Uma escultura (*) |
Por Zé Carlos
Foi pouco o tempo que tive para escrever sobre São Paulo,
uma cidade tão nordestina que as tentativas de nos jogar uns contra os outros
sempre darão em nada. A falta de tempo decorreu exatamente daquilo que seria
motivo para escrever: O que é que São Paulo tem? Além de paulistas, japoneses,
coreanos e nordestinos. Esta nossa grande cidade tem um acervo de arte e
cultura invejável. E, deixei para minha volta o uso das teclas (escrevo isto
porque fui do tempo da “pena”, ou, no
máximo, da caneta) para escrever um pouco mais.
Eu já disse, em escritos anteriores sobre o tema, que uma
grande qualidade do povo paulista (seja de onde forem) é o seu respeito pelos
idosos, no qual me enquadro legalmente, embora tenha dúvidas, às vezes, se sou
um “velho legítimo”. Até penso que
ninguém ainda vivo é um “velho legítimo”,
e é bom que assim seja. Porém se a legitimidade vier da falta de memória para
certos eventos, eu já entrei na boa idade, faz tempo. Portanto, qualquer
narrativa minha deve ser vista como verdadeira até prova em contrário, mas, se
espremer muito fica naquela de “entrou
por uma perna de pinto, saiu por uma perna de pato e o senhor rei manda dizer que
o leitor contasse quatro”, frase que ouvi tanto de minha mãe ao terminar as
suas “estórias de trancoso”, ensinei
para minhas filhas e hoje tento ensinar aos meus netos, quando eles deixam o
iPad de lado.
Contudo, devo começar. E não é do início e sim quase do
final da viagem, quando voltamos (sempre eu minha “velha”) à Pinacoteca do Estado, um local onde se pode apreciar um
acervo de arte dos melhores do país, e, talvez do mundo. Não que eu seja um
grande conhecedor das artes, seja de que espécie for. Em minha trajetória de
vida o que conheci mesmo, em profundidade, foi a “arte de viver” ou mesmo, sobreviver. E isto incluiu o contacto com
artistas e suas obras, mesmo sem ser um expert
no setor. Eu dizia, depois de trabalhar mais de 30 anos num Centro de Artes
e Comunicação, que o conhecimento da matéria, se tenho algum, foi através da
osmose. Lá descobri que a boa convivência nos torna mais sensível, e que no
fundo, no fundo, todos nós somos um tipo de artista, neste mundo.
Era lá, na Pinacoteca, onde estava uma exposição de um
artista, o Ron Mueck, que dizem os entendidos é um escultor hiperrealista, e cujo trabalho é voltado
para reproduzir o corpo humano de uma forma tão real, que já deve ter
acontecido com ele o que contam ter acontecido com Michelangelo, depois da conclusão de sua escultura Moisés,
de dizer: “Por que não falas?”
Passando, na primeira vez, vindos de uma caos quase artístico
como é uma caminhada na José Paulino (rua de comércio da cidade), em frente ao
museu, vi uma fila que se perdia de vista, e desisti de ver o que a divulgação
me convenceu que era uma grande obra de arte. Chegando em casa, um pouco
frustrado, eu me lembrei que estava em São Paulo, e lá “velho” tinha vez. Decidi ir à exposição usando o argumento da “prioridade”, só desejada quando estamos
diante das filas. E não deu outra. Na qualidade de “velho” entrei numa fila onde havia apenas três pessoas e entrei na
exposição gratuitamente. Pensei, ou os velhos paulistas são muito poucos ou não
gostam de arte, e fui em frente.
Algo simplesmente maravilhoso foi o que eu vi, apesar do
artista não apresentar todas as suas obras nesta exposição. Diante de certas
esculturas, mesmo não repetindo o grande artista italiano, eu tive vontade de
gritar: “Vamos conversar, gente?”,
enquanto olhava as veias das pernas de um senhor numa praia, e seus pelos, e
ficava imaginando de que o homem é capaz quando lhe dão liberdade para criar.
Foi um verdadeiro desbunde, para um emigrante nordestino temporário. Será que
os nordestinos poderão se desbundar em sua região com tamanha beleza? Espero
que sim.
Depois de sair desta exposição ainda fomos andar por São
Paulo e curtir a vida, como se turista fôssemos. Mas, depois, tentarei contar
sobre os parques estupendos, a arquitetura característica da Avenida Paulista e
até mesmo, do seu contraste com as pessoas que dormem nela, aproveitando o que
os museus ainda podem lhe dar, tendo como exemplo o vão do MASP, como soe
acontecer em outras cidades grandes. Este contraste é sempre um alerta para
verificar que o mundo não é tão perfeito como as esculturas do Ron Mueck.
Passamos ainda pela frente do Museu da Língua Portuguesa, do
qual já aqui falei, e só o cito aqui para interligar os assuntos que dão o
título a esta pequena crônica de viagem. Descobri, ao chegar em Recife, que
temos algo muito semelhante na forma, mesmo que o conteúdo seja diferente, bem
pertinho de nós, que é o Museu Cais do Sertão, lá no Recife Antigo. Levado a
ele pela família, descobri que as pessoas que coordenam o museu de São Paulo
também coordenam o daqui. E as emoções não foram menores.
Se em São Paulo conheci a língua portuguesa e sua história,
no Museu Cais do Sertão, conheci o Nordeste semi-árido, contado a partir de sua
cultura, e suas tradições, moldadas pelo seu clima inclemente. Até nisto,
agora, com a seca vivida por São Paulo a história é semelhante dentro dos
museus. Não é só no Cais do Sertão que se vê o solo rachado pela falta d’água.
Hoje, a grande metrópole da América Latina passa pelo mesmo processo,
infelizmente.
Ambos os museus me emocionaram, mas, não tanto quanto a dura
realidade das duas regiões em termos da falta de chuva. Vamos rezar para que a
Asa-Branca veja o ronco do trovão e relampeie com muita força para que a beleza
da terra rachada fique só nos museus. Quem
sabe, quando for outra vez a São Paulo eu leve umas Asas-Brancas de presente,
para os paulistas? Isto se eles já não estiverem emigrando para cá. Seriam
bem-vindo porque, tal qual nosso sertão, lá é lugar de “muié séria e homem trabaiador”.
(*) Foto de uma auto-escultura de Ron Mueck que pode ser vista aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário