Recife (imagem da internet) |
Por Zé Carlos
Comecem a ver o filme antes de lerem o texto. Não é uma obrigação, mas apenas um conselho, para aqueles que se cansam fácil com a monotonia dos engarrafamentos. Depois que clicarem para assistir ao filme, ao som da bela música do Acioli Neto, deixem o filme prá lá, continuem ouvindo e lendo o texto abaixo.
Ontem recebi um telefonema de minha mulher mais ou menos às 17:00 horas, e ela dizia:
- Olha, comprei o pão, mas vou atrasar um pouco porque estou presa no trânsito da Conde da Boa Vista, e aqui não tem escapatória, mas chego já!
Eu fiquei esperando o pão até mais ou menos umas 18:30. Ela ligou outra vez.
- Agora estou desviando da Joaquim Nabuco, pois um guarda está aqui dizendo que lá na frente está tudo alagado. Vou desviar pelo Derby. Chego já!
Como a barriga roncava feito o fole do sanfoneiro do Paga-Nada, resolvi comer bolacha e filmar o trânsito, o que gerou o filme acima. Estes 4 minutos representam umas 2 ou 3 horas de filmagens que vão até quase 8:00 horas da noite. Minha mulher chegou quase às 7:30, e o pão ficou para amanhã. Continuem ouvindo a música e lendo.
Que os moradores do Recife têm trauma de cheia é um fato. Eu sou uma prova disto, e enfrentei a primeira delas, lá pelos idos de 1966. Morava no bairro de Parnamirim. Um bairro de classe média alta, não por mim, mas por um tio meu que já estava ralando aqui na mauriceia por muito tempo. Nunca se poderia imaginar que devido a umas chuvinhas no interior algo de grave poderia acontecer àquela comunidade de políticos famosos, capitães de indústria e grandes comerciantes. A chuva não seria nem besta.
Num belo dia, não me lembro a data ao certo, acordei com alguém dizendo:
- A água já está aqui! E continua subindo!
O subindo significava que eu morava numa casa mais alta do que algumas da mesma rua. Eu me levantei como todos da casa e fomos para fora. Era verdade, a água já invadira umas garagens, inclusive a do dono, na época, da Viana Leal, e subia a olhos vistos em direção à casa do meu tio. O homem, vendo a situação, começou a ir ao banheiro com mais frequência do que o normal. Isto também deve ter acontecido com o Wilson Campos, cuja casa dava com os fundos com a do meu tio, e eu posso até dizer que um dia conheci um governador (hoje falecido) pelos fundos. O dono da Alimonda Irmãos da Margarina Bem-te-vi, em cuja casa havia até elevador. E outros como o dono da Rosemblit, que morava um pouco mais afastado, mas estava no caminho das águas. Pois é, a classe alta também vai ao banheiro. Pelo menos com medo das cheias.
Eu, ainda adolescente, nem pensei em escola naquele dia. Fui explorar, junto com meus companheiros, o que estava se passando e sem pensar nas consequências, que, como dizia o Conselheiro Acácio, vêem sempre depois. Com água no joelho, depois na cintura, embicamos pela Avenida 17 de Agosto e fomos até onde era a Rádio Jornal do Commercio, e hoje é um supermercado. Era um rio, ou um mar dágua, só. Voltei e fiquei vendo até onde a água iria. Chegou á nossa calçada, entrou pelo nosso quintal, começamos a colocar os móveis um em cima dos outros, enquanto meu tio quase já morava no banheiro. E só saiu quando alguém gritou lá fora:
- Parece que parou de subir!!!
Era umas 10 horas da manhã. Sol a pino. As águas começaram a baixar, e meu tio saiu do banheiro com um sorriso um pouco amarelo, mas já com alguma cor no rosto.
O fenômeno que aconteceu naquele dia, pela força das águas do Rio Capibaribe, estava acontecendo ontem. Enquanto a maré está baixa, o mar aceita as águas do rio, quando ela sobe, é porque ele já está com a barriga cheia e começa a vomitá-la de volta. E os canais que cortam toda cidade, inundam as ruas. Foi isto que aconteceu em menor proporção ontem, por serem as barragens, hoje existentes, fundamentais para conterem o rio.
O ruim é sempre lidar com os boatos. E nisto mais uma vez pegou nossas autoridades de calças curtas. Deveria haver de forma permanente um órgão confiável de comunicação que funcionasse envolvendo todos o meios de comunicação. Ontem tivemos que esperar uma entrevista de um secretário de governo, cujo semblante passava mais pânico do que calma. E Recife parou no início da noite. Ficou refém dos boatos. Por falar em boato, lembrei de uma piada que correu na época da segunda grande cheia (eu não estava na cidade desta vez, penso que foi em 1975) que contarei, porque suponho vocês ainda estão ouvindo a bela melodia posta no filme.
Um indivíduo passava perto de um quartel, dizem que era aquele que fica nas vizinhanças da Faculdade de Direito, e gritava que a barragem de Tapacurá havia estourado e era questão de minutos para que o Recife submergisse nas águas do Capibaribe.
Uns militares, ouvindo o rapaz, resolveram dar uma lição no boateiro. Prenderam-no, levaram-no para dentro do quartel, simularam um julgamento e deram o veredicto:
- Condenado ao fuzilamento, por boataria!
Pegaram o indivíduo, colocaram-no num muro, chamaram alguns soldados com seus fuzis, formando o pelotão de fuzilamento e:
- Preparar, apontar, foooogo!
Ao ouvir o estampido o indivíduo foi à merda, isto é, sujou-se de merda. E só foi isso, pois os soldados haviam colocado balas de festim em suas armas. Soltaram o boateiro, avisando que aquilo era para ele aprender a não andar por aí espalhando boatos.
O indivíduo saiu ressabiado, e na praça da Faculdade de Direito encontrou um grupo de estudantes e falou:
- Por Deus, não espalhem não, mas o exército brasileiro está sem munição.
Realmente, para boateiro nem pelotão de fuzilamento. Ele ontem apareceu outra vez.
Agora, já estou escrevendo com um sol intenso que bate e reflete nas águas do Rio Capibaribe, que ainda correm celeremente para o mar. Espero que o exército brasileiro continue ainda sem munição.
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