“As autoridades
têm liberdade de expressão?
POR EUGÊNIO
BUCCI
A cultura
política brasileira lida mal com a liberdade de expressão. A imensa maioria das
lideranças – sejam de esquerda, sejam de direita, bem como as lideranças que se
declaram “nem de esquerda nem de direita” – não se pauta pelo apreço ao direito
que homens e mulheres têm de dizer o que pensam. Podemos generalizar, sem medo
de errar: no Brasil, com pouquíssimas exceções, os políticos não compreendem –
isso quando não hostilizam abertamente – o que a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, em 1789, na França, classificou como “um dos direitos mais
preciosos do homem”: a livre comunicação das ideias e das opiniões.
Quase
diariamente chefes partidários, dos mais medíocres aos mais ilustres, bradam
agressões contra a instituição da imprensa. Semana sim, semana não, um
jornalista é vítima de ofensas morais ou intimidações físicas. Deputados que
jamais alcançaram o sentido da palavra news (em inglês ou português) querem
legislar contra as fake news. Quiseram proibir as notícias “prejudicialmente
incompletas”, como se houvesse na face da Terra alguma notícia que não
prejudicasse nenhum interesse – ou alguma notícia que não fosse, de algum modo,
incompleta.
Atenção! Sob
pretexto de conter as notícias fraudulentas, existem autoridades que planejam
banir do território nacional não as reportagens falsificadas, mas o noticiário
crítico e verdadeiro. Não fazem ideia de que a liberdade de expressão é parte
necessária do direito que tem a sociedade de fiscalizar e contestar as ações
dos governantes; acham que a crítica só atrapalha e que a comunicação social
deveria cumprir a função precípua de adestrar os governados.
Esse déficit da
cultura política nacional costuma manifestar-se em episódios tristes,
opressivos, que asfixiam os espaços democráticos. Mas de vez em quando há
lances cômicos, lances de pastelão, como se a cena política no Brasil fosse uma
paródia que faz troça dos ideais iluministas. Vez por outra aparece uma
autoridade que, depois de praticar abusos verbais incompatíveis com sua função
de Estado, vai buscar abrigo na desculpa de que disparou seus disparates
exercendo sua “liberdade de expressão”. Aí, o legado iluminista é virado de
pernas para o ar: a liberdade de expressão deixa de ser um direito do cidadão
para questionar o Estado e se rebaixa a uma prerrogativa do Estado para
intimidar a sociedade.
Há poucos dias
tivemos um exemplo dessa desviante cômica, quando o general Eduardo Villas
Bôas, comandante do Exército, resolveu “tuitar” barbaridades. No dia 3 de
abril, às vésperas do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que negaria
o habeas corpus ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ele postou nas
redes sociais a seguinte declaração: “Asseguro à Nação que o Exército
Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à
impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como
se mantém atento às suas missões institucionais”.
Muita gente se
assustou, é óbvio, e no dia seguinte não se falava de outra coisa. Até mesmo no
plenário do STF as admoestações do militar repercutiram. De modo elegante, mas
vigoroso, o ministro Celso de Mello, decano da Corte, advertiu: “O respeito
indeclinável à Constituição e às leis da República representa o limite
intransponível a que se devem submeter os agentes do Estado, quaisquer que
sejam os estamentos a que eles pertencem”.
Mais claro,
impossível. Um agente de Estado tem a sua liberdade de expressão, por certo,
mas isso não significa que ele tenha o direito de sair por aí falando (ou
“postando”) o que lhe dá na veneta. As leis da República o limitam. Sem essas leis
não teríamos ordem pública, muito menos ordem democrática.
Como já era de
esperar (infelizmente), o presidente Michel Temer não esboçou nenhum movimento
para enquadrar o comandante, que é seu subordinado. Em lugar disso, no mesmo
dia do julgamento do Supremo fez um pronunciamento público, sempre pontuado por
seu estilo mordomial de dedos lívidos, trêmulo-esvoaçantes, em que deu de
desfiar generalidades sobre... liberdade de expressão: “É da ordem jurídica que
nasce a liberdade de expressão e de imprensa”.
Escondendo-se
atrás de ambiguidades melífluas, o chefe de Estado sugeriu, com quase todas as
letras, que o general não tinha extrapolado suas atribuições, apenas exercia a
sua... “liberdade de expressão”.
Errou.
Omitiu-se. Nos termos da Constituição e da lei, a livre manifestação de
militares fica subordinada às funções institucionais que cabem a eles. O
Regulamento Disciplinar do Exército (um decreto de 2002) dispõe que um militar
da ativa não deve “tomar parte em discussão a respeito de assuntos de natureza
político-partidária ou religiosa”. Apenas com autorização do chefe um militar
poderia “discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação,
sobre assuntos políticos ou militares”.
Para Temer,
entretanto, o direito fundamental da liberdade de expressão parece permitir que
o general que comanda o Exército lance ameaças mais ou menos veladas contra os
ministros do Supremo Tribunal e contra a sociedade.
Em sua
convicção obtusa, o presidente não está só. A maioria dos políticos brasileiros
acredita que a liberdade de expressão não é uma garantia do cidadão contra o
poder, mas uma prerrogativa do poder, mesmo quando o poder investe contra o
cidadão. Nada surpreendente. Afinal de contas, estamos no país em que agentes
públicos desviam malas de dinheiro público para dentro de apartamentos
particulares e depois, quando a polícia vai lá buscar o produto do roubo,
reclamam de “invasão de privacidade”.
Não, a
liberdade de expressão não pode abrigar a autoridade que comete abusos, assim
como o direito à privacidade não protege esconderijos da corrupção. Quando
vamos aprender uma lição tão elementar?”
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