“Bolsonaro, o 'mito', derrotou a
'ideia' Lula
POR JOSÉ NÊUMANNE
Desde 2013 que o demos (povo, em
grego) bate à porta da kratia (governo), tentando fazer valer o preceito
constitucional segundo o qual “todo poder emana do povo” (artigo 1.º, parágrafo
único), mas só dá com madeira na cara. Então, em manifestações gigantescas na
rua, a classe média exigiu ser ouvida e o poste de Lula, de plantão no palácio,
fez de conta que a atendia com falsos “pactos” com que ganhou tempo. No ano
seguinte, na eleição, ao custo de R$ 800 milhões (apud Palocci), grande parte
dessa dinheirama em propinas, ela recorreu a um marketing rasteiro para manter
a força.
Na dicotomia da época, o PSDB,
que tivera dois mandatos, viu o PT chegar ao quarto, mas numa eleição que foi apertada,
em que o derrotado obtivera 50 milhões de votos. Seu líder, então incontestado,
Aécio Neves, não repetiu o vexame dos correligionários derrotados antes –
Serra, Alckmin e novamente Serra – e voltou ao Senado como alternativa
confiável aos desgovernos petistas. Mas jogou-a literalmente no lixo,
dedicando-se à vadiagem no cumprimento do que lhe restava do mandato. O neto do
fundador da Nova República, Tancredo Neves, deixou de ser a esperança de opção
viável aos desmandos do PT de Lula e passou a figurar na galeria do opróbrio ao
ser pilhado numa delação premiada de corruptores, acusado de se vender para
fazer o papel de oposição de fancaria. O impeachment interrompeu a desatinada
gestão de Dilma, substituída pelo vice escolhido pelo demiurgo de Garanhuns,
Temer, do MDB, que assumiu e impediu o salto no abismo, ficando, porém, atolado
na própria lama.
Foi aí que o demos resolveu
exercer a kratia e, donas do poder, as organizações partidárias apelaram para a
força que tinham. Garantidas pelo veto à candidatura avulsa, substituídas as
propinas privadas pelo suado dinheiro público contado em bilhões do fundo
eleitoral, no controle do horário político obrigatório e impunes por mercê do
Judiciário de compadritos, elas obstruíram o acesso do povo ao palácio.
Em janeiro, de volta pra casa
outra vez, o cidadão sem mandato sonhou com o “não reeleja ninguém” para entrar
nos aposentos de rei pelas urnas. Chefões partidários embolsaram bilhões,
apostaram no velho voto de cabresto do neocoronelismo e pactuaram pela
impunidade geral para se blindarem. Mas, ocupados em só enxergar seus umbigos,
deixaram que o PSL, partido de um deputado só, registrasse a candidatura do
capitão Jair Bolsonaro para conduzir a massa contra a autossuficiência de Lula,
ladrão conforme processo julgado em segunda instância com pena de 12 anos e 1
mês a cumprir. O oficial, esfaqueado e expulso da campanha, teve 10 milhões de
votos a mais do que o preboste do preso.
Na cela “de estado-maior” da
Polícia Federal em Curitiba, limitado à visão da própria cara hirsuta, este
exerceu o culto à personalidade com requintes sadomasoquistas e desprezo pela
sorte e dignidade de seus devotos fiéis. Desafiou a Lei da Ficha Limpa,
iniciativa popular que ele sancionara, transformou um ex-prefeito da maior cidade
do País em capacho, porta-voz, pau-mandado, preposto, poste e, por fim,
portador da própria identidade, codinome, como Estela foi de Dilma na guerra
suja contra a ditadura. Essa empáfia escravizou a esquerda Rouanet ao absurdo
de insultar 57 milhões, 796 mil e 986 brasileiros que haviam decidido livrar-se
dele de nazistas, súditos do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores
Alemães, que não se perca pelo nome, da Alemanha de Weimar: a ignorância
apregoada pela arrogância.
Com R$ 1,2 milhão, 800 vezes
menos do que Palocci disse que Dilma gastara há quatro anos, oito segundos da
exposição obrigatória contra 6 minutos e 3 segundos de Alckmin na TV,
carregando as fezes na bolsa de colostomia e se ausentando dos debates,
Bolsonaro fez da megalomania de Lula sua força, em redes sociais em que falou o
que o povo exigia ouvir.
A apoteose triunfal do “mito” que
derrotou a “ideia” produziu efeitos colaterais. Inspirou a renovação de 52% da
Câmara; elegeu governadores nos três maiores colégios eleitorais; anulou a
rasura na Constituição com que Lewandowski, Calheiros e Kátia permitiram a
Dilma disputar e perder a eleição; e forçou o intervalo na carreira longeva de
coveiros da república podre.
O nostálgico da ditadura, que
votou na Vila Militar, tem missões espinhosas a cumprir: debelar a violência,
coibir o furto em repartições públicas e estatais, estancar a sangria do erário
em privilégios da casta de políticos e marajás e seguir os exemplos impressos
nos livros postos na mesa para figurarem no primeiro pronunciamento público
após a vitória, por live. Ali repousavam a Constituição e um livro de
Churchill, o maior estadista do século 20.
Não lhe será fácil cumprir as
promessas de reformas, liberdade e democracia, citadas na manchete do Estado
anteontem. Vai enfrentar a oposição irresponsável, impatriótica e egocêntrica
do presidiário mais famoso do Brasil, que perdurará até cem anos depois de sua
morte. E não poderá fazê-lo com truculência nem terá boa inspiração nos
ditadores que ornam a parede do gabinete que ocupou. Sobre Jânio e Collor, dois
antecessores que prometeram à cidadania varrer a corrupção e acabar com os
marajás, tem a vantagem de aprender com os erros que levaram o primeiro à
renúncia e o outro ao impeachment.
Talvez o ajude recorrer a boas cabeças
da economia que trabalharam para candidatos rivais, como os autores do Plano
Real e a equipe do governo Temer, para travarem o bom combate ocupando o “posto
Ipiranga” sob a batuta de Paulo Guedes. Poderá ainda atender à cidadania se
nomear bons ministros para o Supremo Tribunal Federal e levar o Congresso a
promover uma reforma política que ponha fim a Fundo Partidário, horário
obrigatório e outros entulhos da ditadura dos partidos, de que o povo também
quer se livrar em favor da desejável igualdade.”
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