“A mulher de
César ou a moral pública
Por Leandro
Karnal
Todas as pessoas
deveriam ser honestas. Os políticos são ainda mais cobrados porque lidam com
dinheiro alheio. As mulheres, alvo de fiscalização particular na nossa
sociedade, deveriam ser imaculadamente éticas. A mulher do político, por fim,
deve ser um cristal perfeito, transparência sem jaça e luz cristalina. Assim
construímos nossos imaginários sociais: tolerantes com o jeitinho cotidiano,
irritadiços com o roubo público e violentos no julgamento das mulheres.
Dizem que a
expressão sobre o cônjuge de César nasceu da segunda esposa do aclamado
general. Pompeia Sula deu uma festa só para mulheres. Um patrício atrevido
invadiu o rega-bofe. Foi descoberto pela sogra da anfitrioa. Júlio César tomou
a decisão clássica de uma moral masculina e pública: divorciou-se da esposa e
perdoou o invasor. Surgiu o ditado: para uma mulher casada com homem importante
não basta ser, mas parecer honesta, estar acima de quaisquer suspeitas.
Nossos jornais
mostram novos escândalos. Ainda não abarcamos a extensão dos antigos, nem todos
os culpados foram punidos e eis que uma safra fresca desponta. Você minha
querida leitora ou você, meu estimado leitor, sabe a regra absoluta e
verdadeira. Tudo que se diga de ruim do político ou partido de que eu gosto é
perseguição da imprensa e intriga da oposição. Tudo o que for dito do meu
inimigo político é pouco diante do muito mais que ele ou o partido tenham
roubado. Aqui não se trata de gênero, todavia de afinidade eletiva. Quem eu
gosto é honesto. No máximo, como concessão ao humano, meu correligionário fez
algo indevido, mas imensamente menor do que aqueles outros, os verdadeiros
ladravazes. Um argumento brasileiro clássico e estranho: “Sim, ele fez isso,
mas os outros fizeram muito mais”. Assim, justifica-se o homicídio diante do nosso
imaginário sobre o genocídio. O meu César e a sua esposa devem ser, ao menos,
um pouco menos ladrões do que o César e a esposa alheia. Afinal, todos os
césares se parecem, com exceção do meu, que, claro, é melhor por ser o meu. A
ética parece flertar com a blague de Bernard Shaw (1856-1925): “O nacionalismo
é a crença que um país é melhor que outro pelo simples fato de você ter nascido
nele”. Meu político é mais ético simplesmente porque eu acredito nele e, um
dia, a imprensa golpista vai entender isso.
Ser e parecer é
a síntese da modernidade maquiavélica. Os outros julgam pelo que percebem
externamente, logo, a propaganda de si como luminar ético é a coisa mais
importante. Emil Cioran (1911-1995) dá o seu inevitável tom pessimista ao
pensar as dualidades do mundo: “A inconsciência é uma pátria, a consciência, um
exílio”. Podemos tratar de várias formas a ideia do franco-romeno. Mundos
bipolares provocam conforto, um gueto mental quente e agradável. O bem ao meu
lado e o mal do outro. E quem não pensa assim? Só pode ser um sofista, pois
todos que não trabalham com o absoluto devem ser sofistas. Como sempre, sofista
é uma palavra aprendida em um grupo de WhatsApp. Lá disseram ao membro que era
um insulto e o mundo pessimista helênico submergiu no pires da internet.
Todos os
políticos são iguais? Não. Estou convencido de que há pessoas realmente
honestas e há partidos que as concentram mais do que outros. A questão que
estou tratando é que a convicção depende de fatos e não de opiniões. Não
podemos ter confiança por princípio, porém por fatos. Sempre gostei do exemplo,
muito isolado na história do País, do ministro de Itamar Franco: Henrique
Hargreaves. Sentado na instável cadeira da Casa Civil, a grande guilhotina da
Nova República, foi acusado de procedimentos não éticos. Afastou-se e houve uma
investigação. Assumiu Tarcísio Carlos de Almeida Cunha. Feita a devassa,
retornou, sem que nada fosse provado. É um modelo interessante. Por quê?
Existem máquinas óbvias de denúncias contra quaisquer pessoas que exercem o
poder. Faz parte do jogo político. Eu quero o poder que pertence a você, mesmo
o legitimamente obtido por votos. Logo, não querendo pagar o ônus de um golpe,
eu posso derramar acusações. As acusações podem ser falsas ou verdadeiras,
sempre. Para isso, o ideal seria fazer uma investigação e, sempre que possível,
sem que o acusado exercesse cargo de poder. Isso evitaria que, caso seja
culpado, use a máquina pública a seu favor ou que, enquanto se defende, não se
concentre em seus afazeres. Trata-se de duplo e necessário cuidado.
Toda mulher de
César deveria ser a primeira a exigir investigações amplas. A ela interessa
emergir do caso com sua reputação exaltada. Exercer cargo público em
democracias tem esse ônus terrível. O palavrão que você lançou no ensino
primário volta. A entrevista de 1978 emerge. Reaparece o teste do bafômetro
daquela noite fatídica. Seu filho exterior aos laços matrimoniais desponta nas
colunas sociais. Seu filho de dentro do casamento terá a vida devassada e, não
sendo santo (algum o é?), terá os achados jogados na fogueira inquisitorial da
opinião pública.
Penso três
coisas distintas. Uma já dita: a mulher de César deve querer investigação e sua
insistência no procedimento seria uma evidência da sua consciência tranquila.
Segunda: devemos buscar a ética e não a ética em uma pessoa ou partido. Devemos
cobrar que quem exerça cargos seja exemplar ao lidar com a coisa pública.
Terceira: um pecado menor do passado que já tenha sido expiado pela retratação
ou que represente um momento de raiva e não uma convicção pessoal deveria ser
relevado. Gosto de pessoas reais que têm capacidade de errar, desde que se
arrependam e melhorem. Arcanjos costumam ser autoritários. Alguns até traem o
plano divino. O mundo político é mais complexo do que uma lista de convidados
de Pompeia Sula. A mulher de César deveria ter contratado assessores de
imprensa. Bom domingo para todos nós.”
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AGD
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