“Democracias podem morrer
POR JOSÉ ÁLVARO MOISÉS
Democracias podem morrer quando
líderes eleitos violam as regras democráticas, incentivam a violência,
contestam a legitimidade dos adversários e atacam as liberdades civis. O
diagnóstico de estudiosos como Steven Levitsky se baseia nos exemplos de Putin,
Erdogan, Chávez, Maduro e Trump, mas omite um aspecto importante: a sensação
dos cidadãos de que não contam no funcionamento da democracia produz desprezo
pelo regime e a ideia de que pouco importa se ele for substituído por
alternativas autoritárias.
O Brasil tem democracia, mas seu
sistema de representação está em crise. Mais de 90% de entrevistados de
pesquisas de opinião declaram não se sentir representados por nenhum partido
político e apenas 16 milhões de eleitores são filiados a eles. Em 2014, 45% de
entrevistados de uma pesquisa declararam que a democracia pode funcionar sem os
partidos políticos e outro tanto disse a mesma coisa do Congresso Nacional. Em
2013, quase 2 milhões de manifestantes já haviam dito isso, mas os partidos não
se abriram aos jovens desejosos de ingressar na vida pública, e a distância
entre governados e governantes só aumentou.
O Brasil é um caso extremo de
fragmentação partidária, com 35 partidos, e outros 50 pedem registro, mas os
eleitores não se sentem representados. Os programas partidários são frágeis em
termos de disputas de projetos para o País e não enfrentam os desafios da
governabilidade. A fragmentação corrói a responsabilidade dos partidos que,
dominados por oligarquias que se perpetuam na sua direção, carecem de
democracia interna e estão fechados à participação de seus apoiadores.
A resistência dos partidos
brasileiros a adotar mecanismos como o de eleições primárias do sistema
norte-americano é uma indicação do bloqueio à participação dos eleitores. Nas
primárias, com base na posição dos postulantes a candidato, eleitores escolhem
delegados às convenções partidárias, que tomam a decisão final. Milhões de
pessoas se mobilizam, às vezes por mais de um ano, fazendo os candidatos
considerarem as demandas específicas dos eleitores. O processo é inclusivo e vitaliza
a democracia representativa.
No Brasil, a qualidade da
democracia está em questão. Giovanni Sartori, cientista político italiano,
discutindo o significado original da palavra grega demokratia, composta por
demos (povo) e kratos (poder), argumentou que esse regime assegura a soberania
do povo pela interação de dois princípios fundamentais: o demos-proteção e o
demos-empoderamento. O primeiro assegura a liberdade e protege os cidadãos do
arbítrio, o segundo garante o seu poder de escolher, influenciar e controlar
quem governa em seu nome. O voto, então, é o instrumento pelo qual os eleitores
garantem direitos, escolhem governantes e defendem seus interesses.
Mas ele não esgota o princípio de
autogoverno dos cidadãos, reclama o entendimento dos eleitores sobre o que está
em jogo na política e prevê meios de eles influírem no andamento do processo.
Isso remete ao papel dos partidos para evitar que no interregno entre eleições
os cidadãos sejam apenas objeto da ação dos eleitos. Para tanto o sistema eleitoral
precisa traduzir os desejos e aspirações dos cidadãos no funcionamento das
instituições. Se isso está bloqueado, as pessoas se frustram com a política,
retiram a sua confiança nas instituições e duvidam que a democracia resolva os
problemas da sociedade.
O sistema eleitoral brasileiro
tem distorções que comprometem suas funções, como a desproporcionalidade entre
a população das circunscrições eleitorais e seu teto de cadeiras na Câmara,
resultando em pesos distintos dos eleitores dos Estados, violando o princípio
“um homem, um voto”. O caso mais grave é o de São Paulo, que deveria ter mais
de cem representantes, mas tem apenas 70, enquanto Roraima, Amapá, Acre e
outros têm oito, mas deveriam ter menos.
O sistema proporcional de lista
aberta com distritos de mais de 30 milhões de eleitores, como São Paulo,
encarece as campanhas, dificulta a escolha de candidatos, estimula a
personalização do voto em detrimento de projetos coletivos e favorece a
competição entre candidatos do mesmo partido. Outra distorção é o sistema de
coligações, que frauda o voto proporcional baseado em posições
político-ideológicas e faz o eleitor eleger quem tem posição oposta à sua. O
Congresso descontinuou as coligações para as eleições proporcionais a partir de
2020, mas sua manutenção em 2018 afetará a formação da próxima maioria
governativa.
As distorções não acabam por aí.
A desigualdade da inclusão política das mulheres, que a despeito de serem
maioria na população têm menos de 10% de representação parlamentar, é algo
gritante. As distorções também dizem respeito ao financiamento de campanhas,
cujos recursos serão distribuídos pelas oligarquias partidárias que buscam
continuar na liderança dos partidos, bloqueando a renovação política do
Congresso. O fundo de financiamento de campanhas criado em 2017 reservou mais
recursos aos maiores partidos, dificultando a indicação e a eleição de nomes
novos para o Parlamento.
A crise recoloca a reforma
política na ordem do dia. Os candidatos à Presidência têm de dizer como
pretendem recuperar a confiança das pessoas na política. A agenda de reformas,
além da recuperação da economia, inclui a revisão do sistema eleitoral com a
adoção de distritos menores, o fortalecimento da relação entre representados e
representantes e novas normas de funcionamento dos partidos. O País precisa de
uma efetiva cláusula de barreira para diminuir a fragmentação dos partidos e
eles precisam ser submetidos a regras de democracia interna se não quiserem ser
rejeitados pelos eleitores. Os candidatos precisam sinalizar, portanto, com que
maioria querem governar para serem capazes de realizar as reformas requeridas
pela democracia brasileira.
O País não resiste a mais crises
políticas.”
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