“Como
reencontrar o caminho do gol
POR FERNÃO LARA
MESQUITA
É o que se viu
na Copa do Mundo. Gol, hoje, só de bola parada em jogadas ensaiadas à exaustão.
Ou, então, em função de velocidade. De contra-ataque, de lançamentos longos e
precisos, de rapidez de saída de bola. De frente, furando retrancas de
gigantes, é praticamente impossível. A raça humana evoluiu. O biotipo é outro.
O campo ficou pequeno, atravancado de tão ocupado. Tapeação, então, nem pensar.
Acabou o espaço tanto pro amadorismo quanto pra malandrice.
Na competição
econômica é a mesma coisa e há muito mais tempo que no futebol. A velocidade de
resposta à mudança é a condição para a sobrevivência no jogo global.
Os Estados
Unidos viraram o que são porque durante um século inteiro só eles tinham essa
agilidade num mundo inteiramente engessado pela burocracia e pelo imobilismo
que sempre sustentaram todo esquema de privilégio. É verdade, eles começaram do
zero. Não tinham uma realeza pra revogar. Nenhum rei inglês com sua corte foi
ser imperador por lá. A chave pro esquema deles funcionar foi garantir a
fidedignidade da representação. Levou mais de 2 mil anos pra inventar.
Primeiro, trocar o rei pelo voto da maioria, à grega. Depois, quando a democracia
deixou de caber numa praça, eleger representantes para governar, à romana.
Então, fazer o governo controlar o governo com três poderes independentes. E,
finalmente, armar a mão dos representados para submeter de fato a ação dos
representantes à vontade deles e picar o todo em pedacinhos para poder ir
consertando cada parte no seu tempo e na sua velocidade sem ter de parar tudo a
cada passo.
Mudaram o poder
de dono e lá se foram, com recall, referendo e iniciativa, livres para corrigir
todo erro que se apresentasse como erro, fazer eleições especiais para trocar
uma peça aqui, eliminar uma lei defeituosa ali, instalar um novo mecanismo
sempre que sentissem que era necessário, enquanto o resto do mundo de
democracia tinha só o som, seguia atravancado de eleição marcada em eleição
marcada, perseverando em erros petrificados na constitucionalização de
privilégios, tropeçando a cada passo em juízes ladrões e políticos surdos
todo-poderosos.
Velocidade de
mudança! Capacidade de se adaptar, como sociedade, a uma realidade cada vez
mais mutante, respeitando as diferenças entre as suas partes. Livres o bastante
para estimular a criatividade a ponto de produzir ciência, mas armados da
condição de se adaptar às consequências da produção de ciência. Mandando e não
sendo mandados.
Hoje a China
está levando uma vantagem momentânea porque os ditadores – agora à frente de
esquemas de capitalismo de Estado – têm mais velocidade de mudança que a
democracia. Mas é uma vantagem relativa. Rápido demais pra ser seguro. Eles
mesmos, no fim da linha, convertem o que ganham em títulos do Tesouro ianque
porque sabem que o presidente americano é o único do mundo que não pode fazer o
que quiser na hora que quiser. Porque sabem melhor que ninguém que segurança
jurídica, o único antídoto contra a súbita liquefação de toda e qualquer
riqueza conquistada, é as “majestades”, os “guias geniais de povos”, os “the
guy”, as “excelências” e os “meritíssimos” da hora estarem estritamente “under
God and under the law”. Ou vale o fato e não a “narrativa” e a lei é igual pra
todo mundo, ou não dá pra ter controle de nada.
Todo o aparato
da democracia, aliás, não é senão uma ferramenta evoluída para facilitar a
mudança. A gente elege representantes, tem um Legislativo, um Judiciário e um
Executivo funcionando dentro de regras de todos conhecidas para poder ir
mudando as coisas na medida da necessidade sem ter nem de entregar a direção do
nosso destino para um déspota todo-poderoso nem de fazer uma guerra entre os
interesses contrariados a cada vez que for preciso reajustar as coisas. Se
fosse pra tudo ficar sempre igual não precisava de nada disso. Era o que
acontecia no sistema feudal, em que uma minoria que tinha tudo era sustentada
por uma maioria que não tinha nada e, como só ela mandava, ninguém queria mudar
nada.
No Brasil tudo
está errado porque a representação do país real no país oficial está
falsificada. Semana passada este jornal mediu. Temos 25% do Congresso Nacional
constituído por funcionários públicos. Eles são 11,5 milhões de pessoas ou 5,5%
da população, mas a sua representação é cinco vezes maior que a sua dimensão
real. E o fato de os outros 75% de congressistas não serem funcionários
públicos com carteira assinada antes de se eleger não quer dizer que deixarão
de apoiar os interesses deles depois. Primeiro, porque são convertidos em
funcionários públicos para efeito de desfrute de todos os privilégios que se
autoatribuem assim que são eleitos. Segundo, por medo da retaliação implacável
dos que já estavam lá antes deles de que é alvo todo mundo que ousa fazê-lo.
Mas principalmente porque estão livres de qualquer consequência se traírem o
seu eleitor, que tem todos os direitos sobre o seu representante cassados assim
que deposita o voto na urna.
Que descrição
mais perfeita poderia ser feita de uma ditadura?
Nós vivemos
tempo demais e confortavelmente demais dentro dessa mentira. Nossas escolas
foram destruídas. A consciência crítica da nação não foi apenas “aparelhada”.
Darwin deu quatro, cinco, dez voltas no relógio. Uma raça foi apurada dentro
dela. Sobrou muito pouco mais que os ratos e as baratas.
Só a vivência
da virtude cria virtude. Só a possibilidade de vitória da virtude engendra a
virtude. No sistema que temos isso é impossível. E não há pacote de reformas
que conserte isso de uma vez. Nós somos muitos brasis. Fomos todos humilhados e
ofendidos, mas fomos afetados de forma diferente pela ação dessa força
desviante tão persistente. Cada Brasil tem as suas carências e as suas
prioridades. E só cada um deles sabe por onde começar. Nós precisamos é mudar o
jeito de fazer. Parar de sermos mandados e passarmos a mandar. E, então, ir
refazendo tudo, pedaço por pedaço, na velocidade que cada Brasil avaliar como
possível.”
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AGD
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