“O ovo da
serpente
Por Fernando
Gabeira
Alguns
analistas dizem que os mais velhos hoje já não entendem seus filhos e são
condenados a viver, no mundo digital, como imigrantes no próprio país.
Meu caso é mais
prosaico. Sinto-me como imigrante no Brasil ao assistir a uma sessão do Supremo
Tribunal Federal.
O Brasil que
habitava desde a redemocratização pelo menos tinha esperanças. O que se vê hoje
é o declínio de toda a experiência democrática das três últimas décadas. O
sistema político foi engolfado pelos custos de campanha, corrompeu-se e perdeu
o contato com a sociedade.
O Supremo
mostrou-se uma parte apenas desse corpo em decomposição. Não apenas pelo mérito
de sua discussão, mas também pela forma. Quem iria supor que num momento
histórico um ministro iria alegar, ao vivo, uma viagem para interromper a
decisão.
Ou que, também
num momento histórico, era necessário respeitar o horário regimental.
Levamos o
Brasil mais a sério. É impensável que, numa grande questão nacional, se
reunissem por duas horas, fizessem uma hora de lanche e voltassem cansados, sem
condições de raciocínio.
As coisas
acontecem, e tudo o que dizem aos repórteres é: isto é inadmissível. Muitas
coisas no Brasil hoje são consideradas, justamente, inadmissíveis: violência
política, tiros, troca de insultos.
Solidário com
todas as vítimas, tento avançar um pouco e perguntar: o que produz tantas
coisas inadmissíveis no Brasil? E como entender suas causas e recuperar a
convivência?
Muitas vezes
citado em momentos críticos, o filme de Ingmar Bergman “O ovo da serpente”
mostra os conflitos na Alemanha na ascensão do nazismo. As circunstâncias são
diferentes mas uma lição histórica, que talvez valha para outros momentos, é
que a ascensão de um movimento autoritário não é algo que se afirma em
contextos de grandes erros estratégicos da esquerda.
O Brasil está
dividido em torno de uma concepção de justiça. Toneladas de provas, milhões de
dólares, ruína da Petrobras, todos esses fatos descobertos pela Lava-Jato não
podem ser negados.
Até podem, mas
a um preço muito alto para a própria democracia. O Supremo hesita agora num
momento decisivo, o da prisão de Lula.
Esta hesitação
leva em conta os movimentos de massa, pró e contra. Mas quando democráticos,
não fazem tanto mal quanto a perda de confiança na Justiça, um ácido que corrói
a convivência e estimula saídas desesperadas.
A tática de
lançar a candidatura de Lula acabou ofuscando a própria campanha eleitoral. Em
outro país, ela já teria começado. Lula, por sua vez, não se comporta como
candidato a presidente, mas sim à própria liberdade.
Em vez de
estarem em jogo os principais lances da reconstrução nacional, a discussão
estacionou num debate que sucessivos julgamentos já tinham esgotado.
Infelizmente, a esquerda vê como adversário quem reconhece a realidade dos
fatos e, com isso, coloca num campo adversário milhões de pessoas que não são
autoritárias nem fascistas.
A crise que
estamos vivendo é resultado do fracasso de um longo governo da esquerda. Seus
erros estimularam o surgimento de inúmeras tendências na direita, inclusive a
mais autoritária.
O jogo da
radicalização pode ser jogado com gosto por alguns. No entanto, seu
desdobramento seria um país dividido, uma saída messiânica de um lado ou de
outro. Esse argumento não comove nem direita nem esquerda autoritárias. Ambas
contam com o conflito como dinâmica de sua estratégia de poder.
Mas é preciso
fugir da lógica que cria milhões de imigrantes no próprio país.”
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