“Calma, que o Brasil é nosso!
Por José Nêumanne
Comemorar a vitória do adversário
não é usual na natureza humana. Vencedores festejam e derrotados tomam fel no
velório. Mas a Nostradamus de xepa de feira e bruxas de Macbeth de hoje em dia
convém receitar boas doses de Rivotril e baldes de suco de maracujá. Esta não
terá sido a última eleição do século: o mais tardar em dois anos serão disputados
pleitos municipais, nos quais mais uma vez o ânimo popular será testado e
nenhum eleitor será obrigado a contrariar seus interesses votando em quem não
atender à vontade comum. Quem chora agora pode comemorar em outra ocasião,
pois, todo mundo sabe, um dos maiores e mais ministrados tônicos da velha
democracia é o rodízio do poder.
Convém, de início, reconhecer que
poucas disputas mobilizaram o ímpeto bélico da cidadania brasileira como esta.
Mas um curso bem frequentado de História do Brasil bastará para esclarecer que
a polarização nunca foi algo tão inusitado assim. Em 1930, no meu Estado natal,
a Paraíba, liberais queimaram lojas de “perrepistas” depois do assassinato do
presidente do Estado, João Pessoa, no Recife. Suicida vocacional, Getúlio
Vargas disparou contra o próprio coração, parte por não suportar o opróbrio do
“mar de lama” de que era acusado pelos inimigos da UDN, parte por saber que o
tiro de seu revólver levaria seus devotos à rua para evitar a subida ao poder
dos desafetos. E assim foi: jornais da oposição foram empastelados e uma
multidão seguiu o féretro pelas ruas da então capital federal, do Catete ao
aeroporto, onde o cadáver pranteado como nunca nenhum outro antes embarcou para
a última morada, em São Borja. Entrou em meus compêndios escolares o tiroteio
na Praça da Bandeira, em Campina Grande, em 1950, em que se enfrentaram antigos
correligionários, os amarelos de José Américo, fundador da UDN e candidato do
PSD, contra os brancos do ainda udenista Argemiro de Figueiredo. Dois operários
e um bancário morreram na refrega. Não foram os únicos imolados nas disputas
políticas brasileiras. Baleado por João Dantas, João Pessoa, candidato a vice
na chapa derrotada de Getúlio na eleição de 1930, inspirou hino, deu nome à
capital de nosso Estado e a muitas ruas e avenidas de cidades brasileiras,
depois de seu corpo inanimado ter animado a revolução dos tenentes, que virou
nossa política de pernas para o ar.
Pode-se dizer ─ e quem o disser
não mentirá ─ que a polarização se tornou mais aguda com o segundo turno, que
privilegia o “ele não” desde sempre. E que se fez odienta com a campanha do
“nós contra eles”, tática de Lula para reduzir o impacto do mensalão contra sua
reeleição, repetida desde então na versão maniqueísta de romance de capa e
espada.
O pleito do mês passado
introduziu um elemento novo no panorama, antes controlado de cima da ponte que
dá acesso ao castelo do poder: o poder da cidadania, usando um instrumento da
velha-guarda, à qual a esquerda se associou gostosamente na rapina do erário
com o baronato político, contra os manipuladores de sempre. Refiro-me à
democracia dita direta. Ludibriada no desgoverno de nosso chefe de Estado menos
aquinhoado de inteligência desde Tomé de Souza, governador da Bahia, a classe média,
após ter ocupado as ruas para reclamar da desídia do Estado, recorreu às mídias
eletrônicas não convencionais para dar o drible da vaca nas organizações
criminosas, ditas partidárias. Estas recorreram aos truques mais sórdidos para
se manterem no topo. Primeiramente, patrocinaram candidatos exclusivos das
legendas, financiamento público bilionário das campanhas pagas por propinas
desmedidas, foro de prerrogativa de função e outros truques canalhas.
Depois, veio a guerra ideológica.
Um best-seller do New York Times, Como as Democracias Morrem, de Steven
Levitsky & Daniel Ziblatt, socorreu ignorantes que chamaram a tomada de
poder pelo cidadão de “neofascismo” e “protonazismo”. Com a desastrada adesão
do fake Pink Floyd Roger Waters, mexendo Mussolini, Hitler, Trump, Putin e
Bolsonaro no mesmo caldeirão. O povo nem ligou e demoliu a farsa, que fez da
intelligentsia a versão acadêmica e artística da “jumentice”, e sapecou na
farsa o peso de quase 58 milhões de votos para o capitão deputado.
