“California
dreamin’
POR FERNÃO LARA
MESQUITA
Queixam-se do
Congresso, mas o nosso maior problema está no pedir, e não no que nos é
entregue. A falta de qualquer referência não europeia nos põe mais longe da
saída que todos os outros percalços somados.
A relação
interpessoal proporcionada pela internet, lamentava-se o franco-uspiano
Fernando Henrique Cardoso num programa que comparava os fenômenos Trump e
Bolsonaro na TV na virada do ano, bagunçou um coreto que foi armado para e pela
intermediação dos partidos (sustentados pelo governo), através das TVs
(outorgadas pelo governo), da imprensa e do resto desse nosso “sistema de
representação do povo” sem povo. Do outro lado da mesa esbravejava um
representante da outra corrente europeia com que nos alternamos quando a
terceira, a abertamente antidemocrática, dá folga. “Prendam todos! Não deixem
nenhum à solta”! A provocação era trancafiar FHC também, mas essas duas faces
da nossa “persona” europeia se odeiam, mas são gêmeas. Para uma, “o sistema” é
bom, o que falta é só política. Para a outra, “o sistema” é bom, o que falta é
só polícia. Nutrem ambas um mal confessado horror à falta de glamour e
refinamento da igualdade não intermediada. À vida regida pela base da
sociedade, e não pela “autoridade dos melhores” (aristo-kratia). Ao império sem
filtro da lei, à meritocracia e à destruição criativa.
Mas nós falamos,
afinal, do “pior dos regimes políticos, excluídos todos os outros”. E é aí que
encaixo Roberto DaMatta relatando sua própria experiência de brazuca emigrado
para os Estados Unidos no artigo Encruzilhadas, publicado neste jornal nesta
quarta-feira, 16, em que escrevo. “Passar da desigualdade para o igualitarismo
requer acrobacias sociopsicológicas (...) impossíveis de praticar sem um exame
aprofundado (...) de quem fomos e de quem somos porque os costumes são tão
coercitivos quanto as leis”. Não temos conserto dentro desse “passado
aristocrático absolutamente eurocentrado de imperadores (...) e a massa negra
escravizada (...) que nossos pensadores viam (e inconfessadamente continuam
vendo até hoje) como natural.”
“A reforma
previdenciária”, resumia DaMatta, “tem de fazer parte de um movimento
arrebatador. Trata-se, no fundo, de uma guerra do Brasil contra o seu lado
equivocado.”
Os Estados Unidos
menos americanos, o federal, estão à beira da disrupção como farsa pela mão de
Donald Trump, O Tapeador, mestre da manipulação das redes. Já a Europa saiu do
feudalismo, mas o feudalismo nunca saiu da Europa. De lá vieram e nos foram
impostos “os costumes tão coercitivos quanto leis” que estão aí até hoje, mas
nós já nem sentimos. O Brasil pós-Tiradentes passou a censurar com fúria a
nossa americanidade essencial de povo até então sem rei e nunca mais parou. E
quanto mais privilégios os nossos “representantes do povo” independentes do
povo “adquirem” e transformam em lei, mais se inverte e perverte a hierarquia
povo-governo que a democracia nasceu para estabelecer até transformar-se nesse
esdrúxulo feudalismo constitucional a que acabamos por nos acostumar.
Para termos
democracia será preciso, antes de mais nada, aprendermos a identificá-la. “Esse
sistema sempre em débito consigo mesmo, inacabado e caracterizado por
permanentes ajustes”, na descrição de DaMatta, define-se essencialmente pela
quantidade de poder que o eleitor tem antes e depois do momento da eleição para
levar adiante esses ajustes. E o brasileiro não tem nenhum.
É essa a doença.
Corrupção é só ausência de democracia e não vai acabar apenas com polícia. Não
é da Europa que a resposta virá. A democracia real é a anti-Europa. Nasce em
função da ausência do rei e caminha de oeste para leste. Da América impôs-se à
Europa. Da Costa Oeste impôs-se à Costa Leste dos Estados Unidos. No Brasil
será parecido. O último a entrar será o da praia.
Nos primeiros
dias deste ano a Califórnia, que ainda no século 19 começou a revogar o modelo
estático que nos oprime, contabilizava a safra de democracia dos 12 meses de
2018. Que Trump, que nada! 726 leis de iniciativa popular, referendos de leis
dos Legislativos, votações de retomada de mandatos (recall), eleições de
retenção de juízes e outras decisões foram diretamente votadas pelos
californianos nas nove “eleições especiais” convocadas para esse fim, além da
nacional de 6 de novembro.
Dentro do
sistema distrital puro, começando pela célula do bairro que elege o board de
pais de alunos que vai gerir a escola pública local e seguindo pelos distritos
eleitorais municipais (uma soma dos de bairros), estaduais (uma soma dos
municipais) e federais, cada pedacinho do país elege apenas um representante
para cada instância de governo. Como o que define o distrito é o endereço do
eleitor, todo mundo sabe exatamente quem representa quem. E sendo a
identificação tão clara ele retém o direito de cassar o mandato do seu
representante a qualquer momento mediante a coleta de assinaturas e a
convocação de “eleições especiais” só no distrito afetado para decidir essas e
outras questões.
As que envolvem
impostos não têm exceção. Nenhum nasce ou se mexe sem voto. As que ordenam
obras públicas e decidem como serão financiadas, idem. Os futuros usuários
decidem se as querem ou não no modelo e pelo preço proposto e estabelecem, uma
por uma, quem, como e quando vai pagar por elas. Valor do IPTU, construção ou
não de uma ponte, valor do salário mínimo local, reajuste de planos de saúde,
liberação ou não da maconha, normas para compra e uso de armas, tudo é decidido
no voto em cada distrito eleitoral municipal, estadual ou federal somente por
quem vai usar cada bem, pagar por ele ou ser obrigado a se submeter à lei em
exame.
Olhado a partir
da meca planetária da inovação política, que não por acaso é também a meca
planetária da inovação tecnológica, o mundo não parece, portanto, tão
disfuncional quanto Fernando Henrique o vê. Essa democracia e as redes têm tudo
a ver. Nós é que, desde 1808, andamos com a cabeça sabe-se lá onde.
Mudar o País de
dono, vulgo democracia, é o que cura o Brasil.”
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AGD
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