“Pior para os fatos, pior para a
política
Por Eugênio Bucci
Fatos não pensam. Logo, não podem
ser tomados como critério definitivo da verdade. Na conduta humana, ao lado do
juízo de fato (da constatação empírica e racional dos dados verificados na
realidade), há de ter lugar também o juízo de valor (que envolve interpretações
e escolhas inspiradas por noções éticas), seja na vida prática de todo dia,
seja na política.
Nada mais óbvio, certo? Sim, nada
mais óbvio. Não obstante, para que fique mais nítida a adversidade presente, o
óbvio vai cumprir aqui uma função de esclarecimento. Sigamos, então, um pouco
mais com o nosso óbvio.
Os que proclamam pautar suas decisões
nos fatos, apenas nos fatos, fazendo parecer que suas conclusões são
decorrências matemáticas, necessárias e inevitáveis de uma leitura objetiva dos
eventos da natureza e da vida social, flertam com uma forma rebuscada de
fraude, mesmo que não tenham a intenção de trair a confiança do interlocutor.
As decisões que podemos tomar no plano da consciência – por mais frágil e
instável que seja a membrana da consciência a revestir as deliberações de que
somos capazes – implicam obrigatoriamente aspirações, desejos, identificações
inconscientes, crenças e princípios morais dos quais mal nos damos conta. Em
suma, os caminhos que cada um elege para si e para a comunidade encerram
compromissos que, além da constatação dos fatos, guardam em si a pretensão de interferir
na sucessão desses mesmos fatos. O óbvio, nada mais que o óbvio: a ambição (ou
direito legítimo) de alterar a ordem dos fatos (ou de mudar o mundo) tem,
portanto, parte com o imponderável, com a incerteza, de tal forma que quem
escolhe aposta. Se os fatos não pensam, precisam do sujeito que pense para
sobre eles agir.
Ponto. Fim das obviedades.
Prossigamos agora com a adversidade.
Como os observadores mais atentos
vêm apontando, vivemos um agravamento agudo da desvinculação entre o discurso
político (incluído aí o agir) e o domínio dos fatos. Paixões como o ódio, a
inveja, o ressentimento (e suas manifestações mais superficiais, como a
xenofobia, o sexismo, o preconceito de classe, o racismo) subiram um ou dois
degraus na hierarquia das configurações partidárias e no ordenamento do poder.
A idolatria e a fúria tomam espaços que até outro dia contavam com a presença
de alguma forma de discernimento crítico, ainda que rudimentar, de tal forma
que comportamentos políticos assumem o aspecto de fervor religioso.
É a era do “pós-fato”,
caracterizada pelo recrudescimento dos chamados “populismos”. Há exemplos
profusos à esquerda e à direita: chavismos, trumpismos, bolsomitos, etc. Não é
na coloração ideológica que essas novas e múltiplas formas de populismo se
distinguem. O que as distingue é o abandono deliberado da modestíssima verdade
factual como lastro da retórica. O populismo contemporâneo constrói-se em
ataque permanente contra o domínio dos fatos: não se trata apenas de substituir
o juízo de fato pelas crenças abiloladas, mas de substituir a lógica interna da
política pela lógica interna das seitas fanáticas, mantendo mais ou menos
intacto o invólucro de aparência política.
Não é por acaso que os papéis de
igrejas e partidos se embaralham em tantos níveis no Brasil. Não é por acaso
que o princípio democrático da separação entre Igreja e Estado se tenha perdido
numa esquina da nossa História recente. Temos hoje no País líderes religiosos
que encabeçam projetos explícitos de poder, assim como temos líderes políticos
que se acreditam predestinados e ungidos por forças divinas. Durante muito
tempo os analistas tratavam de encontrar explicações políticas para fenômenos
religiosos. Agora, os mesmos analistas recorrem à anatomia das religiões – que
não têm base nos fatos, mas na fé – em busca de analogias para o modo de
proceder de siglas partidárias.
Quando uma dirigente partidária
afirma que “para prender Lula (a Justiça) vai ter que matar muita gente”, deixa
ver as fibras do fanatismo. De outro lado, a diferença de tratamento judicial
que mereceram Dilma Rousseff e Michel Temer desvela um aparente descompromisso
da política e da Justiça com o domínio dos fatos: Dilma foi destituída em
função de uma acusação que transitava do barroquismo jurídico às abstrações
mais intangíveis, condenada por um crime de responsabilidade que era difícil de
entender e mais difícil ainda de explicar; quanto a Temer, flagrado numa
gravação para lá de comprometedora, com ex-ministros e ministros que fazem fila
para se sentar no banco dos réus, voa, incólume como um anjo, acima do alcance
do Judiciário, sem que ninguém se preocupe em entender e muito menos em
explicar o que quer que seja. A sensação de que os tribunais se permitem
golfadas de partidarismo se adensa, enquanto o cenário político se inflama.
Há outros sinais de cisão entre a
política e os fatos. O furor com que os seguidores fiéis do ex-presidente Lula
se apressam a dizer que não há provas cabais contra ele no caso do triplex – e,
em se tratando de um processo ainda não transitado em julgado, não está
descartada a hipótese de que tenham razão – obscurece o fato (outra vez o fato)
de que as evidências políticas e práticas de que ele usufruiu favores de
empreiteiras para custear seu conforto pessoal (no famigerado sítio de Atibaia,
por exemplo) constituem um embaraço ético de todo tamanho. Por que ninguém
entre os seguidores fiéis se incomoda com isso? Por que seguem seguidores fiéis
mesmo depois de tantos e tão graves sinais expostos de conflitos de interesse?
Será que, para os seguidores, ainda que venha a se provar juridicamente
inocente, Lula ainda é politicamente impoluto?
Enquanto uns e outros, de um lado
e de outro, dissolvem o nexo entre política e fato, a regra do jogo democrático
perde consistência, os extremismos se aprofundam e o debate público perde
fertilidade.
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AGD comenta:
Quando terminei a leitura do
texto acima, fiquei pensando se deveria comentá-lo ou não. Que ele tem muitas
obviedades, é óbvio. Quem ele não é simplório, também é óbvio. O que me deixa
quase sem assunto, se não aceitasse isto.
E é aceitando que digo ser o PT e
sua ideologia maluca de fazer deste país uma grande Cuba, e agora, mais uma
grande Venezuela, pois Cuba já está quase se tornando capitalista, que deu
origem a esta bagunça recente. E a luta continua “companheiros”, como continua a
dizer o Lula, a Dilma e Gleisi Hoffmann.
Esta última deveria já está presa
se a Justiça levasse em conta todos os fatos. E agora mais um de terrível
importância: Incentivo a uma quase guerra civil entre os ignorantes dos fatos e
os que querem justiça.
Ela simplesmente disse que “vai ter que matar gente”. Pode isto, Arnaldo?
Todos concordam que a política
tem suas nuances que envolvem valores, e muitos valores, além dos fatos. Mas,
como dizia o Einstein, o físico relativista: “Se os fatos não se encaixam na teoria, modifique os fatos.” Substitua-se teoria por “valores” e teremos o quadro correto do Brasil de
hoje.
Eu, usando meus valores e os fatos,
acho que o Lula, já condenado e com justiça, continuará condenado e será preso.
Se isto não acontecer, que se modifiquem os fatos, pois os meus valores estão corretos.
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