“Política e Previdência
Por Denis Lerrer Rosenfield
Plutarco, em seu livro sobre a
vida ilustre dos nobres gregos e romanos, discorre sobre Demóstenes e Cícero,
ressaltando o uso da oratória, em que o significado das palavras ganha
imediatamente uma conotação política no espaço público. Trata-se não apenas do
sucesso individual de cada ator, mas de como seu discurso impacta a vida
coletiva. Estamos, hoje, por demais acostumados com palavras que apenas
procuram enganar o próximo, encantando a multidão para conquistar votos, como
se a existência do próprio Estado não estivesse em questão.
Para Plutarco, a verdadeira
oratória seria a ancorada no bem público, sem o que o próprio discurso político
cairia no vazio. O bem coletivo balizaria os discursos de todos, sendo uma
espécie de limite, para além do qual o próprio espaço público poderia tornar-se
inviável. A política, em sua acepção nobre, seria uma atividade orientada para
o bem da República, de modo que a oratória não deveria transmutar-se numa
demagogia cuja característica principal seria o proveito próprio de uma facção
ou de interesses meramente particulares.
Surge aqui, com nitidez, que a
oratória e a política em geral deveriam ser moralmente orientadas, na medida em
que têm como limite o bem público. A política inscrita no Estado, tal como se
estrutura segundo os seus valores e princípios, ancora-se em valores de
justiça, retidão e bem comum. Daí não se segue, porém, que a política se faria
num reino de anjos, mas num espaço caracterizado pela violência, pela intriga e
pela traição. Eis o seu campo específico. Seria, pois, pela política voltada
para os valores, orientada segundo o bem do Estado, que as intrigas e a
violência poderiam ser superadas. Por outro lado, a ação oratória que se
compraz consigo mesma, sem parâmetros coletivos e morais, soçobraria no pântano
que poderia comprometer o próprio Estado.
Atualmente, uma forma de
comprometimento da própria existência do Estado consiste na insolvência fiscal,
na inflação e em dívidas públicas crescentes. A retórica, no entanto, para os
atores políticos mais irresponsáveis reside em ocultar esses problemas como se
fossem secundários ou pusessem em causa supostos direitos, resultados que
seriam de uma política “liberal”. Ora, sem um Estado saudável, solvente e
responsável não há direitos que possam ser assegurados. Compromete-se a própria
existência do Estado quando a política perde o seu norte.
Não se pode abordar o processo
econômico como se fosse um fenômeno de tipo natural, independente de decisões
que o presidem. Isso implicaria não atentar para o fato de que a organização ou
desorganização das finanças e o equilíbrio ou desequilíbrio fiscal resultam de
escolhas políticas, equivocadas ou não. Julgar que uma economia desorganizada,
enfrentando sérios problemas fiscais e de dívida pública, poderia deslanchar
por mero ato milagroso de crescimento ignora o fato crucial de que tal
desorganização é, ela mesma, fruto de decisões políticas equivocadas, que, por
sua vez, só podem ser corrigidas por outras decisões, desta vez acertadas.
Processos econômicos são cortados por decisões políticas que põem em cena outra
ordem de fenômenos.
O problema propriamente político
de uma reforma da Previdência ou da dívida pública reside, também, em como uma
decisão responde a eleitores presentes que escolhem em lugar de cidadãos
ausentes, menores ou não nascidos, que deverão, no futuro, arcar com as
consequências da decisão. No sistema previdenciário brasileiro de repartição,
em que os trabalhadores da ativa pagam pelos aposentados, a questão entre
gerações é posta com acuidade.
De um lado, no presente, a
disputa se faz entre diferentes atores que comparecem à discussão, sobretudo os
que detêm privilégios que desejam ver conservados. Neste caso, são os
diferentes estamentos estatais que usufruem benefícios inacessíveis aos outros
setores da população, que, paradoxalmente, é que pagam por eles. Os
privilégios, sabemos, adotam várias formas, como 60 dias de férias, adicionais
dessas muito superiores aos que são concedidos aos trabalhadores normais,
auxílio-moradia, aposentadoria integral, e assim por diante. Contudo esses
estamentos estatais conseguiram, pela retórica, vender a ideia de que a reforma
da Previdência afetaria os direitos dos trabalhadores em geral, quando, na
verdade, são eles sustentados por estes, que não usufruem tais benefícios. O
bolo orçamentário é só um. Se uns têm uma fatia menor, é por que outros comem
fatias maiores.
De outro lado, temos uma disputa
que perpassa gerações, em que atores presentes decidem por cidadãos futuros. A
política ganha, assim, um contorno geracional, que foge de contendas que se
decidem agora. Se, no presente, privilegiados ou não pretendem se aposentar com
menos de 65 anos, por exemplo, com uma expectativa de vida que pode chegar a
mais de 20 anos, alguém pagará por essa diferença. O bolo estaria sendo todo
comido no dia de hoje, não restando amanhã para os que deverão pagar essa
conta. A política egoísta ganha aí outro contorno, na medida em que os
presentes querem tudo apropriar para si, nada deixando para os que virão. E,
frise-se, os que virão não apenas deverão responsabilizar-se por decisões
anteriores, como não mais terão condições de usufruir nenhum tipo de Estado
previdenciário. Se todos atualmente pagassem e trabalhassem mais por mais
tempo, tornar-se-iam responsáveis, no presente, por suas próprias ações, não
comprometendo as gerações vindouras.
As primeiras declarações
desencontradas do governo eleito sinalizam, agora, para um pleno reconhecimento
do problema previdenciário. Estamos diante de uma questão de bem coletivo. O
Brasil não pode ficar refém de disputas intestinas ou de oposições que podem
comprometer o futuro. Não há mais espaço para demagogias irresponsáveis que
ameacem a existência do próprio Estado.”
-----------------
AGD comenta:
Sem comentário
Nenhum comentário:
Postar um comentário