“Virou a maré
Por William Waack
A Lava Jato foi colocada na casinha, com coleira e tudo.
Perdura como fenômeno político e social, mas o ímpeto, o alcance e a
abrangência foram severamente limitados. Não se trata de aplaudir ou detestar
esse fato. Apenas, reconhecê-lo.
Os limites são sobretudo políticos, assim como a atuação da
Lava Jato foi, desde sempre, uma atuação política. O embate jurídico e
doutrinário sobre a conduta de juízes e procuradores – se cometeram crimes ao
combater crimes – é um importante capítulo em si. Ocorre que a complexidade e o
lado “técnico” desse relevante debate às vezes ofuscam o principal.
O fundamento político da atuação da Lava Jato nasce de uma
ideia: a de que a sociedade brasileira é hipossuficiente, isto é, não consegue
se defender sozinha dos abusos cometidos contra ela por corruptos, malfeitores
ou mesmo agentes do Estado. Ela precisa da proteção exercida por gente “de
fora”, pois o sistema político é intrinsecamente corrupto, seus integrantes têm
escassa representatividade e só pensam em seus interesses próprios, ainda que
lícitos.
Essa narrativa descrevendo a sociedade brasileira já
circulava há décadas, mas foi sobretudo a ascensão do PT ao poder que deu a ela
um caráter evidente e objetivo nos fatos da realidade. Outros partidos
corruptos já haviam ocupado posições de mando e controle, mas foi a pretensão
hegemônica do lulopetismo que reforçou nos expoentes da Lava Jato a convicção
de que estavam diante não só de crimes pontuais, mas, sim, da perpetuação da
podridão.
E o que é pior, na visão desses agentes de Estado: as forças
no poder, especialmente as políticas, tinham instrumentos inesgotáveis para se
defender e manter seus privilégios, especialmente os instrumentos jurídicos e
parte de uma importante instituição, o STF. Junto de uma inédita crise
econômica e social, a Lava Jato cresceu como expressão de revolta e indignação
dirigidas ao centro das instituições da esfera política que formam o sistema de
decisões e o próprio governo.
Combinados, os vários elementos (conversas hackeadas,
entrevistas, participação em redes sociais, livros de memórias) de que se
dispõe sobre como os expoentes da Lava Jato avaliavam a própria atuação deixam
claro que eles se julgavam participantes de uma luta política no seu sentido
mais amplo. E que se não destruíssem as figuras de proa do adversário – Lula,
por exemplo – apenas deixariam aberta a possibilidade de que os oponentes se
reaglutinariam.
Isto acabou acontecendo, mas não pelas razões que os
procuradores da Lava Jato temiam. O limite político imposto à atuação deles
veio em primeiro lugar do fato do principal objetivo ter sido alcançado: o PT
foi apeado do poder. Em segundo, pelo fato de forças políticas que não são
corrompidas nem estão precisando escapar de investigações terem se convencido
de que não são os “de fora” que vão tomar conta das decisões das esferas
políticas. Essas forças estão em partidos (portanto, no Legislativo), nas
Forças Armadas, no STF, no mundo das elites empresariais, no Palácio do
Planalto, em correntes nas redes sociais, na academia (especialmente ligada ao
Direito), até mesmo na figura do novo PGR.
Significa que Lula e seus comandados vão se beneficiar
desses limites políticos à Lava Jato? Dificilmente. Como nenhuma outra ação, a
Lava Jato escancarou o roubo e seu impressionante alcance, revelou as entranhas
do patrimonialismo, do capitalismo de Estado à la brasileira, expôs o cinismo
de seus dirigentes nos setores público e privado e, como declarou o novo PGR,
Augusto Aras, as formalidades processuais que foram respeitadas ou não em
julgamentos “não podem substituir a verdade dos fatos”.
É possível que o “ímpeto” punitivo da Lava Jato se
“institucionalize” – um freio à atuação “política”, para desgosto de
autointitulados revolucionários em várias colorações. Mas é inegável que a maré
é outra.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário