“A crise nossa de cada dia
Marco Aurélio Nogueira
A vida é feita de crises.
Conflitos e disputas alimentam as interações humanas como o ar que se respira.
A própria dinâmica social, contraditória e movida a antagonismos, faz os
sistemas inventados para prover a sociedade de recursos de sobrevivência
entrarem em desajuste e perderem eficácia. É uma constante.
Devemos desdramatizar a ideia de
“crise” para que sejamos capazes de assimilá-la e compreendê-la. Não há por que
temer o que é parte da vida.
Crise não é sinônimo de fim ou
morte. Não implica que uma situação “crítica” se reproduza de forma
catastrófica. Uma crise de governo não anuncia o fim do governo, mas sim que
algumas de suas condutas e opções já não bastam para sustentá-lo. Uma crise
econômica tem indicadores claros – recessão, desemprego, redução do consumo,
inflação, fuga de investimentos –, mas não se traduz necessariamente em
colapso, podendo, porém, significar que um padrão de acumulação ou uma
orientação macroeconômica atingiram o esgotamento.
Nossa época está assentada num
sistema produtivo altamente dinâmico, competitivo e predatório, que não
respeita limites nem fronteiras, que se faz exigindo o máximo de todos os
agentes, em especial os do mundo do trabalho. O capitalismo consolidou-se como
sistema mundial e ganha fôlego com a incorporação de tecnologias que repercutem
nos diferentes níveis de vida, abalando as estruturas sociais, as ideias, as
práticas, as formas de organização e o Estado como um todo. Somos protagonistas
de uma era de crises.
Crises são como terremotos, que
recebem pontuações que indicam a potência destrutiva que carregam. Há crises e
crises. Algumas não passam de abalos ligeiros, que nem sequer sentimos. Mesmo
que provoquem paralisia e desorganização, seus efeitos são positivos:
ajudam-nos a compreender o que não funciona e facilitam a eliminação de células
mortas. Outras se estendem no tempo e corroem os corpos em que se instalam.
Todas indicam a necessidade de uma transformação, mas algumas exigem mudanças
profundas, que demandam exercícios intelectuais sofisticados, operações
complexas e tratativas difíceis. Neste segundo caso, sobretudo, as crises
prolongam-se como um mal-estar que produz efeitos perversos, retira vigor de
soluções antes vitoriosas e desorganiza o que está estabelecido, contaminando a
vida social. Tais crises exigem que os sistemas saiam em busca de novos pontos
de equilíbrio, com os quais possam voltar a funcionar adequadamente.
O mundo atual conhece crises
desse segundo tipo. Muitas sociedades, talvez todas, estão mergulhadas nelas.
São partidos políticos que desaparecem, tecnologias que se tornam obsoletas,
formas de gestão e de organização produtiva que fracassam, buracos que se
formam por todos os lados e, ao atingirem a esfera política, levam à emergência
de líderes salvacionistas improváveis, fundamentalismos regressistas,
desentendimentos e polarizações paralisantes, como que a anunciar a abertura de
uma época de cegueira cívica, na qual os cidadãos não sabem bem o que desejam,
o que podem conseguir e o que devem fazer para delinear um futuro melhor.
Crises assim são crises
políticas: enraízam-se no chão da sociedade, contagiam as pessoas e atingem o
Estado, não somente os sistemas políticos em sentido estrito. Além de cegar os
cidadãos, também bloqueiam a deliberação democrática, o processo de tomada de
decisões e a formulação de políticas públicas.
O Brasil aparece aí de corpo
inteiro. Mas o problema não é somente brasileiro. A crise política
globalizou-se, em sintonia com a globalização capitalista. A economia, a
cultura e a sociedade mundializaram-se, mas a política permaneceu “nacional”. A
ausência de um “Estado mundial” faz com que o sistema internacional fique “fora
de ordem”.
No plano das nações – no Brasil,
por exemplo – ocorre um efeito parecido: a economia, a sociedade e a cultura
transformam-se graças à globalização e à revolução tecnológica, modernizam-se,
mas a política não consegue acompanhá-las; ingressa assim numa condição de
sofrimento, desestruturando-se. Os sistemas nacionais giram em falso,
impulsionados pelos efeitos da globalização.
A crise política atual é uma
crise da política. Diz respeito a regras, sistemas e procedimentos, mas afeta
hábitos, condutas e valores éticos com os quais se pratica, se pensa e se
acolhe a política. Não se trata de um simples “defeito institucional”. O
desarranjo sistêmico – que não é catastrófico – desdobra-se num descompasso
entre Estado e sociedade, governantes e governados, representantes e
representados. Trata-se de uma crise do Estado em seu conjunto, que envolve a
todos num abraço totalizante.
Uma crise dessa magnitude não
pode ser vencida somente com reformas institucionais, por mais importantes que
elas possam ser. Requer uma abrangente pedagogia democrática, que valorize a
dimensão pública da vida e agite os humores sociais em sentido progressista,
civilizador.
No que diz respeito
particularmente à democracia representativa, pode-se dizer, parafraseando
Norberto Bobbio, que ela não conseguiu cumprir algumas de suas maiores
promessas. Mas está viva, em transformação. Nas últimas décadas foi capturada
pelo mercado e pelas oligarquias (políticas, corporativas, empresariais),
perdendo pujança e entrando em tensão com as expectativas cívicas. Um
deslocamento se processou: a democracia passou a ser vivida mais nos espaços
societais “desregulados” do que no plano do Estado e dos sistemas políticos.
Mas nada autoriza a que se
projete um atalho que engavete a democracia representativa e a confronte com
alguma modalidade de “democracia direta”. O caminho mais profícuo parece ser o
de se repaginar a democracia e o governo representativo, soltar suas amarras,
para que se reencontrem com a cidadania ativa e com uma alteridade que não se
renda ao fascínio das “diferenças”, dinamizando e qualificando o convívio
social.”
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