito pior. Trata-se de uma
tragédia permitida pela democracia de facilidades, fundada por um truque em que
a classe política usurpou a casa de leis para inventar a farsa do Congresso
constituinte, como se cada voto em 1986 valesse por dois. E pior: para nada.
Pois a
candidatura duplamente fora da lei de um apenado e ficha-suja não sobrevive
apenas pela fé no torneiro mecânico do ABC que virou o beato Luiz Conselheiro
da imensa Canudos em que o Brasil se está tornando. Mas também pelo oportunismo
rastaquera de quem o usa para se dar bem na “vida pública”. E de alguns
figurões do Judiciário, como o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luiz
Fux, que inventou a condenação prévia sem efeito algum no despacho em que
arquivou o processo que a pediu. Pensando bem, a comparação é injusta para os
filmes da Boca do Lixo, que ao menos não furtavam seu público fiel.”
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AGD
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