Em plena ressaca do mau humor da
derrota, a patota organizada da “resistência” contra o empurrão na velha
política para fora do poder republicano por quatro anos inspirou-se nas pragas
rogadas por Tirésias na Roma antiga. A executiva Mônica de Bolle clamou contra
a indicação de Roberto Campos Neto para a presidência do Banco Central (BC)
pela precariedade intelectual de seu currículo. Faltava-lhe, segundo ela, um
doutorado, um mestrado que fosse. Como se Henrique Meirelles, presidente tucano
do BC de sir Luiz Inácio tivesse defendido teses nos anos em que foi corretor
na Bolsa de Valores de São Paulo do Banco de Boston, no qual chegou sem diploma
a ocupar a presidência internacional.
Os salões e corredores do
Itamaraty fervilharam de fofocas contra o embaixador Ernesto Araújo por ele não
ter ocupado uma embaixada do circuito Elizabeth Arden antes de chegar à
chancelaria. O primeiro ministro das Relações Exteriores da República foi
Quintino Bocaiúva, político de ofício. O atual, Aloysio Nunes Ferreira,
praticou a “diplomacia” como segurança do chefe guerrilheiro Carlos Marighela,
no exílio em Paris e na política profissional no Estado de São Paulo. Entre
outros, ilustres chanceleres não cumpriram a última condição para o cargo: os
ex-presidentes Campos Salles e Fernando Henrique Cardoso, verbi gratia. E o
melhor exemplo é o de Osvaldo Aranha, revolucionário de 1930, pau pra toda obra
nos governos de Vargas e o maior ocupante do posto na História.
Quem não sabia fique sabendo, e
para tanto, como no caso de Bolle, basta consultar o Google. Aranha fez o que
nenhum outro brasileiro fez: presidiu na assembléia-geral das Nações Unidas a
sessão histórica em que o território das colônias judaicas no Oriente Médio se
se tornou o Estado de Israel. Cuja bandeira, aliás, o oficial presidente eleito
reverencia, abrindo a exceção de único filonazista da História que é também
filossionista, e não antissemita, como os citados precedentes históricos de
Adolf e Benito.
Do mau humor tornado mau agouro
não escapa, é claro, Sergio Moro, que ultimamente substitui, na condição de
“unanimidade nacional”, Chico Buarque, protomártir da esquerda Rouanet. Como é
público e notório, o juiz federal, que teve o topete de condenar o çábio de
Caetés à cela “de estado-maior” na Superintendência da Polícia Federal em
Curitiba, renunciou à carreira na magistratura para ocupar o Ministério da
Justiça no futuro governo. Das trevas de seu merecidíssimo oblívio, o emérito
professor José Eduardo Martins Cardozo emergiu para exigir do futuro colega na
mais tradicional pasta do ministério a chamada “quarentena ética”. O rábula
diplomado em questão disparou direto das sombras o seguinte petardo, em
entrevista à Folha: “É uma situação que exigia dele, no mínimo, uma quarentena
ética. Não é ilegal, porque não existe uma situação legal, mas deveria ter uma
quarentena ética. Alguém que influencia o processo eleitoral tem que se
considerar impedido de assumir cargos de livre nomeação de um governo que foi eleito
a partir de decisões que ele tomou. Isso é questão de moralidade, questão de
ética.”
Há apenas dois anos e meio, o
referido causídico da causa perdida assomou às luzes da ribalta, como um
Chaplin de picadeiro, na condição de defensor particular da acima citada Dilma
no processo do impeachment, quando exercia o cargo público de advogado-geral da
União. Ademais, antes de ocupar qualquer magistério de ética de mentirinha, Sua
ex-Excelência deveria, explicar ao público furtado por que nem sequer lamentou
ou pediu perdão pela cumplicidade exercida durante os 13 anos e meio em que
seus patrões de partido executaram o maior assalto da História. Em vez disso,
faz parte da patota que joga areia nos olhos dos ocupantes do poleiro do circo
mambembe da velha política republicana tupiniquim a justificativa mentirosa da
perseguição ao chefe do chamado “quadrilhão do PT”, ora em julgamento em
Brasília. À falta de sabão, ele está convidado a lavar a língua com juá, como
faziam os ancestrais de seu ídolo e padim no interior de Pernambuco.
Dou-lhes um piedoso aviso: calma,
que o Brasil é nosso! Estamos todos no mesmo barco e um eventual naufrágio a
ninguém poupará.”
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