Por Carlos Sena (*)
Passeio no calçadão da praia de
Boa Viagem, no Recife, menos para mostrar a “figura”, como tantos fazem.
Certamente que eu preferia também mostrar a tal figura, mas o meu passeio não é
bem divertimento, mas questão de saúde. Afinal, os médicos e nutricionistas são
unânimes em dizer que caminhar é dos melhores remédios pra baixar a glicose. De
fato, fazer caminhada além de baixar a glicose, tem outras vantagens. Serve também
para a pressão alta, pois o sedentarismo é amigo do peito e, não raro, ajuda
muita gente a ir para o “buraco” antes da hora. Independente dos motivos, o
calçadão da praia em qualquer capital que tenha praia, já virou ponto de
encontro. Quem faz caminhadas sabe como é interessante a lufa-lufa de amigos,
ou de velhos conhecidos. Dá-se uma paradinha rápida, troca-se umas figurinhas,
mas logo se segue para não perder o ritmo da caminhada. Contudo, entre o
trivial se descortina o exótico. Gente falando sozinha. Gente rezando com o
terço entre as mãos e, achando pouco, eleva as mãos pro céu. Outros que param
perto de um coqueiro e tenta derrubá-lo com sua força. Há ainda aqueles que
ficam entregando panfleto de dieta miraculosa, além de evangélicos entregando aqueles
“santinhos” da Assembleia de Deus. Outro dia tive susto: uma senhora toda
paramentada meteu protetor solar na cara, que mais parecia o Mateu – personagem
do bumba meu boi em Pernambuco e no nordeste. Alguns idosos fazem sua caminhada
no seu ritmo e de forma tranquila. Outros nos passam a ideia de que querem
descobrir na caminhada o elixir da vida eterna – se paramentam todo com as
melhores grifes esportiva, colocam um chapéu com uma aba enorme e aceleram os
passos, dando sinais visíveis de que estão forçando a barra. Outro dia, uma
dessas senhoras meteu a cara numa lixeira, pois a sua visão por conta do chapéu
ficou dificultada. Há ainda aqueles que nos veem, nos conhecem, mas fazem de
conta que não há ninguém em sua frente. Sob o argumento equivocado de não
interromper a caminhada. Talvez seja ali o exercício consentido da falsidade,
pois um cumprimento não atrapalha ninguém em caminhada pelo calçadão.
No rol das excentricidades, a
gente vê, inclusive, grupos exóticos de seitas ou terapias alternativas. Outro
dia, em roda, um grupo de pessoas vestidas de branco estava levantando as mãos
pra cima e pra baixo, concomitante um zumbido que faziam com a boca, talvez
imitando alguma coisa da Ioga. Nem procurei saber de que se tratava, mas gosto
de observar tudo como parte da minha caminhada. Nesse mesmo viés, a gente vê
movimentos afro de macumba fazendo alguma oferenda.
Às vezes o meu MP3 me cansa os
ouvidos e eu, no lugar de música prefiro ir vendo quem passa de uma forma ou de
outra e, de certa maneira me convencendo do que já sei faz tempo: o ser humano
é plural e singular ao mesmo tempo. Há também os personagens fixos que são
aqueles que todo dia estão lá e fazem a mesma coisa e se vestem do mesmo jeito
todo dia. Há um senhor que fica sentado na mureta dando “bom dia” a todos. Há
outro que conversa sozinho e a gente pensa que ele tá falando com o coqueiro. E
assim, há outros. Há também os polos de venda de frutas que se formam em torno
de clientes antigos que frequentam o calçadão. Ali conversam, sabem da vida dos
familiares, trocam favores, etc. Também acontece no calçadão eventos educativos
tipo "dia da diabetes", da hipertensão, etc., em que se fazem festa
com comidas, medição de pressão e glicose e outras ações educativas em saúde.
Mas o calçadão tem suas
especificidades. O horário da manhã tem um público, o da tarde outro e o da
noite mais outro. Há quem, como eu, goste de alternar, até pra dar mais “tesão”
ao processo. Agora imagine quem prefere, ao invés de caminhar ficar numa
academia andando numa esteira por horas! Para onde vão? Que sensações devem
sentir depois de caminharem tanto em direção a lugar nenhum? Sobre a esteira
tapam os ouvidos com um MP3 e ainda ficam vendo TV, concomitante. Por isso e
por outras coisas é melhor, infinitamente, melhor, caminhar no calçadão, mesmo
sabendo que em dias de chuva fica precária a caminhada. Tem mais: há “colírio”
pra todos os gostos. Rapazes bonitos, sarados, moças lindas, bem torneadas. O
mundo gay adora “mostrar a figura”. Tarde/noite nos parece o horário de maior
adesão deles, mas tudo acontece dentro da ótica do “corpo são, mente sã”. Cada
um com seu jeito, com sua indumentária, com seu detalhe no corpo como tatuagem,
brincos, etc. Neste aspecto colorido, até o vento colabora, pois é sempre
"fresquinho"...
Outro lado desse espetáculo se
encontra na areia. Há vida imensa na areia enquanto o calçadão se presta a ser
uma passarela indiscreta para todos caminharem. Na areia há “bombadinhos”
(aqueles boys meio barbies) jogando vôlei logo cedo. Logo cedo há também os
papudinhos – alguns que, cheiros de cachaça, emendam a noite de farra com o dia
na praia. Quem caminha cedinho da manhã se encontra com essas “paradas” nem
sempre digestas. Na areia se encontram também os idosos (detesto melhor idade
ou terceira) que se encontram para conversar ou fingir que andam, que caminham,
ou que de fato caminham no seu ritmo. Alguns deles adoram fazer “jacaré”: ficam
em grupinhos dentro da praia quando a maré tá baixa e, de longe, mais parecem
jacarezinhos ali, esperando o sol chegar. Na areia também ficam aqueles
escultores que fazem obras de “arte” entre aspas mesmo, mas que com o vento da
madrugada, acabam.
Poderia dizer mais coisas e
acontecimentos da praia como as paqueras. Como as bicicletas que invadem os
espaços de pedestres e que os guardas nunca aparecem nessa hora. Como os
vendedores de gelo e os barraqueiros que, logo cedinho invadem o calçadão para
iniciar sua peleja pelo pão de cada dia e de cada noite. Como as putas e os
boys de programa que, na boca da noite se acotovelam indiscretamente para
agirem na base da agiotagem, da cafetinagem, da boiolagem.
Como se vê, o calçadão funciona
antes, durante e depois dele mesmo. Talvez por isto ele seja tão recomendado
pelos médicos e pelas pessoas que querem ver gente bonita e gente doida e gente
sem catalogação. Ah, já ia esquecendo: existe um “mijódromo” no calçadão de Boa
Viagem. Como os banheiros são muito distantes uns dos outros, os homens
(preferencialmente) se encostam feito cachorro e, escondendo a cintura pra baixo,
mijam aquela coisa básica e ficam feito o avestruz com o tórax e a cabeça pra
cima, enquanto lá em baixo, o xixi desce sem maiores preocupações. No final da
tarde não tem quem aguente o mau cheiro – verdadeiro vudu. E imaginar que
aquilo sai de dentro da gente. Portanto, não se assustem que no calçadão é
lugar de gente do bem. Compareçam e levem suas loucuras pra lá, pois eu levo
sempre a minha a tiracolo. A minha? Quem me lê pensa que eu sou louco, mas eu
sou mesmo! Doido e varrido diante da vida e de tudo que me cerca. Detesto gente
normal.
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(*) Publicado no Recanto de
Letras em 18/11/2012
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