“A hora do
safanão
POR FERNÃO LARA
MESQUITA
No início,
fresco ainda dos seus 28 anos de lobby para obter vantagens para militares e
policiais no Congresso, Jair Bolsonaro não sabia se jogava no ataque ou na
defesa na questão da previdência. O assunto foi cuidadosamente evitado na
campanha. Ficou soterrado nas emoções do debate comportamental, na cumplicidade
entre a direita, a esquerda e o centro contra a reforma e na inapetência da
imprensa pelo tema.
Brumadinho,
“rachid”, privilégios. Qualquer tapete levantado revela um monte de sujeira;
qualquer arranhão olhado com lente confirma extensa infecção. Quem quiser focar
nas diferenças entre a “esquerda” e a “direita” brasileira desta boca de 3.º
milênio, que as há, tem todo o direito. Mas o País só apontará para o fim do
túnel quando focar no que há nelas de idêntico e partir para a reforma
democrática (a política) que porá o povo no poder.
Por enquanto
vamos de previdência sem o rearranjo da qual não sobrará nada para ser
reconstruído adiante.
O “governo de
transição” é uma avalanche de números que faz qualquer sonhador despencar até
do céu que protege Brasília para uma aterrissagem de emergência na calamidade
geral que governadores e prefeitos estão encontrando. A verdade foi aos poucos
contaminando o governo e, por meio dele, extravasando para a imprensa e dela
para o País. A fase de alienação teve um ponto final quando Paulo Guedes
encerrou “o baile” que a parcela Brasília do governo Bolsonaro ameaçou dar-lhe
em público. Ali o presidente teve a primeira oportunidade de provar o quanto se
comove com fatos, coisa a que o país das “narrativas” há muito tempo se
desacostumara. E confirmou: a melhor qualidade de Jair Bolsonaro é sua
capacidade de voltar atrás e corrigir o rumo. A ficha caiu com tanta clareza
que os militares, sempre os primeiros a incluir-se fora de toda e qualquer
tentativa de reforma anterior, espicaçados nos brios diretamente pelo
comandante-em-chefe, declararam sua disposição de contribuir com um sacrifício
para o esforço de salvação nacional.
É a primeira vez
nos 519 anos de Brasil que alguma corporação da privilegiatura se dispõe a dar
um passo atrás, gesto que pode ter consequências telúricas. Mas o problema para
desencadear o terremoto ainda é a conclusão do despertar do presidente.
Bolsonaro saiu do Congresso, mas o Congresso ainda não saiu de Bolsonaro. Ele
continua se dirigindo tão somente ao País oficial para tudo quanto extrapola as
picuinhas da turma do excesso de salivação com escassez de raciocínio das redes
sociais. Apesar da firmeza com que corroborou a ordem para o realinhamento do
governo à Prioridade Zero da previdência, ele ainda subestima a capacidade de
discernimento do povo. Segue dimensionando sua reforma pela expectativa da sua
receptividade pelo Congresso, e não pela real necessidade do País ou interesse
do povo.
O Congresso não
tem de ser o primeiro, deve ser o último a ser consultado. Ele pode tudo, até
derrubar governos “inderrubáveis”, mas só faz isso quando o impulso vem da rua.
Para levar os políticos a atos como esse, que não são de coragem, são de
sobrevivência, é preciso que a população passe antes pelo mesmo banho de
informação que fez o próprio governo mudar de atitude. Dar à privilegiatura o
conforto de uma negociação anônima, de bastidores, para, no final, apresentar
como sua uma reforma que dê conforto a ela seria uma grossa traição aos 58
milhões de votos recebidos. É o contrário. Os mais altos representantes da
privilegiatura têm de ser convocados todos à boca do palco, com o resto da
Nação, colocados de frente para os números pelos quais cada corporação é
responsável – Judiciário, Ministério Publico, Legislativo e o resto –, e então
serem instados a se manifestar encarando o público como os militares já se
manifestaram. Tem de ser um ônus para quem quiser assumi-lo recusar contribuir
ou impedir a aprovação de alguma coisa que o País inteiro estará perfeitamente
consciente de que se não for feita nos mata.
O Congresso,
assim como toda instituição encarnada em seres humanos, age sempre em função dos
imperativos de sobrevivência dos congressistas. Por isso mesmo é que a
democracia, depois de alguns ensaios românticos fracassados, foi redesenhada
para pôr diretamente nas mãos do povo a condição de sobrevivência dos
congressistas. Mas como aqui falta entregar o cetro ao povo, é ao presidente
que, por exclusão, cabe essa função.
Esse roteiro não
precisa ser encenado em tom de confronto. Convocar a Nação para apresentar-lhe
a verdade dos fatos, medir as consequências de cada alternativa e pedir humildemente
que ela indique a direção a seguir é a função por excelência do governante
democrático. E cabe firmeza nisso. O general De Gaulle, que mais de uma vez
ergueu do chão o orgulho nacional francês em frangalhos, disse numa dessas
ocasiões o seguinte: “A democracia exige que a gente convença as pessoas.
Quando as circunstâncias permitem, essa é a forma preferencial de agir. Então
deve-se trabalhar para fazer evoluir as consciências. Mas há circunstâncias em
que não é possível dar-se esse luxo e então é preciso comandar. É como na
educação das crianças. Se a gente tem tempo o melhor é argumentar. Mas se não
tem, para o bem delas, a gente vai lá e dá um safanão”.
A reforma da
previdência – que vai definir o que será do governo Bolsonaro, do Brasil e dos
brasileiros nos próximos 30 anos – está, obviamente, precisando desse
“safanão”.
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AGD
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