“Trump, os
limites da democracia
POR DEMÉTRIO
MAGNOLI
Nos jornais e em
ensaios acadêmicos, difunde-se a tese de que o “Estado profundo” enquadrou
Donald Trump, neutralizando seus impulsos autoritários e assimilando-o ao
sistema político americano. A ordem executiva de declaração de “emergência
nacional”, supostamente destinada à construção do muro na fronteira com o
México, evidencia as dimensões do equívoco. Por meio dela, o presidente
circunda o Congresso, apropriando-se de prerrogativas constitucionais que não
pertencem ao Executivo. O precedente busca destruir o mecanismo de contrapesos
que garante o funcionamento normal da democracia americana.
Trump já corroeu
a ordem internacional edificada pelos EUA no pós-guerra. A aliança
transatlântica, corporificada pela Otan, cambaleia sob os golpes do ocupante da
Casa Branca, que prefere a companhia da Rússia à da Europa. O sistema
multilateral experimenta incontrolável hemorragia depois de sucessivas
retiradas americanas (Acordo do Clima, acordo nuclear com o Irã, mudança da
embaixada para Jerusalém, guerra tarifária com a China). No Oriente Médio, o
isolacionismo trumpiano propiciou a expansão da influência russa e ameaça
deflagrar uma corrida nuclear entre Arábia Saudita e Irã. Entretanto, a ordem
democrática interna parecia preservada — até a edição da ordem executiva de 15
de fevereiro.
“Eu não
precisava fazer isso”, respondeu Trump diante da indagação de um repórter. O
ato falho diz tudo. O presidente qualificou o fluxo de migrantes na fronteira
sul como “emergência nacional” por motivos exclusivamente político-partidários.
Dois anos após a posse, a promessa nativista de construção do célebre muro
dissolve-se no ar rarefeito das bravatas, especialmente após a reconquista de maioria
na Câmara pelos democratas. Como explicou Gavin Newsom, governador da
Califórnia, um presidente “constrangido” inventa uma falsa emergência para
“alimentar sua base” com a ração da xenofobia. Nesse percurso, procura libertar
o Executivo da rede de controles fabricada pelo sistema democrático.
Não há
emergência imigratória. Graças à drástica redução do fluxo de mexicanos, a
imigração nos EUA conhece forte redução depois do apogeu de 1995-2000. Nos dois
anos iniciais do governo Trump, as detenções de migrantes na fronteira sul
atingiram seu nível mais baixo desde 1971. Atualmente, na sua maioria, os
imigrantes ilegais entram nos EUA com vistos válidos que deixam expirar. A
ordem executiva desvia para as obras do muro US$ 8 bilhões, uma fração dos
custos totais da obra, estimados em US$ 23 bilhões. Imigrantes e muro não
passam de pretextos para uma encenação teatral xenófoba. Contudo, se a Corte
Suprema avalizar a farsa, ficará virtualmente anulado o poder do Congresso de
definir o Orçamento nacional.
Do russo Putin
ao turco Erdogan, passando pelo húngaro Orbán, os governantes populistas do
movimento neonacionalista avançam rumo ao autoritarismo pela subordinação dos
parlamentos e dos tribunais ao arbítrio do Executivo. Nos EUA, uma nação de
enraizadas instituições democráticas, o empreendimento é muito mais difícil.
Trump não conseguiu barrar as investigações judiciais que se aproximam de seu
clã familiar. O desafio que agora lança ao equilíbrio de poderes definirá o
futuro de seu governo.
A Lei de Emergências
Nacionais, de 1976, inscreve-se no percurso histórico de ampliação das
prerrogativas presidenciais que começou com a ratificação da Constituição
americana, em 1788. A lei de 1976 não define o conceito de “emergência
nacional”. O Congresso pode revogar emergências, mas o presidente tem o direito
de vetar o ato parlamentar. A derrubada de vetos exige maioria qualificada de
dois terços na Câmara e no Senado. Nessas condições, Trump tem chances
razoáveis de obter da Corte Suprema uma sentença na qual os juízes se abstêm de
intervir em prerrogativas dos outros poderes.
Geralmente, ao
produzirem suas leis, as democracias não preveem a ascensão ao Executivo de
líderes populistas engajados na degradação da própria democracia. Essa é a
verdadeira “emergência” que os EUA enfrentam hoje.”
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AGD
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