POR ALMIR
PAZZIANOTTO PINTO
Incandescentes
debates sobre o recolhimento à prisão de réu condenado por Tribunal de Justiça
ou Tribunal Regional Federal, antes de se esgotarem os recursos constitucionais
ou legais, recomendam o exame do tratamento dispensado pela Constituição aos
Direitos e Garantias Fundamentais previstos no Título II e relacionados no
Capítulo I, como Direitos Individuais e Coletivos.
Conhecer a Lei
Superior é direito do povo e obrigação de magistrados, procuradores, advogados,
economistas, jornalistas, cientistas políticos, acadêmicos de Direito. Não
apenas a de 1988, mas, também, as sete anteriores, para lhes encontrar as
raízes históricas e procurar entender os ajustes e desajustes com as nossas
múltiplas realidades.
O preâmbulo da
Constituição é a síntese dos objetivos políticos que serviram de norte durante
o processo de sua elaboração. A introdução à Carta de 1937 aludia “ao estado de
apreensão criado no país pela infiltração comunista, que se torna dia a dia
mais extensa e mais profunda, exigindo remédios de caráter radical e
permanente”. O preâmbulo da Constituição de 1946 era simples. Afirmava que os
representantes do povo brasileiro se haviam reunido, sob a proteção de Deus,
“para organizar um regime democrático”. A Constituição de 1967 não foi
apresentada, mas a Emenda n.º 1/1969 trouxe longa justificativa dos militares
que a outorgaram.
A Constituição
de 1988 traduz, no prefácio, o espírito predominante na Assembleia Nacional
Constituinte. Ali se escreve sobre reunião destinada a “assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos”.
A preocupação
com eventual retorno de regime policialesco levou o dr. Ulysses Guimarães,
presidente da Constituinte, a lançar, na primeira impressão do Senado divulgada
horas após a promulgação, o texto A Constituição Coragem, onde escreveu:
“Diferentemente das sete constituições anteriores, começa com o homem. Graficamente
testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é o
seu fim e sua esperança. É a Constituição cidadã”.
As modernas
Constituições não se limitam a determinar a organização jurídica e política de
determinado Estado e dispor sobre as relações entre governantes e governados.
Vão além. Tratam de proteger o cidadão e a sociedade civil contra medidas
autoritárias. A Constituição de 1891 trazia breve lista de direitos
individuais, entre os quais introduziu o habeas corpus, cabível “sempre que o
indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação,
por ilegalidade ou abuso de poder” (artigo 72, parágrafo 22). A Constituição de
1934 acrescentou, aos Direitos e Garantias Individuais, título alusivo à Ordem Econômica
Social, relacionando os direitos fundamentais dos trabalhadores, como liberdade
de organização sindical, isonomia salarial, férias anuais remuneradas,
indenização ao demitido sem justa causa (artigos 115/143).
A Constituição
de 1988 superou todos os limites. Para assegurar a primazia conferida aos
direitos individuais e coletivos, tratou de lhes conferir o caráter de
cláusulas pétreas, insusceptíveis de alterações por emendas. Nesse sentido reza
o artigo 60, parágrafo 4.º (da Subseção que trata Da Emenda à Constituição, no
interior do processo legislativo): “Não será objeto de deliberação a proposta
de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa do Estado; II – o voto
direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os
direitos e garantias individuais”.
Ao consultar a
relação dos membros da Assembleia Constituinte, encontraremos, em meio à
maioria que voltou ao anonimato, de onde não deveria ter saído, personalidades
como o dr. Ulysses Guimarães, Nelson Jobim, Fernando Henrique Cardoso, José
Serra, Michel Temer, Bernardo Cabral, Afonso Arinos de Melo Franco, Delfim
Netto, Jorge Bornhausen, Luiz Inácio Lula da Silva, Miro Teixeira, Renan
Calheiros e Roberto Campos. Teriam refletido sobre a responsabilidade histórica
da missão que lhes confiara a Nação? Tentaram antever como seria a aplicação
concreta da oitava Constituição brasileira? Não se aperceberam da natureza
especial da Lei Orgânica da Nação e do significado das cláusulas pétreas,
imutáveis diante do desconhecido? Alguém mais experiente teria pressentido a
tragédia que se preparava no caldeirão do Congresso Nacional. Os resultados não
se fizeram esperar. São 99 emendas aprovadas e centenas na fila de espera.
No afã de
resolver desafios econômicos e sociais, a Constituição excedeu-se na utopia e
invadiu espaçoso terreno da legislação ordinária. Abriga normas de Direito
Civil, Penal e Processual, de legislação trabalhista, de Previdência Social, de
Direito Administrativo, de Direito Autoral. Dispõe sobre a localização do
colégio Dom Pedro II, a garantia do direito de herança, usinas operadoras de
reator nuclear, segurança pública, identificação do preso, gratuidade do
transporte coletivo para idosos, organização de guardas municipais, voto do
aposentado em eleições sindicais. A confusão nada deixa a desejar. Vide o caso
que rachou o País e o Supremo Tribunal Federal ao meio, referente ao
cumprimento da pena após trânsito em julgado de sentença penal condenatória: de
um lado, os que entendem ser possível antecipar a prisão do réu; do outro, os
que pensam exatamente em sentido contrário.
Profunda
reforma, mediante emenda que converta a carta utópica de princípios em
Constituição real, julgo ser impossível pelas vias normais. Da ideia da
lipoaspiração, lançada pelo constituinte e ex-ministro Nelson Jobim, tratei em
artigo anterior. Como e com quem elaborar a nona Constituição da República,
para torná-la verdadeira, aplicável e duradoura? Esse o enigma que o Brasil
deverá decifrar.”
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AGD
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